Difamado pela direita e pela esquerda e subestimado nos meios
acadêmicos apesar de sua importância histórica, João Goulart foi o único
presidente brasileiro a morrer, de tristeza, no exílio.
Jorge Ferreira
João Belchior
Marques Goulart, o Jango, foi uma das personalidades políticas mais importantes
no Brasil do século XX. Reconhecido pelas esquerdas e pelo movimento sindical
como líder reformista e nacionalista, era identificado pela população como o
herdeiro político de Getúlio Vargas e do trabalhismo. No entanto, após o golpe
civil-militar que o derrubou da Presidência da República, em 1964, a imagem de
Jango foi relegada ao esquecimento. Diferentemente de Getúlio ou de Juscelino
Kubitschek, pouco se fala dele - e, quando se fala, fala-se mal. Como explicar
que uma liderança popular tão importante tenha sido esquecida pela sociedade?
Sua trajetória política começou com o
retorno de Getúlio Vargas a São Borja, em 1945, após ter sido afastado pelos
militares da Presidência. Abandonado por amigos, pouca gente além de Jango o
visitava, nascendo entre os dois forte amizade. Getúlio o aconselhou a
ingressar no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em 1947, foi eleito deputado
estadual e, em 1950, deputado federal, mas assumiu a Secretaria do Interior e
Justiça do governo gaúcho. No entanto, Vargas, agora presidente eleito,
necessitava do amigo por perto. Assim, Goulart assumiu a presidência do PTB em
junho de 1952 e, um ano depois, foi nomeado ministro do Trabalho.
O novo ministro tomou medidas que
beneficiaram os trabalhadores, como fiscalizar o cumprimento das leis sociais.
Jango procurava soluções para as greves na mesa de negociação e, uma vez por
semana, recebia trabalhadores e sindicalistas para conversar. Os políticos
conservadores ficaram chocados. Afinal, um ministro estava recebendo, em seu
gabinete, gente de origem social humilde. Na imprensa, Carlos Lacerda
desferia-lhe ataques violentos, chamando-o de "despreparado",
"ignorante", "demagogo", "corrupto", "manipulador
dos operários" e frequentador de cabarés. Sua última iniciativa foi a de
propor que o salário mínimo, muito corroído pela inflação, fosse duplicado. Com
um manifesto, militares criticaram o governo e o ministro. Para preservar
Getúlio, Jango combinou com ele a própria demissão. Deixou o ministério em
fevereiro de 1954, com grande prestígio no movimento sindical e no PTB.
Goulart estava afinado com a conjuntura
europeia de valorização da democracia e do modelo de Estado de bem-estar social
e com o sentimento antiimperialista latino-americano. Seu projeto de
trabalhismo era o de firmar um pacto social entre empresários e trabalhadores,
ampliando o mercado interno e distribuindo a renda, tendo o nacionalismo como
matriz para o desenvolvimento do país.
Para as eleições presidenciais de 1955,
PSD e PTB lançaram Juscelino para presidente e Goulart para vice. Visando a
prejudicar Jango, Lacerda apresentou carta falsificada atribuída ao deputado
peronista Antonio Brandi, afirmando que Goulart preparava uma guerra civil no
Brasil. Mesmo difamado pela direita, ele comprovou seu prestígio. Concorrendo à
vice-presidência, teve 600 mil votos a mais que Juscelino - na época, os votos
para presidente e vice não eram vinculados. Em 1960, Jânio Quadros venceu as
eleições e Goulart foi novamente eleito vice-presidente. Meses depois, com a
renúncia do primeiro, a cúpula militar vetou sua posse. Deu-se, a partir daí,
um dos episódios mais marcantes de toda a República. No Rio Grande do Sul, o
governador Leonel Brizola defendeu os direitos de Jango com a Campanha da
Legalidade. Empresários, sindicalistas, a UNE, a OAB, a CNBB, os partidos
políticos e a imprensa alinharam-se pela defesa da Constituição. O próprio
Exército se dividiu. A saída conciliatória surgiu com a adoção do
parlamentarismo como novo sistema de governo. Contrariado, Goulart aceitou a
mudança de regime. Afinal, o país estava dividido.
No dia 7
de setembro de 1961, ele assumiu a Presidência, sob gravíssima crise militar e
política, com as contas públicas descontroladas e tendo que administrar um país
endividado. Seu programa de governo tinha por objetivo alterar as estruturas
econômicas e sociais do país - eram as chamadas "reformas de base".
