“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 15 de outubro de 2017

Condenado ao desprezo

Difamado pela direita e pela esquerda e subestimado nos meios acadêmicos apesar de sua importância histórica, João Goulart foi o único presidente brasileiro a morrer, de tristeza, no exílio.
Jorge Ferreira
      João Belchior Marques Goulart, o Jango, foi uma das personalidades políticas mais importantes no Brasil do século XX. Reconhecido pelas esquerdas e pelo movimento sindical como líder reformista e nacionalista, era identificado pela população como o herdeiro político de Getúlio Vargas e do trabalhismo. No entanto, após o golpe civil-militar que o derrubou da Presidência da República, em 1964, a imagem de Jango foi relegada ao esquecimento. Diferentemente de Getúlio ou de Juscelino Kubitschek, pouco se fala dele - e, quando se fala, fala-se mal. Como explicar que uma liderança popular tão importante tenha sido esquecida pela sociedade?
      Sua trajetória política começou com o retorno de Getúlio Vargas a São Borja, em 1945, após ter sido afastado pelos militares da Presidência. Abandonado por amigos, pouca gente além de Jango o visitava, nascendo entre os dois forte amizade. Getúlio o aconselhou a ingressar no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em 1947, foi eleito deputado estadual e, em 1950, deputado federal, mas assumiu a Secretaria do Interior e Justiça do governo gaúcho. No entanto, Vargas, agora presidente eleito, necessitava do amigo por perto. Assim, Goulart assumiu a presidência do PTB em junho de 1952 e, um ano depois, foi nomeado ministro do Trabalho.
      O novo ministro tomou medidas que beneficiaram os trabalhadores, como fiscalizar o cumprimento das leis sociais. Jango procurava soluções para as greves na mesa de negociação e, uma vez por semana, recebia trabalhadores e sindicalistas para conversar. Os políticos conservadores ficaram chocados. Afinal, um ministro estava recebendo, em seu gabinete, gente de origem social humilde. Na imprensa, Carlos Lacerda desferia-lhe ataques violentos, chamando-o de "despreparado", "ignorante", "demagogo", "corrupto", "manipulador dos operários" e frequentador de cabarés. Sua última iniciativa foi a de propor que o salário mínimo, muito corroído pela inflação, fosse duplicado. Com um manifesto, militares criticaram o governo e o ministro. Para preservar Getúlio, Jango combinou com ele a própria demissão. Deixou o ministério em fevereiro de 1954, com grande prestígio no movimento sindical e no PTB.
      Goulart estava afinado com a conjuntura europeia de valorização da democracia e do modelo de Estado de bem-estar social e com o sentimento antiimperialista latino-americano. Seu projeto de trabalhismo era o de firmar um pacto social entre empresários e trabalhadores, ampliando o mercado interno e distribuindo a renda, tendo o nacionalismo como matriz para o desenvolvimento do país.
      Para as eleições presidenciais de 1955, PSD e PTB lançaram Juscelino para presidente e Goulart para vice. Visando a prejudicar Jango, Lacerda apresentou carta falsificada atribuída ao deputado peronista Antonio Brandi, afirmando que Goulart preparava uma guerra civil no Brasil. Mesmo difamado pela direita, ele comprovou seu prestígio. Concorrendo à vice-presidência, teve 600 mil votos a mais que Juscelino - na época, os votos para presidente e vice não eram vinculados. Em 1960, Jânio Quadros venceu as eleições e Goulart foi novamente eleito vice-presidente. Meses depois, com a renúncia do primeiro, a cúpula militar vetou sua posse. Deu-se, a partir daí, um dos episódios mais marcantes de toda a República. No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola defendeu os direitos de Jango com a Campanha da Legalidade. Empresários, sindicalistas, a UNE, a OAB, a CNBB, os partidos políticos e a imprensa alinharam-se pela defesa da Constituição. O próprio Exército se dividiu. A saída conciliatória surgiu com a adoção do parlamentarismo como novo sistema de governo. Contrariado, Goulart aceitou a mudança de regime. Afinal, o país estava dividido.
