“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sábado, 22 de agosto de 2015

O soldado de Cristo não vai à guerra

Ao abordar a moral cristã de forma humanista, Erasmo de Roterdã atacou a rigidez da Igreja e a violência entre os homens.
     Em uma Europa assolada pelas guerras e dividida por conflitos religiosos, Erasmo de Roterdã (1466-1536) defendeu a paz e a tolerância entre os povos, usando como princípio a moral cristã livre dos dogmas da Igreja.
     Suas armas foram as palavras impressas. Erasmo frequentava tipografias e se correspondia com editores, ilustradores e livreiros. Estava acostumado a pensar em público, na sala de aula ou no debate com interlocutores de toda Europa, com os quais mantinha um diálogo contínuo por meio de cartas, curtas e precisas, que fazia imprimir e circular rapidamente.
     A variedade e o volume de seus escritos contribuíram para perpetuar múltiplas imagens de Erasmo. Para muitos, ele é o autor do Elogio da loucura (1511), o crítico arguto da sociedade de seu tempo. Para outros, é o grande filólogo que por três décadas publicou e comentou mais de 4 mil provérbios greco-latinos, reunidos em Adagia (1500-1536). Alguns o lembrarão como o polemista que duelou com o reformador Martinho Lutero acerca da liberdade da vontade humana, a partir do seu Sobre o livre arbítrio (1524). E ainda há os que o destacam como o teólogo que renovou os estudos sobre o Antigo e o Novo Testamentos, com base nas fontes antigas que então chegavam da Grécia, após a dissolução do Império Bizantino.
     Mas é possível enxergar um fio condutor presente na maioria das obras desse humanista flamengo. Erasmo indagava-se constantemente a respeito da instauração da paz. Para isso, seria preciso eliminar os conflitos militares e intelectuais, inclusive em suas formas mais corrosivas: os embates religiosos. Esta temática central em seu pensamento – a renovação moral dos homens rumo à paz e à concórdia – está condensada em um pequeno manual, redigido em forma de carta aberta a um amigo leigo. Trata-se do Manual do Soldado Cristão, escrito em 1504.
     No Manual, Erasmo propõe uma série de preceitos para se viver no mundo como cristão, reconhecendo os perigos da alma e afastando-os pela renovação da vivência religiosa, pela imitação das virtudes de Cristo. Ele argumenta que a essência da experiência religiosa não está no pertencimento a uma igreja, mas sim no “encontro com Cristo”, como explica neste trecho inicial: “O Cristo não é uma palavra no ar pois significa a caridade, a paciência, a pureza, quer dizer, todo o seu Evangelho. (...) Deposite em Cristo como o único e supremo bem e não ame nada, não deseje nada a não ser em Cristo e por Cristo. (...) É sempre em função deste fim soberano que será necessário julgar a utilidade de todos os bens secundários”.
     A doutrina moral de Cristo deve ser seguida tanto pelo leigo engajado quanto pelo mais alto eclesiástico. E ser cristão é sinônimo de caridade, simplicidade e paciência – ou seja, uma vivência da religiosidade que transcende os dogmas e a hierarquia da Igreja. Para Erasmo, eram dispensáveis muitos dos ritos apresentados como necessários no caminho para a salvação e a proclamação da verdadeira fé. Criticava a devoção às imagens da crucificação e do corpo de Jesus coberto de chagas, o culto às relíquias e as abstinências. Argumentava que a morte e a paixão de Cristo eram alegorias a serem interpretadas para conduzir corretamente a vida moral, e não objeto de devoção popular – mesmo que respeitável, incapaz de renovar o homem interiormente.
     “Por ter sido batizado, não se creia cristão”, advertia Erasmo ao “Soldado Cristão”. A obediência a fórmulas rituais não era condição suficiente para uma autêntica religiosidade, nutrida muito mais por uma espiritualidade interior. “Não me diga que a caridade consiste em frequentar as igrejas, em se prostrar diante das estátuas dos santos, em deixar queimar círios e em contar rezas que você repete. Deus não precisa de tudo isso”. Do que precisaria Deus, então? Ou melhor, do que precisariam os homens para merecer a sua misericórdia? Provavelmente Erasmo responderia a estas indagações lembrando aos fiéis que o cristianismo não era apenas uma fé, mas um modo de vida, uma filosofia moral. Que ser cristão não consistia só em crer bem, mas em viver bem, exercendo a caridade para a regeneração interior e a manutenção da paz e da concórdia entre os homens.
     Os anos que antecederam a ruptura entre Lutero e a Igreja Romana, na reunião da Dieta de Worms, em 1521, foram marcados por grandes expectativas de reformas alheias à violência das guerras e à ferocidade da repressão das instituições eclesiásticas e seculares. Um intelectual como Erasmo ainda mantinha certa autonomia para escrever e agir. E o que propunha era um retorno ao núcleo originário do cristianismo, a uma espiritualidade desembaraçada dos longos debates teológicos. O que importava se o Espírito provinha do Pai, ou do Filho, ou de ambos? O importante era que frutificasse no coração humano, infundindo tolerância e paz.
     Até a ruptura luterana, Erasmo acreditou ser possível o advento de uma reforma da Igreja que reunificasse todos os cristãos, sem antagonismos nem anátemas, evitando as sutilezas escolásticas e o debate teológico. A união dos cristãos pacificados internamente e das retas consciências seria possível desde que se condensassem os ensinamentos de Cristo em um pequeno número de preceitos, por ele denominados de “fundamento da fé”.
     Por ocasião da reedição de 1518 do Manual do Soldado Cristão, Erasmo reafirmava esse projeto e o expunha em um novo prefácio: “Será muito prático, no meu entender, escolher e agrupar alguns homens pios e instruídos para o seguinte trabalho: extrair das fontes puríssimas dos Evangelhos e dos escritos apostólicos e de seus melhores intérpretes uma espécie de resumo de toda a 'filosofia de Cristo'. (...) Tudo o que pertence à fé será condensado em poucos artigos, o mesmo acontecendo para o que diz respeito à vida cristã”. O humanista apresentara a mesma proposta em uma carta de 14 de agosto daquele ano, endereçada ao amigo Paul Volz. Nela sugeria a redução da fé a um pequeno número de artigos, de preferência os dez mandamentos apenas, deixando todo o resto para a livre discussão.
     Quando escreveu a carta, ainda faltava mais de uma década para a primeira formalização oficial dos princípios do luteranismo na Confissão de Augsburgo (1530), e 27 anos para a abertura do Concílio de Trento (1545), com seus decretos dogmáticos e disciplinares que definiriam vários pontos da doutrina católica em face das múltiplas interpretações então correntes. Nesse intervalo, a religiosidade humanista de Erasmo manteve-se como uma proposta alternativa de renovação espiritual, de paz e de concórdia religiosa.
     O Manual do Soldado Cristão foi lido pelos contemporâneos como um conjunto de sugestões concretas para viver a mensagem evangélica de forma tolerante e ecumênica em tempos atribulados. Quando os conflitos religiosos transformaram-se em guerras civis e intraestatais, a piedade erasmiana tornou-se um modelo de tolerância contra qualquer dogmatismo. Com Erasmo, gerações repetiam que a piedade é “a palavra justa”.
     Esta pequena e preciosa obra é um testemunho de como a filologia e a crítica erudita eram instrumentos para pensar e propor novas formas de agir. O convite que Erasmo faz de restaurar a leitura do Novo Testamento põe em questão a autoridade das instituições eclesiásticas e o controle exclusivo da interpretação das Sagradas Escrituras. O estudo crítico dos textos antigos era a arma que o humanista empunhava em um contexto de guerras civis religiosas.