Entre estas constavam as reformas bancária, fiscal, urbana, tributária,
administrativa, agrária e universitária, além da extensão do voto aos
analfabetos, o controle do capital estrangeiro e o monopólio estatal de setores
estratégicos da economia. Jango tinha uma dupla estratégia: sabotar
o parlamentarismo e ampliar sua base política com a aliança entre PTB e PSD.
Quanto ao primeiro item, obteve sucesso. No plebiscito de 6 de janeiro de 1963,
sua vitória foi avassaladora: dos 11,5 milhões de eleitores, 9,5 milhões
aprovaram o retorno do presidencialismo. Mas no segundo encontrou resistências.
O movimento sindical, as esquerdas e setores radicais do PTB exigiam que
Goulart governasse somente com eles, excluindo o PSD. Os tempos não eram de
diálogo, mas de radicalização. Sob a liderança de Leonel Brizola, seu cunhado,
as organizações de estudantes, camponeses, sindicalistas, sargentos e grupos da
esquerda exigiam "reforma agrária na lei ou na marra". Os
parlamentares do PSD, assustados com a radicalização, aproximaram-se de membros
da União Democrática Nacional (UDN) - que fazia forte oposição ao governo de
Goulart -, formando uma aliança conservadora dentro do Congresso.
Vitorioso no plebiscito, Goulart
apresentou seu programa de estabilização econômica. Formulado pelo economista
Celso Furtado, o Plano Trienal era inovador: previa primeiro o controle da
inflação seguindo os acordos com o FMI; depois, a implementação da reforma
agrária. As esquerdas atacaram o projeto e os empresários também se opuseram.
Sem apoio político, o plano fracassou. Como alternativa, Jango apresentou o
projeto da reforma agrária. Embora o PSD aceitasse medidas moderadas, as
esquerdas exigiam uma reforma radical, sem indenizações. Ao mesmo tempo, o
governo norte-americano bloqueou os créditos ao Brasil, exigindo o combate à
inflação com arrocho salarial e recessão. Jango preferiu regulamentar a Lei de
Remessa de Lucros. Do capital que as empresas estrangeiras investissem no país,
o dispositivo limitava em apenas 10% ao ano o envio dos lucros para o exterior.
Em outubro de 1963, sob feroz ataque de
Carlos Lacerda, o presidente propôs o estado de sítio, o que implicava a
suspensão temporária de certas garantias constitucionais. Ao mesmo tempo,
políticos, empresários e militares de direita, organizados no complexo Ipes-Ibad,
se articulavam para conspirar contra o governo, desencadeando ampla campanha
anticomunista.
Goulart enfrentava grandes dificuldades.
O governo norte-americano estava determinado a estrangular financeiramente o
Brasil. A estratégia de coligar os "pessedistas" com os trabalhistas
não avançou. Para a ala radical do PTB e as esquerdas, buscar o apoio do PSD
não passava de "política de conciliação". Foi no afastamento entre o
centro e a esquerda, marcada por crescente radicalização, que as direitas civis
e militares golpistas cresceram.
No comício de 13 de março, na Central do
Brasil, Goulart aliou-se às esquerdas, adotando a estratégia de entrar em
confronto com os conservadores. A proposta era a de mobilizar os trabalhadores
contra o Congresso, obrigando os parlamentares a aprovar as reformas. Na
avaliação de Maria Celina D'Araujo, o projeto reformista incluía a tomada do
poder pelos setores mais radicais do PTB.
Após o comício, Jango apresentou ao
Congresso as reformas de base, inclusive a reforma agrária sem indenizações. A
partir daí, o conflito entre esquerda e direita se radicalizou ainda mais. Para
a cientista política Argelina Figueiredo, as forças da direita sempre estiveram
dispostas a romper com a ordem democrática, utilizando-as para defender seus
interesses. Mas as esquerdas, por sua vez, também lutavam pelas reformas a
qualquer preço, inclusive com o sacrifício da democracia. Dias depois,
marinheiros rebelaram-se contra o comando da Marinha de Guerra. A anistia que
receberam do governo atingiu a integridade profissional das Forças Armadas.
Para os militares, tratava-se da quebra da disciplina e da hierarquia, com
apoio governamental. Os oficiais legalistas finalmente cederam aos argumentos
de seus minoritários colegas conspiradores. Rapidamente a direita golpista
cresceu e ganhou o apoio de amplos setores civis e militares.
