Republicanos como Rui Barbosa e até mesmo monarquistas destronados
não conseguiam compreender o sentimento de devoção dos ex-escravos pela
princesa que assinou a Lei Áurea.
Robert Daibert Junior
No dia
13 de maio de 1891, na cidade de Mar de Espanha, em Minas Gerais, um grupo de
ex-escravos foi preso por autoridades republicanas. Motivo: comemoravam o
terceiro aniversário da Abolição. Eles ostentavam a bandeira do Império,
ameaçavam queimar a da República, e davam vivas à monarquia e à princesa
Isabel. Este episódio serve para mostrar a dificuldade do novo regime em apagar
da memória coletiva a popularidade da monarquia e, em especial, da princesa
Isabel. Curiosamente, celebrações como essa foram muito comuns e se
multiplicaram por todo o país desde a assinatura da Lei Áurea, em 1888. Foi
assim que a princesa se consagrou, no imaginário popular, como a
"Redentora". Mas o que teria tornado possível esse tipo de
"canonização"? Por que os ex-escravos - muitos dos quais lutaram bravamente
pelo fim do escravismo - dobravam seus joelhos, respeitosamente, diante da
princesa branca? Teria sido esta uma prova de "alienação", como se
diria hoje? Como eles interpretavam a atitude de Isabel?
Entre negros africanos e seus
descendentes, a figura da princesa se revestiu, por décadas, de um significado
muitas vezes incompreendido até mesmo pelos monarquistas destronados. Meses
antes da queda do Império, o republicano Rui Barbosa comentava indignado o fenômeno.
Inconformado com as manifestações de gratidão que os negros devotavam à
princesa Isabel, ele só encontrava uma explicação para o fato: eles não sabiam
como desfrutar da liberdade alcançada. Encarava essa devoção como mau uso da
condição adquirida. Via essas atitudes e comemorações como expressões de
servilismo e subserviência. Nas palavras do jurista e político, publicadas no
Diário de Notícias, de 19 de março de 1889, "ao
manipanso [ídolo africano] grotesco das senzalas, próprio para a gente da
África, sucedia o feiticismo da ídola tria áulica, digna de uma nação de libertos
inconscientes". De acordo com a apreciação de Rui, os negros estariam
dando continuidade ao costume de adorar ídolos. Considerava-os inconscientes
devido a sua herança e costumes selvagens. Se por um lado estava certo em
considerar a atitude dos negros uma continuidade, por outro não se dava conta
de que, ao comemorarem a Abolição saudando e enaltecendo a princesa, estavam
expressando sua concepção de realeza tal como a entendiam na África. Não se
tratava de uma má assimilação da ideia de liberdade, mas de uma maneira diversa
de compreender e comemorar essa conquista. Invertendo-se o olhar, a
inconsciência não vinha dos negros, mas do próprio Rui, que não conhecia nem
compreendia os meandros da cultura africana.
A realeza fazia parte da organização
social de muitos povos africanos. Era assim que concebiam sua organização. Tal
fato pode ser constatado na organização dos quilombos no Brasil. Quando fugiam,
os escravos se organizavam em comunidades sob o governo de um rei e de uma
rainha. Além da figura do rei-guerreiro, também era comum a presença do
rei-sacerdote e divino, responsável por presidir as colheitas e mediar a
relação da comunidade com os espíritos ancestrais.
Assim como os portugueses, os
africanos, em sua terra natal, tinham o costume de assistir a cortejos reais, o
que facilitou a reconstrução e adaptação de tais práticas em solo americano. Ao
chegarem no Brasil, não abandonavam completamente suas raízes. Mais ainda,
passavam a prestar obediência aos reis e príncipes portugueses e, após a
Independência, ao imperador do Brasil. A primeira vista, este fato poderia
servir de argumento para aqueles que viam nos negros a incapacidade de tomar
consciência de sua posição de dominados. Festejar tais aclamações significaria
uma espécie de alienação quanto à exploração que lhes era imposta pelo domínio
português. Mas a conclusão não é tão simples assim. A formação dos estados
monárquicos no continente africano era muitas vezes fruto de uma conquista que
permitia a um grupo forte (do ponto de vista do armamento militar) sobrepor-se
a um povo militarmente mais fraco, que passava a ser explorado. Para muitos
povos, a guerra era o principal modo de produção das organizações políticas.
Não havia como sobreviver de outro modo. As comunidades se enfrentavam em
guerras e os perdedores se transformavam em súditos de seus dominadores. Por
meio da cerimônia da coroação, o rei, visto como conquistador e usurpador,
passava a monarca, de natureza sacerdotal ou mesmo divina. Aquele que trouxe a
morte, por meio da guerra, tornava-se portador da vida.