Silvia Patuzzi é professora da Universidade Federal Fluminense e autora de “Humanistas, príncipes e reformadores no Renascimento”. In: Modernas Tradições (Editora Access-Faperj, 2002).

Doce Guerra
     Os Adagia são uma coleção de provérbios que Erasmo de Roterdã selecionou a partir da leitura de um grande número de autores gregos, latinos e cristãos. Cada sentença é acompanhada de um comentário filológico, além de uma interpretação que atualiza aquele ensinamento. Esta forma de redigir a obra lhe permite reunir provérbios de autores diferentes sobre temas que ele considera importantes. Disso resulta tanto uma divulgação da Antiguidade pagã e cristã quanto uma abertura para pensar os problemas do seu tempo. O adágio 3001, A guerra é doce para quem não a experimenta, mostra como Erasmo fazia dialogar antigos e modernos para refletir sobre o impacto da banalização da violência na vida dos homens.
     O adágio começa indagando sobre a proliferação da guerra, em todas as suas formas. Em seguida, enumera suas consequências: a fome, a destruição de famílias e negócios, o empobrecimento dos nobres e a degeneração dos costumes – mas, sobretudo, o fato de que “o inimigo leva consigo, junto com a vida, a percepção do mal”:
     “O que leva, não digo Cristãos, mas todos os homens, a tal ponto de loucura de empenhar-se, com tanto zelo, com tantos gastos, com tantos esforços, à ruína recíproca e geral da guerra. Nem todos os animais combatem tanto e entre si, mas apenas entre espécies diversas. Combatem com os meios naturais. Não como nós, com máquinas elaboradas para uma arte diabólica.”
     Para Erasmo, o mal não é uma potência sobrenatural. É a guerra que destrói as disposições morais do homem.

Saiba mais – Bibliografia
BAINTON, Roland H. Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969.
HUIZINGA, Johan. Erasmo. Barcelona: Ediciones Del Zodíaco, 1946.
ROTERDÃ, Erasmo de. O Elogio da loucura. Coleção L&PM Pocket.
ROTERDÃ, Erasmo de. A Guerra e a queixa da Paz. Lisboa: Edições 70, 1999.

Saiba mais – Link

Nenhum comentário:

Postar um comentário