Misturando comércio, povoação e confronto com populações indígenas
no sertão, as expedições de navegação fluvial "descobriam" o Brasil
em pleno século XIX.
Cláudia Maria das Graças Chaves
Ao escrever a História do Brasil, no
século XVI, frei Vicente do Salvador reclamou que os portugueses aqui se
contentavam em "andar arranhando ao longo do mar como caranguejos".
Duzentos anos depois, entretanto, expedições de exploração, povoamento e
comércio nos rios navegáveis, as chamadas "monções", deixaram para
trás o litoral e fizeram a conquista definitiva do oeste brasileiro.
Embora buscassem também desbravar e
povoar o interior do território, as monções, na opinião do historiador Sérgio
Buarque de Holanda, diferiam das bandeiras pela ênfase na navegação. Graças a
elas, foi possível maior unidade na América portuguesa, principalmente entre as
capitanias do sul e do sudeste. O momento histórico também ajudou: com a fuga
da Corte de Portugal e a elevação do Brasil a sede do reino, aumentava a
necessidade de unidade e ocupação do país. Quando a família real chegou ao
Brasil, em 1808, já era grande a quantidade de informações sobre o interior,
por conta da coleta de mapas e relatórios iniciada no fim do século XVIII pelo
então ministro da Marinha e Ultramar, d. Rodrigo de Sousa Coutinho. Com suas
cartas topográficas e geográficas, as expedições militares falavam de rios
navegáveis e do potencial de comunicação também por terra. Jornais regionais e
o Correio Braziliense - publicado em Londres entre 1808 e 1822 - levavam ao
público as notícias dessas viagens de desbravamento.
A Gazeta da Bahia contou a seus leitores
a conquista do rio Pardo, em 1806, pelo comandante João Gonçalves da Costa,
narrando os nove meses de percurso da capitania de Minas Gerais até a foz do
rio, na comarca de Ilhéus. Acompanhado pelo língua
(intérprete nativo), o comandante e seu grupo fizeram o cerco, após 45 dias de
expedição, à primeira aldeia indígena que serviu como base para continuar a
exploração. Ao longo do percurso até a comarca de Ilhéus, mais quatro aldeias
foram conquistadas e estradas foram abertas às margens do rio, uma pesada
tarefa imposta aos índios aprisionados.
"Conquistar, dominar e civilizar os
índios" eram as palavras de ordem para colonizar os sertões. Elas também
serviram como justificativa para a guerra declarada contra a nação dos
botocudos, em 1808, considerada a mais perigosa dentre os povos indígenas que
habitavam o extenso sertão banhado pelos rios Pomba, Doce, Mucuri e
Jequitinhonha. Segundo José Joaquim da Rocha - cartógrafo e memorialista que
elaborou um dos primeiros mapas do rio Doce no fim do século XVIII -, os
botocudos eram canibais e os "gentios mais bravos daquele sertão", ao
contrário dos índios naknenuk, caiapós e puris. Para Rocha, "extinguir e
não domar" era a melhor alternativa - o que levou à extinção de boa parte
dessa nação.
Na ótica do século XIX, confinar as
tribos e reduzir o espaço indígena era uma vitória da civilização contra a
barbárie. Para implementar essa "civilização", era necessário um
tripé baseado em desmatamento, abertura de estradas e criação de vilas - um
processo que transformava o território e criava as condições para a instalação
de companhias de navegação como a do rio Doce, através do qual a capitania de
Minas Gerais se ligaria à capitania do Espírito Santo.
Para entender a importância desse
processo, é fundamental ter em mente o isolamento em que viviam as chamadas
"terras centrais", sobretudo as capitanias de Minas, Mato Grosso e
Goiás, distantes da costa, onde se desenrolava a maior parte da vida econômica
da colônia e, depois, do reino. A integração por meio das monções buscava
ampliar a comunicação, o comércio e a integração no interior. Projetos
ambiciosos como passar pela capitania do Mato Grosso, partindo do litoral
sudeste, e chegar até à capitania do Pará pelos grandes rios: Tietê, Paraná,
Cuiabá, Tocantins, Madeira e Amazonas.
Desbravar os rios significava integrar ao
país territórios que, de outra forma, poderiam não ser economicamente viáveis.
Se, para chegar ao Mato Grosso, a navegação fluvial era a mais adequada, o
caminho até a capitania de Goiás envolvia uma considerável viagem por terra. Em
1804, o governador Francisco de Assis Mascarenhas conclui que Goiás era a mais
ocidental de todas as capitanias do Brasil e que, para ele, não fosse a
mineração, todo aquele território permaneceria desconhecido. Como eram longos
os percursos terrestres, o governador dizia incentivar as expedições aos rios
navegáveis que abreviariam os caminhos.
Para levar a cabo essa tarefa, o
governador defendia a necessidade de se criarem companhias de comércio e
navegação na capitania, mas não acreditava que elas pudessem existir sem um
grande investimento público, como concessão de isenções e privilégios para a
povoação das margens dos rios.
