Apesar dos seus defeitos, d. João VI enfrentou tempos difíceis,
revelou habilidade política e não merecia tornar-se objeto de chacotas
Lúcia Maria Bastos P. Neves e Guilherme Pereira das Neves
D. João nasceu em 1767. Em 1785, casou-se
com uma infanta espanhola, a turbulenta Carlota Joaquina, dez anos mais moça,
de cuja união vieram à luz nove filhos, ainda que provavelmente não fosse o pai
dos últimos. Seu relacionamento conflituoso com Carlota Joaquina levou-o
eventualmente à separação de corpos e a um antagonismo crescente sobretudo após
a chegada ao Brasil. Aos 25 anos, em 1792, a doença mental de sua mãe, d. Maria
I, exigiu que d. João assumisse a regência.
Portugal, como toda a Europa, vivia então
o impacto causado pela Revolução Francesa (1789), logo ampliado, em janeiro de
1793, pela execução do rei Luís XVI. Como resultado, assumiram maior
visibilidade os setores conservadores, que se opunham às reformas iniciadas pelo
marquês de Pombal (1750-1777) e que, bem ou mal, tinham prosseguido no reinado
de d. Maria I, favorecendo a difusão das novas ideias características do século
XVIII, as Luzes. Em termos internacionais, obcecado pelo fantasma da União
Ibérica (1580-1640), ainda que longínquo, Portugal, tradicional aliado da
Inglaterra, temia sobretudo que uma aproximação da Espanha com a França pudesse
colocar sua existência em xeque.
Diante dessa situação, as atitudes de d.
João até 1807 mostraram se ambivalentes. No plano interno, manteve o gabinete
herdado de sua mãe, recusou a convocação de cortes para referendarem sua
regência, oficializada em 1799, e, diante da conjuntura revolucionária,
reforçou a censura e a repressão, mas não deixou de apontar na direção das
reformas. Realizou melhorias urbanas em Lisboa, inaugurou a Biblioteca Pública
e, em 1796, indicou Rodrigo de Souza Coutinho, que servira vinte anos como
representante português em Turim e estava a par de todas as novidades do
pensamento da época, para seu secretário da Marinha e Ultramar.
Cercado por auxiliares naturais da
América portuguesa, d. Rodrigo considerava que a existência de Portugal
dependia de seu império ultramarino e sobretudo do Brasil. Para evitar que ele
seguisse o caminho apontado pela independência das antigas colônias inglesas
que em 1776 tornaram-se os Estados Unidos da América, achava indispensável a
adoção de medidas racionalizadoras, que aliviassem as obrigações sobre os
colonos e estreitassem seus laços com a metrópole, de acordo com a concepção de
um grande império luso-brasileiro unindo a colônia à metrópole. Contudo, d.
João foi incapaz de sustentar as iniciativas de seu brilhante ministro d.
Rodrigo, que se viram em grande parte tolhidas pela enferrujada máquina
administrativa lusa e pela oposição dos setores mais conservadores, temerosos
de qualquer ideia nova.
No plano externo, embora Portugal,
carente de recursos militares adequados, procurasse manter posição de
neutralidade, as guerras no continente europeu geraram um dilema. Conservar a aliança
britânica implicava a possibilidade de se ver envolvido no conflito e acabar
invadido pela Espanha, como se esboçou em 1801 com a chamada Guerra das
Laranjas, em que foi perdida a praça de Olivença. Aproximar-se da França, por
outro lado, significava correr o risco de a Inglaterra, com sua esquadra,
cortar as relações com o Brasil e até mesmo invadi-lo. Em função dessa
situação, formaram-se na corte dois partidos. Inicialmente, predominaram os
anglófilos, liderados por d. Rodrigo. Com a ascensão de Napoleão Bonaparte a
partir de 1799 e suas campanhas militares vitoriosas, Antônio de Araújo de
Azevedo, futuro conde da Barca, o chefe dos francófilos, assumiu um papel cada
vez mais preponderante, vindo a substituir d. Rodrigo, em 1803.
Desse momento em diante, o príncipe
regente passou a andar numa espécie de corda bamba. No ambiente da corte,
multiplicaram-se as intrigas palacianas, promovidas em parte por sua própria
esposa, valendo-se de seus contatos espanhóis e de suas ligações com os setores
mais retrógrados do reino. Motins na tropa em 1803 e uma conspiração
fracassada, em 1805, para remover d. João da regência, colocando Carlota
Joaquina em seu lugar, indicam o grau de tensão a que se chegou. Na diplomacia,
as seguidas concessões à França tornavam cada vez mais delicada a aliança com a
Inglaterra. Em 1806, a decretação do bloqueio continental por Napoleão deixou
Portugal ainda mais vulnerável.
