“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Índio falou, tá falado

Línguas indígenas sobrevivem no português, influenciam nossa fala e guardam sentidos ocultos.
     A prova está no dicionário: dos 228 mil verbetes que o Houaiss apresenta em uma de suas edições, cerca de 45 mil são palavras oriundas de línguas indígenas. Alguma dúvida de que o conhecimento dessa herança linguística, mesmo que superficial, é necessário para entender o português que falamos, e até mesmo para consolidar a nossa identidade?
     “Há várias línguas faladas em português”, afirma José Saramago no documentário Língua: vidas em português, e basta olhar as variedades regionais para dar razão ao escritor. Como explicar essas diferenças? Parte delas reside no fato de que os índios que aqui moravam falavam centenas de línguas autóctones de diversos troncos linguísticos.   Quando começaram a usar um idioma que veio de fora – o português – nele deixaram impressas suas marcas, fruto de uma relação que a sociolinguística denomina de “línguas em contato”. Como as línguas indígenas eram diversas, as marcas que deixaram não foram as mesmas em cada região.
     No início do século XVI, o poeta Sá de Miranda lançou aos mares do futuro a nau da língua portuguesa, vinculando seu destino à expansão do comércio marítimo. Durante um par de séculos, caravelas singraram “mares nunca dantes navegados”, carregando, entre outros, um bem imaterial: o português, que passou a ser falado na Índia, na Malásia, na Pérsia, na Turquia, na África, no Japão e até na China e na Cochinchina. Em muitos lugares tornou-se “língua franca”, isto é, um idioma usado para comunicação entre grupos de pessoas cujas línguas maternas são diferentes – como ocorre hoje com o inglês.
     A língua portuguesa já veio para cá marcada por outras línguas com as quais havia convivido. Aqui, no território que é hoje o Brasil, encontrou mais de 1.300 línguas, faladas por cerca de 10 milhões de habitantes, segundo estimativas de pesquisadores da Escola de Berkeley que estudaram a demografia histórica do período e consideram que no continente americano ocorreu "a maior catástrofe demográfica" da história da humanidade.
     As duas línguas gerais indígenas faladas no Grão-Pará e no Brasil – a Língua Geral Amazônica (LGA) e a Língua Geral Paulista (LGP) – nomearam conceitos, funções e utensílios novos trazidos pelos europeus com adaptações fonéticas e fonológicas: cavalo (cauarú), cruz (curusá), soldado (surára), calça ou ceroula (cerura), livro (libru ou ribru), papel (papéra), amigo ou camarada (camarára).
     Os portugueses começaram a falar essas línguas  e também tomaram delas muitos empréstimos, a maioria sendo do tronco tupi, que mantinha grande número de falantes espalhados por extenso território da costa atlântica. Desde o século XVI, portugueses que tinham interesse econômico em comunicar-se com os índios começaram a usar uma língua de base tupi que se tornou a Língua Geral. Os missionários fizeram então uma gramática explicando como funcionava essa língua e passaram a usá-la na catequese. Traduziram para ela orações, hinos e até peças de teatro.
     Apesar de extintas, algumas dessas línguas indígenas continuam sendo usadas por brasileiros, que nem desconfiam desses empréstimos, em nomes de lugares, animais, vegetais, ervas, flores, plantas, enfim, da flora e da fauna. Numa amostra coletada pelo linguista Aryon Rodrigues, 46% dos nomes populares de peixes e 35% dos nomes de aves são oriundos só de línguas tupi.
     De origem tupi é a palavra carioca, nome de um rio que, segundo alguns especialistas, significa “morada (oca) do acari”, um peixe que cava buracos na lama e ali mora como se fosse um anfíbio. Para outros, é o nome de uma aldeia, a “morada dos índios carijó”. Da mesma origem são os nomes de muitos lugares, como locais atuais do Rio de Janeiro que conservaram as denominações de antigas aldeias: Guanabara (baía semelhante a um rio), Niterói (baía sinuosa), Iguaçu (rio grande), Pavuna (lugar atoladiço), Irajá (cuia de mel), Icaraí (água clara) e tantos outros, como Ipanema, Sepetiba, Mangaratiba, Acari, Itaguaí.
     Muitos topônimos indígenas perderam seu sentido original. Os tupinambás denominaram de Itaorna uma praia em Angra dos Reis. Nessa área, na década de 1970, foi construída a Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, mas os engenheiros responsáveis desconheciam que o nome dado pelos índios continha informação sobre a estrutura do solo – minado por águas pluviais, que provocavam deslizamentos de terra das encostas da Serra do Mar. Somente em fevereiro de 1985, quando fortes chuvas destruíram o Laboratório de Radioecologia que mede a contaminação do ar na região, eles descobriram o que significa itaorna: “pedra podre”.
     A influência das línguas indígenas nas variedades usadas no Brasil não se resume em uma listagem de palavras exóticas ou "folclóricas". Existem outras influências entranhadas nas camadas profundas da língua, que penetraram em seus alicerces, mexendo com seu sistema nos campos sintático, fonológico e morfológico. É o que os linguistas chamam de "substrato".
     No caso da fala individual, o substrato é o conjunto de transferências adquiridas pela primeira língua, ou língua materna, depois do contato com uma segunda língua. Do ponto de vista coletivo, o substrato é o conjunto de vestígios que uma língua, quase sempre extinta, deixa sobre outra língua, em geral a de um povo invasor. É a influência da língua perdida sobre a língua imposta, que só se estabiliza após diversas gerações. Exemplos disto são alguns processos de modalização do nome, característicos do tupi, que deixaram suas marcas no português não pela via do empréstimo cristalizado, mas pelo próprio mecanismo. Tanto na palavra netarana, usada no Pará, quanto em outras do português regional, como sagarana, canarana, cajarana, tatarana, há o uso do sufixo tupi rana (“como se fosse”).
     Esses resíduos ainda não foram completamente inventariados, mas alguns deles foram identificados. O indigenista Telêmaco Borba recolheu, em 1878, dados sobre a língua oti, que era então falada no sertão de Botucatu, em São Paulo, e que foi extinta. Descobriu que aquela língua, do tronco Jê, possuía sons que os grupos de língua tupi não tinham, como o r retroflexo. E seus falantes levaram esse traço para o português quando adquiriram a nova língua. Ele ali permanece até hoje no r paulista, conhecido como r caipira.
No interior do Amazonas, no rio Madeira, há o processo de “alçamento” e “abaixamento” de vogais. “Alçamento” é o fechamento vocálico, como no caso de “popa da canoa”, que se pronuncia pupa da canua, o que também é atribuído ao substrato da língua indígena.
     Nem sempre tais mudanças foram aceitas pelos puristas da língua. Da mesma forma que o Império Romano considerou como “línguas estropiadas” as variedades do latim faladas na Península Ibérica (que mais tarde deram origem ao português, ao espanhol, ao catalão, ao galego, ao mirandês), assim também os portugueses consideraram a variedade aqui falada como “língua mutilada”. No Sermão do Ano Bom, em 1642, o jesuíta Antonio Vieira, que viveu no Grão Pará, afirmou que “A língua portuguesa (...) tem avesso e direito; o direito é como nós a falamos, e o avesso como a falam os naturais”. Classificou as variedades locais do português de "meias línguas, porque eram meio políticas [civilizadas] e meio bárbaras: meias línguas, porque eram meio portuguesas e meio de todas as outras nações que as pronunciavam, ou mastigavam a seu modo”.
     Uma resposta a Vieira está na letra da canção “Língua”, de Caetano Veloso: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões / (…) E deixe os Portugais morrerem à míngua / 'Minha pátria é minha língua'/ Fala Mangueira! Fala! / Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó/ O que quer / O que pode esta língua?/ (…) Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas”.
     As línguas indígenas permanecem no substrato do português e guardam informações e saberes, funcionando como uma espécie de arquivo. Conhecer a contribuição efetiva que legaram à língua portuguesa é entender como viviam os povos que as falavam e se apropriar dessa experiência milenar.

