Exploradas por militantes republicanos,
manifestações contra taxa sobre transporte urbano tumultuam capital do Império
e deixam mortos e feridos pelas ruas.
José
Murilo de Carvalho
Mas Lopes Trovão e outros militantes
republicanos, buscando tirar o máximo proveito político da ação da polícia,
recusaram o encontro. Divulgaram um manifesto dirigido ao soberano, convocando-o
a ir ao encontro do povo. A Gazeta da Noite de Lopes Trovão e panfletos
distribuídos pela cidade passaram a pregar o boicote da taxa e a incitar a
população a reagir com violência, arrancando os trilhos dos bondes. Outra
manifestação foi convocada para o dia 1º de janeiro, data da entrada em vigor
da taxa, agora no centro da cidade, no Largo do Paço, hoje Praça 15 de
Novembro.
Nesse dia, a taxa estava sendo paga até
que, ao meio dia, a multidão se reuniu no local previsto. Percebendo talvez a
enrascada em que se metera, Lopes Trovão não incitou a multidão à ação. A massa
moveu-se, então, pelas ruas do centro aplaudindo as redações dos jornais de
oposição e se dirigiu ao Largo de São Francisco, ponto final de várias linhas
de bonde. Em frente ao prédio da Gazeta da Noite, o próprio Trovão fez um apelo
aos manifestantes para que se dispersassem. Mas àquela altura ele já perdera o
controle dos acontecimentos. A massa popular concentrou-se nos arredores da Rua
Uruguaiana e do Largo de São Francisco. O delegado que comandava as tropas da
polícia pediu reforços ao Exército, mas, antes que a ajuda chegasse, ordenou à
polícia que dispersasse a multidão a cacetadas.
A um grito de “Fora o vintém!”, os
manifestantes começaram a espancar condutores, esfaquear mulas, virar bondes e
arrancar trilhos ao longo da rua Uruguaiana. Dois pelotões do Exército ocuparam
o Largo de S. Francisco, postando-se parte da tropa em frente à Escola
Politécnica, atual prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.
O povo, que só detestava a polícia, aplaudiu a tropa. Mas alguns mais exaltados
passaram a arrancar paralelepípedos e atirá-los contra os soldados. Por
infelicidade, um deles atingiu justo o comandante da tropa, tenente-coronel
Antônio Enéias Gustavo Galvão, primo de Deodoro da Fonseca, militar que uma
década depois se tornaria o primeiro presidente do Brasil. O oficial
descontrolou-se e ordenou fogo contra a multidão.
As estatísticas de mortos e feridos são
imprecisas. Falou-se em 15 a 20 feridos e em três a dez mortos. Entre os
últimos, estavam estrangeiros e o flautista Loló, condutor da Cia. de São
Cristóvão, atingido por uma pedrada. A multidão dispersou-se e, salvo pequenos
distúrbios nos três dias seguintes, estava findo o motim do vintém. A cobrança
da taxa passou a ser quase aleatória. As próprias companhias de bondes pediam
ao governo que a revogasse. Desmoralizado, o ministério caiu a 28 de março. O
novo ministério revogou o desastrado tributo.
A capital do Império estava acostumada a
distúrbios de rua. Vivera em quase permanente agitação entre 1820 e 1840. Nessa
última data, o povo exigiu na rua a maioridade do imperador. A partir daí, no
entanto, refletindo a estabilização política do Segundo Reinado, reduzira-se
muito a agitação. A tranquilidade das ruas só fora quebrada nos protestos
contra Christie, quando a multidão, liderada por Teófilo Otoni, ameaçou
comerciantes ingleses e aplaudiu a ação do imperador. O que a trouxe de volta
em 1879?