Esquivando-se, como era seu costume, d.
João adiou uma decisão até o último momento. No entanto, a assinatura em
outubro de 1807 do Tratado de Fontainebleau entre a França e a Espanha e um
ultimato de Bonaparte, seguido pela concentração de tropas francesas na
fronteira espanhola, obrigaram-no a escolher uma saída há muito aventada pelo
padre Antônio Vieira, nos tempos difíceis da Restauração de 1640, e agora
defendida por d. Rodrigo, o anglófilo, que voltava a ter grande influência: a
retirada da corte para o Brasil. Embora forçada pelo avanço dos soldados
napoleônicos sobre Lisboa, a decisão não foi assim imprevista. No dia 29 de
novembro de 1807, a esquadra portuguesa, com 36 navios abrigando o corpo
burocrático, arquivos, móveis e utensílios, um prelo tipográfico e cerca de 15
mil pessoas, zarpou, sob escolta inglesa, rumo ao Rio de Janeiro. As consequências
seriam de longo alcance para as regiões portuguesas de ambos os lados do
Atlântico.
No Rio de Janeiro, os contemporâneos
saudaram a chegada de d. João como um "dia memorável", em que
começava a brilhar em toda a América portuguesa "a aurora da felicidade,
prosperidade e grandeza", pois o "bondoso soberano" viera criar
um "grande Império". De fato, a presença de d. João, o primeiro rei
europeu a pisar no Novo Mundo, emprestava, no imaginário da época, uma outra dimensão
ao projeto de império luso-brasileiro de d. Rodrigo, que voltara a integrar o
gabinete, nele permanecendo até sua morte em 1812. Ao tornar-se o Brasil sede
da Monarquia e cabeça do Império, Portugal ficava reduzido à condição de
simples domínio e sem o monopólio do comércio entre as duas regiões por efeito
da abertura dos portos às nações amigas, decretada em 1808, durante a curta
escala da corte na Bahia, e dos tratados de 1810 com a Inglaterra.
Do outro lado do Atlântico, foi difícil
avaliar a situação até 1811, quando as tropas francesas abandonaram
definitivamente o reino. Não obstante, a orfandade ocasionada pela partida do
príncipe, se motivou em alguns segmentos anseios sebastianistas (isto é, de
júbilo pela volta do rei, tal como no passado se esperava o retorno de d.
Sebastião, morto numa batalha em 1578), em outros reavivou antigas
insatisfações, levando membros da alta nobreza a compactuar com os franceses e
a propor que a coroa fosse assumida por Junot, o general invasor, antigo
ajudante de ordens de Napoleão. Contidas pelas autoridades britânicas, que
assumiram nos anos seguintes o virtual controle do país, essas tendências
revelam a posição delicada de d. João em seu refúgio americano.
Com a derrota de Napoleão e a paz na
Europa, a reunião do Congresso de Viena para reorganizar o mapa do continente,
em 1815, inaugurou uma nova conjuntura. Do Rio de Janeiro, a política adotada
por d. João continuou assumindo um caráter oscilante ou bifronte, na expressão
do historiador português Valentim Alexandre. De um lado, tratava-se de
preservar a posição de Portugal no concerto das nações europeias e recuperar a
praça de Olivença, tomada pela Espanha; mas, de outro, cabia atender aos
interesses americanos, intervindo militarmente na Cisplatina (atual Uruguai),
em 1816, para forçar as negociações na Europa, resistindo às pressões inglesas
para abolir o tráfico de escravos e assegurando a manutenção da fronteira norte
do Brasil contra as pretensões francesas no Amapá, para o que servia de moeda
de troca a Guiana ocupada desde 1808. Nesse tabuleiro de xadrez, jogado a
distância por d. João e seus ministros, a maioria dos objetivos foi alcançada,
mas não foi possível evitar que as tensões aumentassem.
Com
a finalidade de reforçar a posição portuguesa nas negociações em Viena, o
Brasil fora elevado a Reino Unido a Portugal e Algarves, em 16 de dezembro de
1815. Somado esse fato à recusa de d. João de retornar à Europa, motivada por
sua notória aversão a tomar uma decisão e pela opinião corrente nos círculos do
poder no Rio de Janeiro de que era preferível conservar-se como uma potência no
Novo Mundo a sujeitar-se à condição de satélite de terceira ordem da
Inglaterra, ficava evidente que a corte enraizava-se na América. No Brasil,
porém, a revolta de Pernambuco em 1817 revelou que o processo gerava crescentes
tensões entre as províncias e o Rio de Janeiro, enquanto, em Portugal, uma
reação fez-se sentir, no mesmo ano, com a conspiração de cunho liberal liderada
por Gomes Freire de Andrada.