José R. Bessa Freire é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e autor do artigo “Da fala boa ao Português na Amazônia Brasileira”, in Amazônia em cadernos (Manaus, 2000).

Saiba Mais - Bibliografia
NOLL, Volker & DIETRICH, Wolf (orgs.). O português e o tupi no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2010.
LIMA, Ivana Stolze & CARMO, Laura do (orgs.). História Social da língua nacional. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2008.
FREIRE, José R. Bessa & ROSA, Maria Carlota (orgs.). Línguas Gerais. Política Linguística e Catequese na América do Sul no Período Colonial. Rio de Janeiro: Eduerj, 2003.
LAGORIO, Consuelo Alfaro; ROSA, Maria Carlota & FREIRE, José R. Bessa (orgs.). Política de Línguas no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012.

Saiba mais – Links

Saiba Mais - Filme
Língua: vidas em português
Documentário que foi filmado no ano de 2001 e lançado nos cinemas brasileiros no ano de 2004. Todo dia duzentas milhões de pessoas levam suas vidas em português. Fazem negócios e escrevem poemas. Brigam no trânsito, contam piadas e declaram amor. Todo dia a língua portuguesa renasce em bocas brasileiras, moçambicanas, goesas, angolanas, japonesas, cabo-verdianas, portuguesas, guineenses. Novas línguas mestiças, temperadas por melodias de todos os continentes, habitadas por deuses muito mais antigos e que ela acolhe como filhos. Língua da qual povos colonizados se apropriaram e que devolvem agora, reinventada. Língua que novos e velhos imigrantes levam consigo para dizer certas coisas que nas outras não cabe. O filme conta com a participação especial de José Saramago (escritor português), João Ubaldo Ribeiro (escritor brasileiro), Martinho da Vila (cantor e compositor), Teresa Salgueiro (do grupo Madredeus) e Mia Couto (escritor moçambicano).
Direção: Victor Lopes
Ano: 2002
Áudio: Português
Duração: 90 minutos

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