No dia 1
de abril de 1964, o presidente foi deposto. Jango não resistiu ao golpe
civil-militar por duas razões. A primeira é que os envolvidos no golpe não
imaginavam que uma ditadura se imporia por 21 anos. Pesquisas comprovam que a
coligação militar-civil golpista era contra as esquerdas, mas não a favor de
ditaduras. Goulart imaginou que o golpe repetiria a trajetória do ocorrido em
1945: o presidente é deposto, conhece o exílio dentro do país e depois retoma
os caminhos normais da vida política.
A segunda razão que o fez desistir da
resistência foi sua percepção da extensão do movimento. Participavam do golpe a
maioria dos comandos das Forças Armadas, governadores de importantes estados,
representantes de meios de comunicação, ampla coalizão partidária no Congresso,
empresários e setores das classes médias. Fato mais grave: Jango soube que o
governador Magalhães Pinto declararia Minas Gerais em "estado de
beligerância", o que permitiria o apoio diplomático e militar dos Estados
Unidos.
Ao saber que uma frota norte-americana
estava no litoral brasileiro, tomou a decisão de não resistir. Na sua opinião,
iria expor a população a uma guerra civil, com risco até da divisão territorial
do país. Na avaliação do jornalista Zuenir Ventura, "Jango teve um dos seus
momentos mais bonitos ao evitar aquilo que imaginava que viria a ser uma guerra
civil com um milhão de mortos. Conta pontos para ele não querer resistir dessa
maneira. Não acho, como muitos achavam e ainda acham, que a atitude de Jango
tenha sido covarde, que ele tenha fugido da luta, que ele tenha fugido do país.
Chegou um momento em que ele deve ter visto que aquela seria uma luta sangrenta
(...). Teve a grandeza de evitar que houvesse muitas mortes".
Contudo, a partir daí, uma outra história
sobre Goulart começou a ser contada. Os militares e civis golpistas vitoriosos
amplificaram os insultos que Lacerda lançava contra ele desde 1953:
"ignorante", "despreparado", "demagogo" e
"corrupto", acrescentando "fraco" e "subversivo".
Às ofensas dos direitistas juntaram-se os ataques das esquerdas:
"paternalista", "conciliador", "covarde",
"traidor da classe trabalhadora", "dúbio e vacilante devido à
sua origem de classe". A seguir, setores da intelectualidade brasileira
acrescentaram outra palavra ao conjunto de ofensas: "populista". E
mais insultos foram formulados: "medíocre", "incompetente",
"golpista" e "alcoólatra". Com o passar do tempo, Jango recebeu
o desprezo político e acadêmico e foi condenado ao esquecimento. Nos livros
didáticos, ele merece duas ou três linhas; na televisão, não aparece; nos
jornais, sumiu de vez; nas pesquisas do Ibope, só estão Vargas, Juscelino e
Sarney; na pesquisa universitária, surge como a síntese do que havia de pior no
"populismo".
Exilado no Uruguai, Jango sempre se
sentiu inconformado com a proibição de seu regresso. Em 1967, Lacerda e
Juscelino, deixando de lado os ressentimentos, se uniram a ele na luta pela
redemocratização, formando a chamada Frente Ampla. A ditadura, no entanto,
declarou a organização ilegal. No início do exílio, Goulart conseguiu
dissimular sua tristeza. Mas nos dois últimos anos de vida, abandonado por
todos, não tinha como disfarçar a amargura. Não conseguia compreender o ódio
que os militares brasileiros lhe dedicavam se, durante sua vida pública, não
perseguiu ninguém. Em 1969, sofreu um infarto.
Com o golpe militar no Uruguai em 1973,
passou a sofrer humilhações. No ano seguinte, mudou-se para a Argentina, no
momento em que a extrema direita daquele país recorria a atentados. A seguir, a
Operação Condor começou a eliminar líderes esquerdistas do continente. Em 1976,
Goulart se sentia acuado e decidiu regressar ao Brasil. Na noite do dia 5
dezembro, dormiu com a mulher, Maria Thereza, em sua estância na Argentina. Seu
objetivo era acordar, pegar o carro e viajar para São Borja, mesmo correndo o
risco de ser preso. Contudo, horas mais tarde, na madrugada do dia 6, Maria
Thereza, assustada, percebeu que Jango estava morto, vítima de outro infarto.