Como sempre indeciso, d. João VI ainda
hesitou em retornar a Portugal, (onde era convocado), e aventou a possibilidade
de enviar o filho para Lisboa e permanecer na América, de modo a preservar as
instituições do Antigo Regime. Também pesava o gosto pelo Brasil que adquirira
nos 13 anos passados no Rio de Janeiro. Mas acabou cedendo. Embarcou em abril
de 1821, quando o movimento constitucional já alcançara o Brasil, dando início
ao processo de independência, que seria conduzido, em grande parte, por seu
filho d. Pedro, conforme d. João desejara. Em Lisboa, passou a enfrentar a
oposição das cortes, que, embora o reconhecessem como monarca, o queriam
submisso, já que agora eram elas as detentoras da plena soberania. Em maio de
1823, contudo, um movimento militar chamado da Vila Francada restabeleceu o
absolutismo em Portugal e, novamente, d. João VI se viu às voltas com as
intrigas de Carlota Joaquina e do filho caçula, d. Miguel, preferido da mãe,
absolutista empedernido, que promoveram um outro golpe, em 1824. Desgastado,
após reconhecer a independência do Brasil no ano seguinte, faleceu em 1826, aos
59 anos, deixando o reino à beira de uma guerra civil, que colocaria em campos
opostos os dois irmãos, d. Pedro e d. Miguel, e contribuiria para a abdicação
do primeiro imperador do Brasil e para a crise das regências.
Essa trajetória não faz de d. João VI,
certamente, um estadista de larga visão e profundas iniciativas. Mas, apesar
disso, como observou Oliveira Lima, o historiador que melhor o compreendeu, se
não foi um grande soberano, de quem se podem exaltar "brilhantes proezas
militares ou golpes audaciosos de administração", revelou-se um rei que
soube combinar dois predicados: "um de caráter, a bondade; o outro de
inteligência, o senso prático de governar". Sua seriedade e aplicação na
rotina burocrática da administração política joanina, e também as
transformações que promoveu no Rio de Janeiro com a mudança da fisionomia
urbana, o incremento do comércio, os inícios de uma vida cultural, a introdução
da imprensa e de novos hábitos, como os banhos de mar a 200 réis em balsas
flutuantes fundeadas na baía da Guanabara defronte ao Paço, talvez tenham sido
os fatores responsáveis pelo lugar que sua figura veio a ocupar no imaginário
dos brasileiros, como salientou o antropólogo Roberto DaMatta. Por isso,
torna-se preocupante que o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil tome d.
João VI, sem qualquer fundamento, para objeto de chacota, desprezando as muitas
facetas positivas desse personagem enredado em um período decisivo da nossa
história.
Lúcia Maria Bastos P. Neves e Guilherme Pereira das Neves são professores, respectivamente, dos
departamentos de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da
Universidade Federal Fluminense.
Fonte – Revista Nossa História - Ano I nº 1 - Nov.
2003
Saiba Mais – Bibliografia
LIMA, Manuel de Oliveira.
D. João VI no Brasil. 3a ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
MARQUES, A. H. de
Oliveira. D. João VI. In: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses. D. João VI e o seu tempo: Catálogo da Exposição no
Palácio Nacional da Ajuda (maio-julho 1999). Lisboa. 1999.
NEVES, Guilherme
P. D. João VI. In: R. Vaínfas (dir.). Dicionário do Brasil Imperial
(1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
TOSTES, Vera
Lúcia Bottrel (ed.). Anais do seminário internacional - D. João VI, um rei
aclamado na América. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000.
Saiba Mais – Links
Saiba – Mais - Filme
Carlota Joaquina
Direção: Carla
Camurati
Ano: 1995
Saiba Mais - Documentário
A Corte no Brasil
Ano: 2009
Áudio: Português
Duração: +- 20
minutos (cada episódio)
1º episódio – A fuga dos Reis – O Tejo tema de tantos e poemas, ponto de partida das viagens que levaram aos grandes feitos e descobertas dos navegadores lusitanos, foi testemunha de um embarque inusitado 200 anos atrás.
2º episódio – Nobreza e política – No
início do século XIX, a amizade entre Portugal e Inglaterra já tinha 500 anos.
A mais duradoura aliança entre dois países. Parceiros no comércio navegavam
juntos contra os piratas e os inimigos.