      No dia 7 de setembro de 1961, ele assumiu a Presidência, sob gravíssima crise militar e política, com as contas públicas descontroladas e tendo que administrar um país endividado. Seu programa de governo tinha por objetivo alterar as estruturas econômicas e sociais do país - eram as chamadas "reformas de base". Entre estas constavam as reformas bancária, fiscal, urbana, tributária, administrativa, agrária e universitária, além da extensão do voto aos analfabetos, o controle do capital estrangeiro e o monopólio estatal de setores estratégicos da economia.     Jango tinha uma dupla estratégia: sabotar o parlamentarismo e ampliar sua base política com a aliança entre PTB e PSD. Quanto ao primeiro item, obteve sucesso. No plebiscito de 6 de janeiro de 1963, sua vitória foi avassaladora: dos 11,5 milhões de eleitores, 9,5 milhões aprovaram o retorno do presidencialismo. Mas no segundo encontrou resistências. O movimento sindical, as esquerdas e setores radicais do PTB exigiam que Goulart governasse somente com eles, excluindo o PSD. Os tempos não eram de diálogo, mas de radicalização. Sob a liderança de Leonel Brizola, seu cunhado, as organizações de estudantes, camponeses, sindicalistas, sargentos e grupos da esquerda exigiam "reforma agrária na lei ou na marra". Os parlamentares do PSD, assustados com a radicalização, aproximaram-se de membros da União Democrática Nacional (UDN) - que fazia forte oposição ao governo de Goulart -, formando uma aliança conservadora dentro do Congresso.
      Vitorioso no plebiscito, Goulart apresentou seu programa de estabilização econômica. Formulado pelo economista Celso Furtado, o Plano Trienal era inovador: previa primeiro o controle da inflação seguindo os acordos com o FMI; depois, a implementação da reforma agrária. As esquerdas atacaram o projeto e os empresários também se opuseram. Sem apoio político, o plano fracassou. Como alternativa, Jango apresentou o projeto da reforma agrária. Embora o PSD aceitasse medidas moderadas, as esquerdas exigiam uma reforma radical, sem indenizações. Ao mesmo tempo, o governo norte-americano bloqueou os créditos ao Brasil, exigindo o combate à inflação com arrocho salarial e recessão. Jango preferiu regulamentar a Lei de Remessa de Lucros. Do capital que as empresas estrangeiras investissem no país, o dispositivo limitava em apenas 10% ao ano o envio dos lucros para o exterior.
      Em outubro de 1963, sob feroz ataque de Carlos Lacerda, o presidente propôs o estado de sítio, o que implicava a suspensão temporária de certas garantias constitucionais. Ao mesmo tempo, políticos, empresários e militares de direita, organizados no complexo Ipes-Ibad, se articulavam para conspirar contra o governo, desencadeando ampla campanha anticomunista.
      Goulart enfrentava grandes dificuldades. O governo norte-americano estava determinado a estrangular financeiramente o Brasil. A estratégia de coligar os "pessedistas" com os trabalhistas não avançou. Para a ala radical do PTB e as esquerdas, buscar o apoio do PSD não passava de "política de conciliação". Foi no afastamento entre o centro e a esquerda, marcada por crescente radicalização, que as direitas civis e militares golpistas cresceram.
      No comício de 13 de março, na Central do Brasil, Goulart aliou-se às esquerdas, adotando a estratégia de entrar em confronto com os conservadores. A proposta era a de mobilizar os trabalhadores contra o Congresso, obrigando os parlamentares a aprovar as reformas. Na avaliação de Maria Celina D'Araujo, o projeto reformista incluía a tomada do poder pelos setores mais radicais do PTB.
      Após o comício, Jango apresentou ao Congresso as reformas de base, inclusive a reforma agrária sem indenizações. A partir daí, o conflito entre esquerda e direita se radicalizou ainda mais. Para a cientista política Argelina Figueiredo, as forças da direita sempre estiveram dispostas a romper com a ordem democrática, utilizando-as para defender seus interesses. Mas as esquerdas, por sua vez, também lutavam pelas reformas a qualquer preço, inclusive com o sacrifício da democracia. Dias depois, marinheiros rebelaram-se contra o comando da Marinha de Guerra. A anistia que receberam do governo atingiu a integridade profissional das Forças Armadas. Para os militares, tratava-se da quebra da disciplina e da hierarquia, com apoio governamental. Os oficiais legalistas finalmente cederam aos argumentos de seus minoritários colegas conspiradores. Rapidamente a direita golpista cresceu e ganhou o apoio de amplos setores civis e militares.
      No dia 1 de abril de 1964, o presidente foi deposto. Jango não resistiu ao golpe civil-militar por duas razões. A primeira é que os envolvidos no golpe não imaginavam que uma ditadura se imporia por 21 anos. Pesquisas comprovam que a coligação militar-civil golpista era contra as esquerdas, mas não a favor de ditaduras. Goulart imaginou que o golpe repetiria a trajetória do ocorrido em 1945: o presidente é deposto, conhece o exílio dentro do país e depois retoma os caminhos normais da vida política.