O
mesmo ocorria com os africanos e seus descendentes no Brasil. Era familiar, aos
seus olhos, participar da cerimônia e das festas de coroação de um novo rei.
Não se consideravam vencidos. Impondo significados distintos, participavam dos
festejos cívicos e das cerimônias promovidas pela monarquia. Nas cerimônias de
coroação, nas festas cívicas e nos cortejos imperiais, o imperador era
festejado com batuques e congadas. Ao participarem de tais eventos davam
prosseguimento, atualizavam e ao mesmo tempo revestiam suas concepções
culturais de novos significados.
Segundo o historiador Robert Slenes,
a maioria dos escravos importados para o Sudeste brasileiro, do final do XVIII
até 1850, veio das sociedades falantes das línguas banto situadas na África
Central, especialmente Angola e Congo-Norte. Seus valores estariam associados
ao conceito de ventura-desventura, ou seja, "a ideia de que o universo é
caracterizado em seu estado normal pela harmonia, o bem-estar e a saúde, e que
o desequilíbrio, o infortúnio e a doença são causados pela ação malévola de
espíritos ou pessoas, frequentemente através da feitiçaria".
Considerando-se este preceito banto, podemos acrescentar que nas coroações
simbólicas dos reis e rainhas realizadas pelos negros em suas festas religiosas
no século XIX estava em jogo um importante processo de construção da nacionalidade
brasileira nos moldes africanos.
Nessas festas, a conversão de todos
ao cristianismo era encabeçada por uma liderança africana. Curiosamente os
negros eram vencedores porque contavam com a proteção de Nossa Senhora do
Rosário, uma santa branca, que em determinadas ocasiões era pintada de preto
pelos escravos. Brancos e negros eram assim integrados no ritual religioso. Nos
sonhos e expectativas dos cativos, criava-se a possibilidade de construção de
uma grande família, em que os conflitos e diferenças eram neutralizados e os
estrangeirismos incorporados.
Os conflitos entre os diferentes
grupos eram resolvidos simbolicamente. Os negros, nas congadas, expressavam a
expectativa de uma liberdade futura, quando sua felicidade seria restabelecida.
Esta deveria ser alcançada após a resolução do conflito e coroada com a bênção
de uma santa protetora, que, identificando-se com os anseios dos negros,
promoveria a paz entre os grupos rivais. O caminho era a incorporação de novos
valores aos já existentes. Ao final da guerra, os povos perdedores e
vencedores, bem como seus referenciais culturais, seriam incorporados sob o
manto do governante vencedor. Este, a partir de sua coroação, perderia o
caráter usurpador para se transformar num promotor da justiça coletiva.
Identificando-se com o povo reunido, reinaria de modo a ordenar e administrar
as diferenças.
"Vencidos" na África, os
negros eram escravizados e trazidos para o Brasil. Tornavam-se súditos de um
novo rei, com quem deviam se identificar e prestar obediência. Aqui chegando,
no entanto, eram submetidos a novos "governos". Dentro das fazendas,
permaneciam sob o comando dos feitores e senhores de escravos que lhes
presenteavam com um cotidiano recheado de violência e exploração. Sentiam na
pele os sofrimentos decorrentes de seu infortúnio e desventura. Muitos reis,
rainhas e príncipes africanos eram escravizados e vendidos, juntamente com seus
súditos, como escravos comuns. Mas, como diz o ditado popular, "quem já
foi rei nunca perde a majestade". Em
solo brasileiro, os negros continuavam a prestar obediência a seus soberanos
antigos, estivessem eles presentes fisicamente ou não. Ao mesmo tempo, d. Pedro
II era visto como um benfeitor. Perdoava condenados à morte e, em suas viagens pelas
províncias do Império, sempre alforriava escravos como demonstração de suas
intenções abolicionistas.
Em sua
guerra cotidiana contra a escravidão, os escravos viam nos senhores os inimigos
de uma luta que se travava diariamente no convívio com seus opressores. Sua
aproximação com o imperador, no entanto, dava-se somente em ocasiões especiais,
geralmente festivas. Eram momentos em que podiam vivenciar seus sonhos de modo
simbólico. Certamente as concepções africanas favoreceram não só a legitimidade
do regime monárquico entre os negros, como também possibilitaram a
neutralização de conflitos maiores. Em suas revoltas, os negros expressavam o
descontentamento contra seus senhores,
feitores ou policiais que os perseguiam. Mas não chegavam a pensar em derrubar
a monarquia, embora esse temor estivesse presente no horizonte das elites
imperiais.
