“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Aliança "Café com política"

Nova visão do poder na República Velha questiona antigas abordagens sobre a influência de mineiros e paulistas nas eleições para a Presidência do país.
Cláudia M. R. Viscardi
     Análises recentes das sucessões presidenciais na Primeira República (1889-1930) mostram que a famosa aliança entre Minas Gerais e São Paulo, chamada de política do "café com leite", não controlou de forma exclusiva o regime republicano. Havia outros quatro estados, pelo menos, com acentuada importância no cenário político: Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Os seis, para garantirem sua hegemonia, possuíam uma forte economia e (ou) uma elite política compacta e bem representada no Parlamento. E, juntos ou separados, participaram ativamente de todas as sucessões presidenciais ocorridas no período.
     Além desses estados, havia dois coadjuvantes respeitáveis: o Exército e o Executivo. Os militares se destacaram no regime em seus primeiros anos - durante a presidência dos marechais Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894) -, retornando ao poder em 1910, quando o país foi presidido pelo marechal Hermes da Fonseca (1910-1914). Também provocaram impacto na República nos anos 20, através do movimento de seus tenentes em prol de mudanças como a instituição do voto secreto, o fim das fraudes eleitorais etc. Já o Executivo Federal conseguiu manter o privilégio de intervir sobre as oligarquias mais frágeis, impondo seu controle sobre elas quando julgasse oportuno, além de exercer atuação marcante na sua própria sucessão e de ser o principal gestor da política monetária e cambial do país - importante num contexto em que o fluxo de capitais externos, tal como hoje, era responsável pela saúde da economia.
     O poder de Minas Gerais nesse período é explicado não pela força econômica do gado de leite, mas pela sua projeção política garantida pela bancada de 37 deputados, a maior do país. E a influência de Minas também derivava da forte cafeicultura, já que foi o segundo maior produtor de café do Brasil até o final da década de 1920, sendo responsável por 20%, em média, da produção nacional - a cafeicultura paulista representava cerca de 55% e a fluminense 20%. A expressão mais adequada para a pressuposta aliança Minas Gerais-São Paulo seria, então, "café com café" e não "café com leite".
     Mas a coincidência de interesses entre dois estados cafeicultores já não seria suficiente para que dominassem, de forma exclusiva, a Primeira República? Parece que não. Em que pese sua importância na economia nacional, não foram os produtores de café os únicos controladores do regime republicano.
     Costuma-se ver nos livros didáticos os cafeicultores como uma categoria sem diferenças internas. Mas eles divergiam muitas vezes em relação às políticas governamentais sobre o produto e nem sempre conseguiam atuar de forma compacta na defesa de seus interesses. Além disso, questões envolvendo modelos de cafeicultura nos dois estados os afastavam. O café produzido por Minas Gerais era, em geral, de qualidade inferior ao de São Paulo e exigia investimentos específicos. O sistema de transporte, as tarifas públicas, o tamanho das propriedades e o regime de trabalho eram distintos. Tamanha diversidade dificultava acordos. A exemplo dos obstáculos impostos pelo presidente mineiro Afonso Pena para viabilizar o Convénio de Taubaté (1906/13) - primeira política de proteção ao café, pactuada pelos três estados cafeicultores, com o objetivo de amenizar a crise do setor -, que só foi posto em prática após os interesses mineiros e fluminenses estarem assegurados, isto é, quase três anos depois de ter sido assinado.
     Acreditar que o sustentáculo da "política do café com leite" se encontrava na coincidência de interesses cafeeiros dos dois estados significa diminuir, em muito, a complexidade das relações que se estabeleceram entre os estados após 1889. E a análise minuciosa das sucessões presidenciais não sustenta essa afirmação. Em geral, apenas duas sucessões são apontadas como rupturas do acordo entre Minas e São Paulo: a de Afonso Pena/Nilo Peçanha, em 1910, que opôs paulistas (a favor de Rui Barbosa) a mineiros (pró-Hermes da Fonseca); e a de Washington Luiz, em 1930, quando os mineiros deram apoio a Vargas e os paulistas a Júlio Prestes. Segundo nossa pesquisa, a primeira sucessão a colocar em lados opostos paulistas e mineiros foi a de Rodrigues Alves, em 1906. Antes disso, a participação de Minas foi bem restrita em razão de suas dissidências internas. Como nos demais estados, a Proclamação dividiu as elites mineiras entre republicanos e monarquistas (restauradores). E mais adiante, estiveram divididos entre partidários de Deodoro e de Floriano e, depois, entre florianistas e prudentistas.