Companhias de comércio, como a que
Mascarenhas queria ver implantada em Goiás, foram estimuladas, desde o final do
século XVIII, para garantir os enormes custos da empreitada de expansão do
território. O problema é que os empreendimentos deveriam ser implantados em
pleno território indígena, daí a necessidade de serem precedidos por expedições
militares, como a campanha contra os botocudos, na já citada exploração do rio
Doce. Esse rio fora escolhido como o melhor canal de acesso entre as capitanias
de Minas Gerais e do Espírito Santo. O Mucuri era, entretanto, considerado
melhor por alguns, a ponto de existir um projeto de criação de uma companhia de
exploração comercial para o rio.
Entretanto, apesar da criação de uma
companhia do Mucuri, em 1851, o projeto inicial foi preterido em favor da
exploração do rio Doce, no início do século XIX. O percurso desse rio fora
explorado e registrado em mapas por José Joaquim da Rocha, em 1798, e por
Antônio Pires da Silva Pontes, governador da capitania do Espírito Santo, em
1800. Essas cartas serviram de base ao projeto apresenta à Junta de Comércio,
Agricultura, Fábricas e Navegação, no Rio de Janeiro, pelo negociante Domingos Loureiro,
em 1812. Pela proposta, a Coroa incentivava a criação de companhias pelos
principais negociantes do reino, com concessões de isenções e privilégios de
exploração dos canais.
Mesmo assim, a Junta indeferiu o plano,
alegando não haver nele "utilidade pública" - para garantir os
próprios lucros, os acionistas exigiam que, durante os vinte anos de concessão,
nenhuma outra companhia pudesse ser criada. Além disso, os negociantes
propunham que armazéns, madeiras e demais mecanismos utilizados para a
conservação da via de navegação, bem como a desobstrução da foz do rio e das
cachoeiras, ficassem por conta da Real Fazenda. Eles garantiriam apenas o
transporte gratuito de passageiros das ilhas, a construção de embarcações e de
casas para arrecadação de mercadorias. Além disso, havia uma grande descrença
sobre a capacidade de se povoar aqueles lugares "ermos" com grande
número de pessoas.
Em 1819, Francisco Joaquim da Silva
apresentou à Junta uma segunda proposta de navegação do rio Doce, agora com a
participação de capitalistas do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Espírito
Santo. Desta vez, o projeto recebeu um parecer favorável da Junta - favorável
mas nem tanto, pois o próprio texto dizia que o negócio seria muito arriscado e
que todo aquele capital poderia ser empregado com maiores lucros em uma
companhia de crédito, seguros ou letras de câmbio.
Aparentemente o conselho foi seguido,
pois a companhia do rio Doce não saiu do papel naquele momento. Em 1832, um
novo plano, com novos acionistas, foi elaborado. A Companhia Brasileira do Rio
Doce iria contar com capitais de ingleses e brasileiros, majoritariamente por
negociantes do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, da Bahia e do Espírito Santo.
Concretizada em 1837, a companhia propunha a navegação de barcas, sumacas
(embarcações de duas velas), canoas e barcos a vapor; a construção de armazéns
na altura da cachoeira das Escadinhas, de um engenho e de estradas de acesso ao
canal. Diferentemente das propostas anteriores, a nova companhia deveria ser
totalmente privada, sem os pedidos de privilégios e de participação do poder
público que inviabilizaram as outras tentativas de formá-la.
No caso da capitania de Goiás, os
investimentos públicos solicitados foram atendidos em 1813, segundo notícia
divulgada por Hipólito José da Costa no Correio Braziliense. Para a
implementação da sociedade de comércio entre as capitanias de Goiás e do Pará,
concediam-se vários privilégios aos seus acionistas, além de providências para
a "civilização" dos "índios mansos" - canaja, apinajé,
xavante, xerente e canoeiro -, bem como a navegação dos rios Tocantins e
Maranhão. O jornalista saudava essas medidas, que considerava fundamentais para
o estabelecimento de uma sede administrativa interior para o Brasil - sonho de
Hipólito da Costa, que só viria a ser concretizado 147 anos depois, com a
construção de Brasília.
Com todo esse processo, as primeiras
décadas do século XIX mostraram uma nova configuração de poderes e de
organização do então Reino e futuro Império do Brasil. As companhias de
crédito, comércio e navegação, associadas às expedições militares e às monções
de povoação, levaram ao que Sérgio Buarque de Holanda chamou de "uma
ambição menos impaciente do que a do bandeirante". Embora esse fluxo não
tenha sido contínuo, muitas vezes recuando ou quase desaparecendo ao longo do
século XIX, essas rotas representaram a unidade e o conhecimento do território,
à custa da devastação do espaço indígena.
Cláudia Maria das Graças Chaves
é professora na Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais, e autora de Perfeitos
negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo: AnnaBlume, 1999.
Fonte - Revista Nossa História - Ano I nº 7 - Maio
2004
Saiba Mais – Bibliografia
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Saiba mais – Documentário
Histórias do Brasil - A Série
Saiba Mais – Links
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