      A segunda razão que o fez desistir da resistência foi sua percepção da extensão do movimento. Participavam do golpe a maioria dos comandos das Forças Armadas, governadores de importantes estados, representantes de meios de comunicação, ampla coalizão partidária no Congresso, empresários e setores das classes médias. Fato mais grave: Jango soube que o governador Magalhães Pinto declararia Minas Gerais em "estado de beligerância", o que permitiria o apoio diplomático e militar dos Estados Unidos.
      Ao saber que uma frota norte-americana estava no litoral brasileiro, tomou a decisão de não resistir. Na sua opinião, iria expor a população a uma guerra civil, com risco até da divisão territorial do país. Na avaliação do jornalista Zuenir Ventura, "Jango teve um dos seus momentos mais bonitos ao evitar aquilo que imaginava que viria a ser uma guerra civil com um milhão de mortos. Conta pontos para ele não querer resistir dessa maneira. Não acho, como muitos achavam e ainda acham, que a atitude de Jango tenha sido covarde, que ele tenha fugido da luta, que ele tenha fugido do país. Chegou um momento em que ele deve ter visto que aquela seria uma luta sangrenta (...). Teve a grandeza de evitar que houvesse muitas mortes".
      Contudo, a partir daí, uma outra história sobre Goulart começou a ser contada. Os militares e civis golpistas vitoriosos amplificaram os insultos que Lacerda lançava contra ele desde 1953: "ignorante", "despreparado", "demagogo" e "corrupto", acrescentando "fraco" e "subversivo". Às ofensas dos direitistas juntaram-se os ataques das esquerdas: "paternalista", "conciliador", "covarde", "traidor da classe trabalhadora", "dúbio e vacilante devido à sua origem de classe". A seguir, setores da intelectualidade brasileira acrescentaram outra palavra ao conjunto de ofensas: "populista". E mais insultos foram formulados: "medíocre", "incompetente", "golpista" e "alcoólatra". Com o passar do tempo, Jango recebeu o desprezo político e acadêmico e foi condenado ao esquecimento. Nos livros didáticos, ele merece duas ou três linhas; na televisão, não aparece; nos jornais, sumiu de vez; nas pesquisas do Ibope, só estão Vargas, Juscelino e Sarney; na pesquisa universitária, surge como a síntese do que havia de pior no "populismo".
      Exilado no Uruguai, Jango sempre se sentiu inconformado com a proibição de seu regresso. Em 1967, Lacerda e Juscelino, deixando de lado os ressentimentos, se uniram a ele na luta pela redemocratização, formando a chamada Frente Ampla. A ditadura, no entanto, declarou a organização ilegal. No início do exílio, Goulart conseguiu dissimular sua tristeza. Mas nos dois últimos anos de vida, abandonado por todos, não tinha como disfarçar a amargura. Não conseguia compreender o ódio que os militares brasileiros lhe dedicavam se, durante sua vida pública, não perseguiu ninguém. Em 1969, sofreu um infarto.
      Com o golpe militar no Uruguai em 1973, passou a sofrer humilhações. No ano seguinte, mudou-se para a Argentina, no momento em que a extrema direita daquele país recorria a atentados. A seguir, a Operação Condor começou a eliminar líderes esquerdistas do continente. Em 1976, Goulart se sentia acuado e decidiu regressar ao Brasil. Na noite do dia 5 dezembro, dormiu com a mulher, Maria Thereza, em sua estância na Argentina. Seu objetivo era acordar, pegar o carro e viajar para São Borja, mesmo correndo o risco de ser preso. Contudo, horas mais tarde, na madrugada do dia 6, Maria Thereza, assustada, percebeu que Jango estava morto, vítima de outro infarto.
      Algumas versões falam em assassinato, por agentes da Operação Condor. Mais prudente é lembrar que Jango era cardíaco. Vale também considerar a avaliação de seu ministro da Justiça, Abelardo Jurema. Para ele, o exílio é uma experiência muito dolorosa e, se o exilado não tiver forças, ele sofre de "mal-triste". "Mal-triste é uma doença que dá no boi que sai de uma região para outra. O boi começa a ficar triste e morre." Jango, em sua avaliação, morreu de "mal-triste". "Ele não aguentou". A ditadura militar, num exemplo de mesquinharia política, quis impedir que seu corpo entrasse no Brasil e fosse sepultado em São Borja. Amigos, políticos do MDB e a população gaúcha se mobilizaram. Seu enterro foi um ato de protesto contra a ditadura. Foi o único presidente da República a morrer no exílio.