3º episódio – Um reino sem Rei – Um
povo abandonado. Depois da partida da família real a dor tomou conta dos
portugueses. Uma tristeza do fado, este sentimento de orfandade, faz parte da
história de Portugal.
4º episódio – A travessia – Ha
2900 km do Brasil, uma ilha vulcânica se ergue no meio do Oceano Atlântico. Na
Santa Helena, um Napoleão derrotado pelos ingleses, dita suas memórias a dois
companheiros, Admite que a invasão da Península Ibérica foi um erro, reconhece
que o príncipe D.João de Portugal, foi o único que conseguiu enganá-lo, quando
embarcou para o Brasil.
5º episódio – Chegada à Bahia – A
viagem da corte portuguesa, já durava quase dois meses desde a partida no porto
de Lisboa em Novembro de 1807. Um típico por de sol em Salvador, fez o soldado
de plantão no forte, no dia 21 de janeiro de 1808, levar um grande susto e
correu para contar a novidade. Ao norte, quatro embarcações que parecia ser de
guerra se aproximavam, a primeira no horizonte tinha a bandeira da Inglaterra.
João de Saldanha da Gama, o conde da Pontem governador geral da Bahia recebeu a
notícia e ficou em pânico. No diário que escreveu, ele relata o medo de uma
invasão inglesa até o outro de que as outras naus eram portuguesas e uma trazia
o pavilhão real.
6º episódio – O desembarque no Rio de Janeiro
– O
brique voador era a nau mais veloz da frota portuguesa. A tripulação do voador
fora designada uma importante missão. Chegar ao Brasil o quanto antes. O voador
partiu de Portugal na véspera do embarque da corte. No navio seguiam
documentos, com algumas decisões do príncipe regente D. João, um comunicado que
ia deixar o Rio de Janeiro em polvorosa.
7º episódio – A economia do tempo de D. João
– O
Brasil já era a economia do futuro em 1808. Um território imenso a ser
explorado, o interior ainda desconhecido, um extenso litoral com portos
apropriados para o comércio. Um mercado consumidor praticamente vigente.
Ansioso para receber novidades estrangeiras. Muitas eram as possibilidades e
infinitas as dificuldades para o governo de D. João.
8º episódio – A política no tempo de D. João
– No
tempo de D. João, governar Portugal era viver na defesa. Temer constantemente
os vizinhos, maiores, mais fortes e poderosos. No Brasil o soberano destas
vastas terras, descobriu que havia uma enorme diferença. Naquela época, tamanho
era documento, a conquista de territórios, uma carta na manga, para negociar a
qualquer momento em períodos de guerra ou quando chegasse a paz.
9º episódio – A corrupção – No
Brasil colonial ostentar riqueza era proibido. Nas roupas, nada de tecidos
nobres ou ricos bordados, nas casas muita simplicidade. Tudo isso mudou com a
chegada da corte. O luxo nas festas, os gastos descontrolados, a troca de
favores, a burocracia aliada a corrupção, tinham exemplos que vinham de cima,
do trono e dos fidalgos que cercavam a monarquia aqui instalada.
10º episódio – Arte e ciência, o Reino do
saber – Quando
Napoleão perdeu a guerra, a família real portuguesa não voltou para a Europa. O
Brasil naquela altura dos acontecimentos, tinha se tornado o melhor lugar para
se chamar de lar, onde sede do Império Colonial Português. Faltava apenas
arrumar a casa, enfeitar o Rio de Janeiro, dar uma sofisticação a este reino
tropical, foi o que fez D. João.
11º episódio – Templo dos livros e da música – As catedrais e as bibliotecas
são até hoje templos imponentes em Portugal. Em 1808, na nova corte do Rio de
janeiro, D. João fez que são de cultivar as duas paixões da Família Bragança.
Quando voltou para Lisboa, deixou os tesouros na Real Biblioteca no Rio de
Janeiro. Enquanto viveu no Brasil contratou músicos, maestros e cantores trouxe
atrações internacionais. Duzentos anos atrás, encontramos as raízes das nossas
bibliotecas públicas e da música brasileira.
12º episódio – O retorno da corte – A
família de D. João VI, viveu uma saga surpreendente até os momentos finais. O
Rei não queria deixar o Rio de Janeiro, em Lisboa a rainha Carlota Joaquina e
seu filho, príncipe Miguel, comandaram um governo de terror. Duas crianças,
filhos de D. Pedro, receberam as coroas do Brasil e de Portugal. Duzentos anos
depois com o fim da monarquia no Brasil, ficaram os herdeiros do trono que não
existe mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário