A história dos quilombos e dos escravos
que os habitaram é também uma empolgante narrativa de sonhos de liberdade.
Durante os mais de trezentos anos de escravidão no Brasil funcionaram como
"válvulas de escape" para as tensões e a violência do cotidiano das
senzalas. Grave ameaça à estabilidade da classe senhorial - para quem os
quilombos eram verdadeiras "assombrações”-, foram duramente reprimidos.
Além dos capitães do mato, homens especializados na caça de negros fujões,
periodicamente eram montadas expedições para a destruição de seus esconderijos.
Uma destas partiu, em 1769, da fazenda do Capote (situada hoje no município de
Lagoa Dourada, em Minas Gerais) rumo às regiões limítrofes das capitanias de
Minas e Goiás. Por capricho do seu líder, o mestre-de-campo Inácio Correia
Pamplona, tal expedição foi cuidadosamente relatada. Homem "obcecado em
autopromoção”, como afirmou a historiadora Laura de Mello e Souza, Pamplona não
só se preocupou com as andanças de sua tropa, como encomendou o desenho de seis
plantas de quilombos, dentre as quais merece destaque a do quilombo de São
Gonçalo.
Ao que tudo indica, este se
localizava nas proximidades do Triângulo Mineiro, na atual cidade de Araxá, num
ponto estratégico entre as serras da região. O mapa apresentado em "fiel
cópia", para mostrar como viviam os negros, ilustra um aspecto com um aos
quilombos que se espalharam por todo o território colonial: uma eficiente
organização interna. No desenho acima, pequenos números associados a uma
legenda indicam seus pontos vitais como ferraria (I) ; buracos para fugas (II)
; horta (III) ; entrada com dois fogos [casas] (IV) ; trincheira (V) ; paredes
de casa a casa (VI) ; casa de pilões (VII) ; saídas com estrepes [estacas] (VIII)
; matos (IX) ; e casa de tear (X). Logo que a tropa de Inácio Pamplona se
deparou com o quilombo - dois meses após a partida da fazenda Capote -, um dos
comandantes capturou um negro, pois os outros "calhambolas" -
expressão usada para denominar escravos fugidos - escaparam para um novo
esconderijo. Como era costume nestas empreitadas, foram confiscados alimentos,
como farinha, e "vários trastes e panos de algodão", medida que
coibia a reinstalação do abrigo. Os produtos feitos pelos negros serviam não só
para o uso interno, mas também para as trocas clandestinas com as vilas e
mercados próximos. Para o historiador Flávio Gomes, a sobrevivência dos
quilombos se explica não pelo seu isolamento, mas pelo seu complexo
envolvimento com a sociedade. O de São Gonçalo, por exemplo, ficava nas
imediações da "picada de Goiás", caminho que ligava a capitania de
Minas à de Goiás, e seus integrantes, segundo o estudioso José Martiniano da
Silva, aterrorizavam as fazendas vizinhas, atacando chácaras e rebanhos.
A
quantidade de esconderijos de escravos era tamanha que, só em Minas Gerais, no
século XVIII, o arqueólogo Carlos Magno Guimarães mapeou pelo menos 160
quilombos! Pode-se afirmar, então, que a procura do ouro e a caça aos escravos
andavam de mão s dadas, como confirmam os versos toscos de um membro da
expedição de Inácio Pamplona: "Tudo feito nesta maneira/ pólvora, chumbo e
patrona,/ espingardas à bandoleira,/ entrando duas bandeiras/ Procurando negros
e ouro/ Deus nos depare um tesouro". As autoridades locais, perturbadas
com esta situação de descontrole da escravaria, conceberam punições bárbaras
contra os fujões: cortar uma perna, o tendão-de-aquiles, impedindo-os de
correr, ou um braço para aqueles que cometessem assassinato. A Coroa
portuguesa, para tentar conter a cruel criatividade dos castigos, recomendava
alternativas, como marcar com ferro em brasa a letra "F” sobre as costas
ou cortar uma orelha, no caso de reincidência da fuga.
Por estes motivos, homens de posses
aceitavam a missão dispendiosa de financiar expedições de caça aos quilombolas.
A do mestre-de-campo Inácio Pamplona era composta por 58 escravos armados com
espingardas, facões e pólvora, músicos (nove escravos e um homem branco) que
levavam violas, rabecas, trompas, flautas e tambores, 52 bestas de carga com
comidas e bebidas, um cirurgião, sacerdotes e dois capitães. Além do de São
Gonçalo, a comitiva passou pelos quilombos do Ambrósio, da Samambaia, do Rio da
Perdição, dos Santos Fortes e o dos Braços da Perdição.
Representações como a do quilombo de São Gonçalo são raríssimas e
praticamente inéditas, por isto sua importância para a compreensão das formas
de sobrevivência de milhares de negros foragidos, durante os séculos de
escravidão no Brasil. O relato da expedição, Notícia diária e individual das
marchas e acontecimentos mais condignos da jornada que fez o senhor Mestre de
Campo Regente, e Guarda-mor Inácio Correia Pamplona..., se encontra na Divisão
de Manuscritos da Biblioteca Nacional, e foi publicado, em 1988, no volume 108
dos Anais da Biblioteca Nacional. O leitor interessado pode consultar os Anais
no site www.bn.br, clicando no link "Pesquisa no Acervo" e procurando
em "Acervo Geral" a opção "Biblioteca Digital".
Fonte: Revista Nossa História - Ano 2
nº 13 - Novembro 2004
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