Em uma entrevista coletada por
Gilberto Freyre, dona Maria Vicentina de Azevedo Pereira de Queirós, de origem
aristocrática, nascida em São Paulo, no ano de 1868, relata: "Foi com
grande alegria que recebi a notícia da Abolição e, em São Paulo, onde residia,
assisti às grandes festas que fizeram na data de 13 de maio. Armaram grandes
coretos nas ruas principais e ao som de bandas de música os escravos dançavam e
cantavam, dando vivas e mais vivas à princesa Isabel, a 'Redentora'." Ao
dançarem, os negros festejavam a concretização do sonho de liberdade que
simbolicamente haviam vivenciado durante as festas no tempo do cativeiro. O que
antes só era representado por meio de dramatizações, agora se tornara
realidade. Nas festas em comemoração da Abolição, demonstravam grande
satisfação, pois imaginavam estar
retomando, e não apenas simbolicamente, a harmonia e o equilíbrio natural, que
lhes havia sido retirado. No canto dos negros, este aspecto fica evidente. Com
grande alegria entoavam: "Eu pisei na pedra, pedra balanceou/ Mundo tava
torto, rainha endireitou." O estado de pureza, harmonia e bem-estar
original estavam comprometidos. Seu "mundo estava torto". Acreditavam
que a recriação deste estado de pureza por meio de rituais e festas, onde a
figura do rei estava sempre presente, possibilitava agora o alcance de suas
metas. Assim, a rainha teria corrigido a instabilidade e o desequilíbrio de seu
mundo. A ação da regente se confunde com uma atitude divina. Como uma santa
abençoa seu povo, livrando-o do estado de miséria. Na formação da imagem de
Isabel são associados aspectos da religiosidade e da cultura africanas com a
concepção cristã de salvação. A ideia de ruptura entre dois tempos - a
escravatura e a abolição - tinha assim a intenção de apagar a lembrança de um
passado marcado pela violência e pela exploração de brancos.
A Abolição foi carregada de um
sentido especial para os negros, na medida em que possibilitou uma melhor
expressão de seus valores culturais. Ao mesmo tempo, abriu as portas para o
estreitamento dos laços de solidariedade entre eles. Por meio da exaltação da
figura de Isabel, canalizavam-se lealdades distintas em torno de uma mãe
protetora. Assim como Nossa Senhora do Rosário, Isabel se identificava como a
responsável pela vitória dos negros e pela incorporação dos demais grupos. Sob
seu manto, brancos, negros e índios eram acobertados. A construção da nação se
completava neste grande momento de patriotismo.
O modo pelo qual os negros vivenciaram
a Abolição e interpretaram a ação da princesa favoreceu a construção de uma
imagem monarquista do fim do cativeiro. Valendo-se dos referenciais
transplantados da África para o Brasil, a ideia da abolição como redenção dos
negros ganhou grande visibilidade. Na luta entre "reinos" e domínios
sua liberdade foi conquistada pelas mãos
de uma princesa. Ao final da luta, Isabel foi coroada rainha e a paz se
estabeleceu entre os grupos. No entanto, a princesa não chegou efetivamente a
reinar. Em outra "guerra", foi destronada por seus inimigos
republicanos e exilada para um país distante. Experiência nada desconhecida
pelos seus súditos. Ao perder o trono, completava a obra da redenção:
sacrificava-se pelos seus, como Cristo no Calvário. Nas quadrinhas cantadas por
crianças brasileiras era comum se ouvir os seguintes versos: "Princesa
dona Isabel/ Mamãe disse que a Senhora/ Perdeu seu trono na terra,/ Mas tem um
mais lindo agora./ No céu está esse trono/ Que agora a senhora tem/ Que além de
ser mais bonito/ Ninguém lho tira, ninguém."
A princesa não foi esquecida nem
abandonada. Mesmo não tendo chegado ao trono, foi coroada nas inúmeras festas
que até hoje comemoram o fim da escravidão. As congadas ainda são realizadas em
muitos cantos do Brasil e nelas os reinos prosseguem se enfrentando. Suas
apresentações se dão nas festas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito ou
no dia 13 de maio, que também se tornou data importante no calendário do
candomblé e da umbanda.
ROBERT DAIBERT JÚNIOR é
mestre em História pela Unicamp e autor de Isabel, a "Redentora"
dos Escravos: uma história da princesa entre olhares negros e brancos
(1846-1988). Bauru, SP: EDUSCIFAPESP,
2004.
Fonte: Revista Nossa História - Ano 1 nº 12 -
Outubro 2004
Saiba Mais – Bibliografia
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STEIN,
Stanley. Grandeza e decadência do café no
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Saiba
Mais – Link
Muito bom e informativo o texto. Excelente. Estudei em Ouro Preto e lá presenciei as festas de congado e assim conheci um pouco desta história. Não com esta riqueza de detalhes, mas imaginava algo assim. Muito interessante.
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