Algumas versões falam em assassinato, por
agentes da Operação Condor. Mais prudente é lembrar que Jango era cardíaco.
Vale também considerar a avaliação de seu ministro da Justiça, Abelardo Jurema.
Para ele, o exílio é uma experiência muito dolorosa e, se o exilado não tiver
forças, ele sofre de "mal-triste". "Mal-triste é uma doença que
dá no boi que sai de uma região para outra. O boi começa a ficar triste e
morre." Jango, em sua avaliação, morreu de "mal-triste".
"Ele não aguentou". A ditadura militar, num exemplo de mesquinharia
política, quis impedir que seu corpo entrasse no Brasil e fosse sepultado em
São Borja. Amigos, políticos do MDB e a população gaúcha se mobilizaram. Seu
enterro foi um ato de protesto contra a ditadura. Foi o único presidente da
República a morrer no exílio.
Jorge Ferreira é professor
de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e organizador do livro O
Populismo e Sua História (Civilização
Brasileira, 2001)
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional -
Edição nº 3 - Setembro de 2005
Saiba Mais – Bibliografia
BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977.
D'ARAUJO, Maria
Celina. Sindicatos, carisma e poder.
Rio de Janeiro: Editora da FGV. 1996.
FIGUEIREDO,
Argelina. Democracia ou reformas? Alternativas
democráticas à crise política: 1961-1964. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
OTERO, Jorge. João Goulart. Lembrança do exílio. Rio
de Janeiro: Casa Jorge, 2001
Saiba Mais – Links
Saiba Mais – Documentário
Jango
O documentário de Sílvio Tendler
acompanha a vida política de João Belchior Marques Goulart (1918-1976), o
Jango, de 1950 a 1976, de seu primeiro cargo importante, como Ministro do
Trabalho no governo de Getúlio Vargas, até o exílio no Uruguai e Argentina,
depois do golpe de 1964. Tendler explora a vida de Jango, gaúcho de São Borja e
único presidente brasileiro a morrer no exílio, apresentando imagens de filmes
caseiros, documentários antigos, fotos e entrevistas, e, depoimentos
importantes, como os do general Antônio Carlos Muricy, de Leonel Brizola, de
Aldo Arantes, de Afonso Arinos, de Magalhães Pinto, de Frei Betto, de Celso
Furtado, entre outros.
Há uma grande
quantidade de imagens inéditas, como as viagens de Goulart à Russia e à China,
Jango discursando na ONU, e do comício da Central do Brasil, em 13
de março de 1964, que, antecede ao golpe militar de 31 de março.
Documentário
vencedor dos prêmios: Música Original (Milton Nascimento e Wagner Tiso),
Melhor Filme (Júri Popular) e Prêmio Especial do Júri, XII Festival do Cinema
Brasileiro de Gramado, RS, 1984. Prêmio Especial do Júri para Documentário,
Festival Novo Cinema Latino-Americano, Havana, Cuba, 1984. Melhor Filme do
Público, Festival de Nova Delhi, Índia, 1985.
Direção: Sílvio
Tendler
Áudio: Português
Duração: 115 minutos
"Dossiê Jango"
Documentário
reabre a discussão sobre o suposto assassinato do ex-presidente João Goulart,
em 1976, e reinterpreta o período mais obscuro da história brasileira. Em clima
de thriller político, a trama traz à tona novas informações para a reconstrução
dos fatos. Com depoimentos de Carlos Heitor Cony, Flávio Tavares, Ferreira
Goulart, Geneton Moraes Neto, João Vicente Goulart e Maria Thereza Goulart,
entre outros.
O filme faturou os prêmios de Melhor Documentário pelo Júri Popular no Festival do Rio 2012; Melhor Filme de Longa Metragem pelo Júri Popular no 16º Festival de Tiradentes 2013; Melhor Documentário pelo Júri Popular e Oficial no 17º FAM.
O filme faturou os prêmios de Melhor Documentário pelo Júri Popular no Festival do Rio 2012; Melhor Filme de Longa Metragem pelo Júri Popular no 16º Festival de Tiradentes 2013; Melhor Documentário pelo Júri Popular e Oficial no 17º FAM.
Direção:
Paulo Henrique Fontenelle
Ano:
2012
Duração:
102 minutos
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