Em 1878, depois de 10 anos de domínio
conservador, subira ao poder o gabinete liberal de Sinimbu, encarregado de
fazer a reforma eleitoral. Dividido por conflitos internos, desagradou a gregos
e troianos. Os republicanos estavam furiosos com Lafaiete Rodrigues Pereira,
ministro da Justiça, que assinara o Manifesto Republicano de 1870, e agora se
bandeava para o campo liberal. A principal fonte de insatisfação, no entanto,
vinha da política fiscal do ministro da Fazenda, Afonso Celso de Assis
Figueiredo, futuro visconde de Ouro Preto, que tinha fama de excelente
administrador e financista. Para enfrentar as dificuldades financeiras geradas
pelos enormes gastos com a grande seca de 1877 no norte do país, propôs ele no
projeto de lei orçamentária de 1879, aprovado pela Câmara, vários aumentos de
impostos antigos e a introdução de alguns novos. Atingiu o bolso de todos,
proprietários de escravos, aspirantes a títulos nobiliárquicos, fumantes,
amantes do vinho, comerciantes e simples cidadãos. As medidas mais irritantes
foram o novo imposto sobre vencimentos dos funcionários públicos, o antepassado
do imposto de renda, e a taxa de um vintém sobre o valor das passagens no
transporte urbano.
O novo imposto e a taxa atingiram
diretamente duas categorias, os funcionários públicos e os usuários de bondes.
Em 1870, a capital tinha 192 mil habitantes na área urbana, dos quais 11 mil
funcionários públicos, entre civis, militares e eclesiásticos, já que naquela
época o catolicismo era a religião oficial do Estado. Havia quatro grandes
companhias de ferro-carris urbanos, ou de bondes, como ficaram conhecidos: a
Botanical Garden Co., que cobria a zona sul, saindo da rua Gonçalves Dias, a
Cia. de São Cristóvão, concentrada na zona norte, com ponto final no Largo de
São Francisco, a Ferro-carril de Vila Isabel, que partia da Praça
Tiradentes, e a Cia. de Carris Urbanos, que atendia ao centro, incluindo a zona
portuária.
O bonde era um transporte de massa. Cada
carro, puxado por animais sobre trilhos, transportava 30 passageiros. Só as
três primeiras companhias acima listadas transportaram em 1879 mais de 20
milhões de passageiros. É óbvio que a taxa do vintém jogava muita gente contra
o governo, sobretudo contra o Afonso Vintém, como ficou conhecido o ministro da
Fazenda. Para atingi-los, foram atacadas no dia primeiro as companhias de
bondes, com exceção da Botanical Garden, de propriedade norte-americana, que se
prontificou a pagar ela mesma a taxa.
Desse clima de insatisfação, tiraram
vantagem os agitadores republicanos. Ao que parece, na demonstração de São
Cristóvão estavam presentes, sobretudo, pessoas de melhor situação social,
certamente muitos funcionários públicos. Na do dia 1º, teria entrado em ação a
massa dos usuários mais pobres, acrescida da tropa barra-pesada do centro e da
zona portuária. Não por acaso, os líderes do movimento perderam o controle da
multidão nesse dia.
Embora legal, a taxa do vintém era
profundamente impolítica, como se dizia na época. O ministro fora alertado para
as possíveis reações. Mas Afonso Celso era tão competente quanto teimoso. Pagou
por isso alto preço em 1880, como pagaria em 1889, por ocasião da proclamação
da República. A reação da polícia foi infeliz em 28 de dezembro, ao não
negociar a audiência com o imperador, e imprudente em 1º de janeiro. A do
Exército, simplesmente desastrada.
Os acontecimentos chocaram o Imperador. Em
cartas à condessa de Barral e ao conde de Gobineau, afirmou que em 40 anos de
reinado nunca tinha sido usada a força contra o povo da capital do Império. Não
lhe escapou mesmo a conotação republicana dos incitadores do motim. Afirmou à
condessa que seria mais feliz como presidente de uma república.
Mas a revolta não foi republicana,
afirmaram seus próprios líderes. Muitos interesses feridos nela se fundiram, de
grandes e de políticos, de gente miúda e de simples cidadãos. Uma grande
explosão social, detonada por um pobre vintém.
José Murilo de Carvalho é professor titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da Academia Brasileira de
Letras, do IHGB e da Academia Brasileira de Ciências e autor de D. Pedro II: ser ou não ser. São Paulo:
Cia. das Letras, 2007.
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