Dia
da consciência negra, símbolo do Movimento Negro no Brasil. Zumbi, rei dos
Palmares, morto em 20 de novembro de 1695, é hoje lembrado em memoriais pelo
país afora. O dia em que morreu virou feriado em vários estados. Nas Alagoas,
há verdadeira romaria para a Serra da Barriga, lugar dos antigos mocambos que
enfrentaram o governo colonial no século XVII.
Os historiadores do século XIX,
sempre tão preocupados com os brasileiros ilustres, não deram a menor
importância ao Zumbi. Varnhagen não lhe dedicou sequer uma linha na sua
História Geral do Brasil. E m compensação, abriu espaço para o negro Henrique
Dias, herói da Restauração Pernambucana, nomeado "governador dos crioulos,
negros e mulatos do Brasil". De fato, Henrique Dias foi bom militar. Erigiu
seu arraial dos pretos numa casa tomada aos holandeses, próxima à Cidade
Maurícia. U m autêntico baluarte. Depois pontificou nas batalhas dos
Guararapes. Recebeu comendas do rei e mais tarde o reconhecimento do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB ) num tempo em que este servia à
construção da brasilidade.
A relação da história com a memória é
complicada. A primeira serve à segunda, que por sua vez a recria, conforme a
época. Daí o herói de hoje virar vilão amanhã e vice-versa. Voltando à
Restauração Pernambucana, um dos mais laureados pelos seus feitos foi o
potiguar Felipe Camarão. Ganhou comendas dei rei, como Henrique Dias, e
tornou-se figura certa na galeria dos heróis nacionais. Afinal, chefiara o
partido brasiliano dos índios nas guerras contra os flamengos. Mas ninguém se
lembra dos índios potiguares que lutaram ao lado dos holandeses. Pedro Poti é
bom exemplo, pois se converteu ao calvinismo e mandou cartas ao Camarão para
mudar de lado, alegando que os portugueses sempre haviam sido um flagelo para a
nação potiguar. Pedro Poti foi condenado ao ostracismo pela memória nacional.
Quase o mesmo se deu em relação às
inconfidências do século XVIII. A Inconfidência Mineira foi celebrizada e
Tiradentes transformado em herói, em especial no início da República - 21 de
abril, dia do Tiradentes, é feriado nacional. Por outro lado, a Conjuração
baiana, primeiro movimento a pôr em xeque a discriminação racial na Colónia,
ficou muito tempo em segundo plano. E 1 quase ninguém sabe de cor o nome dos
quatro enforcados e esquartejados em 1799, talvez porque fossem mulatos os
líderes da sedição: Luis Gonzaga das Virgens, Manuel Faustino, Lucas Dantas e
João de Deus.
Mas nosso foco é Palmares, e como
disse, Zumbi é hoje um monumento, e Ganga Zumba esquecido ou hostilizado. Há
poucos documentos sobre o primeiro, ao contrário de Ganga Zumba, chefe que
consolidou Palmares e impingiu tremendas derrotas ao governo colonial. Tanto é
que as elites lhe propuseram um armistício, em 1678: alforria para os
palmarinos, terras em Cucaú, foro de vassalos da Coroa. A contrapartida seria a
colaboração na reescravização dos novos fugitivos. O acordo de Ganga Zumba lhe
custaria caro. Morreu envenenado pelos rivais e foi depois tomado como colaborador
dos brancos.
A história e a memória vivem mesmo
em conflito. Mas a figura de Ganga Zumba não sumiu de vez. E m 1982, por
exemplo, a Escola de Samba Beija-Flor saiu no carnaval com o enredo A
Constelação das Estrelas Negras - saí exatamente na ala do Ganga Zumba. Certa
vez, no barracão da Escola, um componente da ala me perguntou: "quem foi
este tal de Ganga Zumba?". Respondi sem hesitar: "foi rei de
Palmares". "Mas não era o Zumbi?" - replicou. Só me restou dizer:
"também, o Zumbi também". E assim terminou a conversa em Nilópolis:
Palmares teve dois reis.
Ronaldo Vainfas é professor
titular de História Moderna na Universidade Federal Fluminense e autor de
Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil Colonial, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
Fonte: Revista Nossa História - Ano 2
nº 13 - Novembro 2004
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