     Já a participação de São Paulo na primeira década republicana foi significativa em função de sua coesão interna. Vários setores da elite política estiveram à frente do movimento republicano, reunidos no Partido Republicano Paulista (PRP), e assumiram, ao lado dos militares, o controle sobre os primeiros anos da República. Quando os paulistas se articularam em torno de uma quarta presidência, em 1906, os mineiros uniram-se e, aliados a gaúchos, baianos e fluminenses, formaram uma coligação conhecida como "Bloco", impondo a São Paulo a retirada do nome de sua preferência, a do paulista Bernardino de Campos.
     Derrotados em suas prerrogativas, os paulistas estiveram fora das articulações presidenciais até 1914, quando foi eleito o mineiro Wenceslau Braz (1914-1918). E, durante a sucessão do mesmo Wenceslau, novos problemas voltaram a acontecer: Minas Gerais aderiu imediatamente ao nome de Epitácio Pessoa, proposto pelos gaúchos, enquanto os paulistas se dividiam em torno de pelo menos duas outras candidaturas, a de Altino Arantes e a de Rui Barbosa.
     Entre idas e vindas, os dois estados conseguiram finalmente realizar alianças em torno da candidatura de Arthur Bernardes (1922-1926) e de Washington Luiz (1926-1930), mas voltaram a se separar em 1930. E mesmo durante esse breve período como aliados, as relações foram marcadas por conflitos. A exemplo do governo de Bernardes, quando houve oposição dos mineiros à política de proteção ao café comandada pelos paulistas. Além da conhecida hostilidade do presidente da República Washington Luiz às ações de Antônio Carlos, governador de Minas Gerais no mesmo período.
     Diante da contínua fraude eleitoral e do baixo comparecimento às urnas, a disputa pelo voto dos eleitores perdia importância em relação à escolha prévia do candidato. O estado que conseguisse lançar uma candidatura aceita pelas bancadas mais proeminentes teria a eleição garantida. E mesmo quando havia competição eleitoral, o apoio ao escolhido era quase unânime. Como um candidato poderia obter 97,9% dos votos? Foi o que aconteceu com o mineiro Afonso Pena, presidente entre 1906 e 1909. Esse índice tão pequeno de rejeição só é possível em eleições não confiáveis. O mais difícil, portanto, em uma eleição na República Velha, era sagrar-se candidato com o apoio das oligarquias dominantes.
     Para isso, as negociações tinham que ser longas e as regras, nunca escritas, mas sempre compartilhadas, tinham que ser respeitadas. Primeira: o poder dos estados era desigual e hierarquizado. Segunda: a cada eleição havia uma renovação parcial de poder entre eles, rejeitando-se assim atitudes monopolizadoras. Terceira: a manutenção do regime dependia do cumprimento dos princípios anteriores.
     Com base nessas normas, as alianças foram sendo feitas e desfeitas e em cada sucessão o jogo político era reiniciado. As regras eram as mesmas, os acordos, porém, mudavam. Daí a conclusão que a estabilidade do regime republicano não foi garantida por uma aliança de caráter exclusivista entre dois de seus maiores estados. Ao contrário, quando se aliaram e excluíram os demais parceiros, nos anos finais da República Velha, abalaram o modelo político em vigor.
     A instabilidade das alianças entre os estados mais proeminentes - aliados a seus respectivos "satélites" - surge, portanto, como garantia da continuidade do regime. Cada estado sabia seu potencial de intervenção (reconhecido pelos demais) e estava livre para construir, ou não, alianças a partir de seus interesses específicos.
     Mas como explicar a origem da expressão "café com leite" se, de fato, a aliança entre Minas Gerais e São Paulo teve caráter apenas conjuntural, como as demais? Uma hipótese, ou melhor, uma especulação: é provável que a expressão tenha sido criada pela imprensa, ao final da década de 1920 - pois não foram encontrados registros anteriores -, numa referência à aliança entre paulistas e mineiros em torno da indicação de Arthur Bernardes e Washington Luiz. E reforçada pelo longo governo Vargas (1930-1945) para desqualificar o processo político da velha república que ele pretendia superar. Esta questão, porém, permanece em aberto para quem se dispuser a desvendá-la.

CLÁUDIA M. R. VISCARDI é professora de História na Universidade Federal de Juiz de Fora e autora de O teatro das oligarquias: uma revisão da "política do café com leite". Belo Horizonte: C/Arte, 2001.

Fonte: Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio 2005

Saiba mais – Bibliografia
FERREIRA, Jorge e DELGADO. Lucília de A. N. (orgs.). O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente. Da Proclamação da República à Revolução de 1930. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FERREIRA, Marieta M. Em busca da Idade do Ouro. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.
KUGELMAS, Eduardo. Difícil hegemonia: um estudo sobre São Paulo na Primeira República. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 1986.

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