Jorge Ferreira é professor de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e organizador do livro O Populismo e Sua História (Civilização Brasileira, 2001)

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional - Edição nº 3 - Setembro de 2005

Saiba Mais – Bibliografia
BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
D'ARAUJO, Maria Celina. Sindicatos, carisma e poder. Rio de Janeiro: Editora da FGV. 1996.
FIGUEIREDO, Argelina. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
OTERO, Jorge. João Goulart. Lembrança do exílio. Rio de Janeiro: Casa Jorge, 2001

Saiba Mais – Links

Saiba Mais – Documentário
Jango
O documentário de Sílvio Tendler acompanha a vida política de João Belchior Marques Goulart (1918-1976), o Jango, de 1950 a 1976, de seu primeiro cargo importante, como Ministro do Trabalho no governo de Getúlio Vargas, até o exílio no Uruguai e Argentina, depois do golpe de 1964. Tendler explora a vida de Jango, gaúcho de São Borja e único presidente brasileiro a morrer no exílio, apresentando imagens de filmes caseiros, documentários antigos, fotos e entrevistas, e, depoimentos importantes, como os do general Antônio Carlos Muricy, de Leonel Brizola, de Aldo Arantes, de Afonso Arinos, de Magalhães Pinto, de Frei Betto, de Celso Furtado, entre outros.
Há uma grande quantidade de imagens inéditas, como as viagens de Goulart à Russia e à China, Jango discursando na ONU,  e do comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, que, antecede ao golpe militar de 31 de março.
Documentário vencedor dos prêmios: Música Original (Milton Nascimento e Wagner Tiso), Melhor Filme (Júri Popular) e Prêmio Especial do Júri, XII Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, RS, 1984. Prêmio Especial do Júri para Documentário, Festival Novo Cinema Latino-Americano, Havana, Cuba, 1984. Melhor Filme do Público, Festival de Nova Delhi, Índia, 1985.
Direção: Sílvio Tendler
Ano: 1984
Áudio: Português
Duração: 115 minutos

"Dossiê Jango"
Documentário reabre a discussão sobre o suposto assassinato do ex-presidente João Goulart, em 1976, e reinterpreta o período mais obscuro da história brasileira. Em clima de thriller político, a trama traz à tona novas informações para a reconstrução dos fatos. Com depoimentos de Carlos Heitor Cony, Flávio Tavares, Ferreira Goulart, Geneton Moraes Neto, João Vicente Goulart e Maria Thereza Goulart, entre outros.
O filme faturou os prêmios de Melhor Documentário pelo Júri Popular no Festival do Rio 2012; Melhor Filme de Longa Metragem pelo Júri Popular no 16º Festival de Tiradentes 2013; Melhor Documentário pelo Júri Popular e Oficial no 17º FAM.
Direção: Paulo Henrique Fontenelle
Ano: 2012
Áudio: Português
Duração: 102 minutos

Nenhum comentário:

Postar um comentário