“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Heróis e reis esquecidos

           Dia da consciência negra, símbolo do Movimento Negro no Brasil. Zumbi, rei dos Palmares, morto em 20 de novembro de 1695, é hoje lembrado em memoriais pelo país afora. O dia em que morreu virou feriado em vários estados. Nas Alagoas, há verdadeira romaria para a Serra da Barriga, lugar dos antigos mocambos que enfrentaram o governo colonial no século XVII.
           Os historiadores do século XIX, sempre tão preocupados com os brasileiros ilustres, não deram a menor importância ao Zumbi. Varnhagen não lhe dedicou sequer uma linha na sua História Geral do Brasil. E m compensação, abriu espaço para o negro Henrique Dias, herói da Restauração Pernambucana, nomeado "governador dos crioulos, negros e mulatos do Brasil". De fato, Henrique Dias foi bom militar. Erigiu seu arraial dos pretos numa casa tomada aos holandeses, próxima à Cidade Maurícia. U m autêntico baluarte. Depois pontificou nas batalhas dos Guararapes. Recebeu comendas do rei e mais tarde o reconhecimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB ) num tempo em que este servia à construção da brasilidade.
          A relação da história com a memória é complicada. A primeira serve à segunda, que por sua vez a recria, conforme a época. Daí o herói de hoje virar vilão amanhã e vice-versa. Voltando à Restauração Pernambucana, um dos mais laureados pelos seus feitos foi o potiguar Felipe Camarão. Ganhou comendas dei rei, como Henrique Dias, e tornou-se figura certa na galeria dos heróis nacionais. Afinal, chefiara o partido brasiliano dos índios nas guerras contra os flamengos. Mas ninguém se lembra dos índios potiguares que lutaram ao lado dos holandeses. Pedro Poti é bom exemplo, pois se converteu ao calvinismo e mandou cartas ao Camarão para mudar de lado, alegando que os portugueses sempre haviam sido um flagelo para a nação potiguar. Pedro Poti foi condenado ao ostracismo pela memória nacional.
          Quase o mesmo se deu em relação às inconfidências do século XVIII. A Inconfidência Mineira foi celebrizada e Tiradentes transformado em herói, em especial no início da República - 21 de abril, dia do Tiradentes, é feriado nacional. Por outro lado, a Conjuração baiana, primeiro movimento a pôr em xeque a discriminação racial na Colónia, ficou muito tempo em segundo plano. E 1 quase ninguém sabe de cor o nome dos quatro enforcados e esquartejados em 1799, talvez porque fossem mulatos os líderes da sedição: Luis Gonzaga das Virgens, Manuel Faustino, Lucas Dantas e João de Deus.
          Mas nosso foco é Palmares, e como disse, Zumbi é hoje um monumento, e Ganga Zumba esquecido ou hostilizado. Há poucos documentos sobre o primeiro, ao contrário de Ganga Zumba, chefe que consolidou Palmares e impingiu tremendas derrotas ao governo colonial. Tanto é que as elites lhe propuseram um armistício, em 1678: alforria para os palmarinos, terras em Cucaú, foro de vassalos da Coroa. A contrapartida seria a colaboração na reescravização dos novos fugitivos. O acordo de Ganga Zumba lhe custaria caro. Morreu envenenado pelos rivais e foi depois tomado como colaborador dos brancos.
           A história e a memória vivem mesmo em conflito. Mas a figura de Ganga Zumba não sumiu de vez. E m 1982, por exemplo, a Escola de Samba Beija-Flor saiu no carnaval com o enredo A Constelação das Estrelas Negras - saí exatamente na ala do Ganga Zumba. Certa vez, no barracão da Escola, um componente da ala me perguntou: "quem foi este tal de Ganga Zumba?". Respondi sem hesitar: "foi rei de Palmares". "Mas não era o Zumbi?" - replicou. Só me restou dizer: "também, o Zumbi também". E assim terminou a conversa em Nilópolis: Palmares teve dois reis.   

Ronaldo Vainfas é professor titular de História Moderna na Universidade Federal Fluminense e autor de Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil Colonial, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

Fonte: Revista Nossa História - Ano 2  nº 13 - Novembro 2004

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