“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

terça-feira, 21 de julho de 2020

O canto das escravas

Melodias negras entoadas nas ruas e nos lares atravessaram séculos e influenciaram a linguagem, a cultura e o comportamento dos brasileiros
SÉRGIO BITTENCOURT-SAMPAIO
               Durante mais de três séculos, o Brasil foi embalado por vozes negras e femininas. Pelas ruas das cidades, melodias eram entoadas não apenas nas festas oficiais dos negros e nos informais batuques, mas também acompanhando atividades diárias como as das vendedeiras, lavadeiras nas bordas dos riachos, aguadeiras que buscavam água nas fontes e nos chafarizes. No interior dos lares, as escravas faziam dormir seus próprios filhos, e também os filhos brancos das famílias abastadas. Aquele simples cantar despreocupado, de uma classe desprestigiada, considerada inculta e apta apenas para trabalho, teria consequências profundas na linguagem, na cultura e nas relações sociais brasileiras.
               As vendedeiras sempre chamavam a atenção dos estrangeiros. O militar alemão Carl Schlichthorst, que esteve no Brasil entre 1824 e 1826, certa vez encontrou uma “negrinha mimosa” na praia de Copacabana. Em plena juventude, ela tocava marimba enquanto vendia suas guloseimas. Schlichthorst comprou um pedaço de doce e pediu à moça que dançasse. Ela atendeu ao pedido, e cantou: “Na Terra não existe Céu/ Mas se nas areias piso/ Desta praia carioca/ Penso estar no Paraíso!/ Na Terra não existe Céu/ Mas se numa loja piso/ E compro metros de fita/ Penso estar no Paraíso!”. Os versos traduziam a agrura da escravidão e o explícito desejo de se evadir da lida diária, mesmo por um instante e em troca de um pequeno agrado.
               Anos mais tarde, o príncipe austríaco Maximiliano de Habsburgo encontrou na Bahia vendedeiras com vozes de contralto tão graves que poderiam ser confundidas com vozes masculinas. Ao vender seus doces, alfinetes, refrescos, frutas e outras mercadorias, elas utilizavam um canto arrastado, com as últimas sílabas prolongadas nas vogais abertas: “Geleia! É de araçááá!”, “Sorvete é de maracujááá!”, conforme este exemplo registrado bem mais tarde pelo sociólogo Gilberto Freyre.
               Na década de 1820, quando visitou um engenho situado na Mata da Paciência, no Rio de Janeiro, a viajante inglesa Maria Graham presenciou escravas servindo cana aos visitantes entre melodias africanas e hinos à Virgem Maria. Na Fazenda da Cachoeirinha, em Minas Gerais (1822), o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire se deparou com um comportamento curioso: ao serem colocadas pela senhora em um ambiente fechado, escravas que costumavam cantar por todo o dia passaram a relatar suas aventuras amorosas umas às outras, lançando acusações mútuas. Mas logo retomavam suas canções preferidas.
               Nas folias carnavalescas – ou melhor, no tempo do entrudo – os pregões tinham um quê de malícia, deixando a ideia incompleta, cabendo a quem ouvia dar a forma final: “Quem entruda seu amô/ É sinal de intimidade/ Iaiá, entrude a ioiô/ Para lhe ter amizade/ É de iaiá, é de ioiô/ Quem qué entrudá seu amô”. Podemos nos perguntar se a entonação das palavras dependia da linha melódica ou se a música é que derivava da inflexão das sílabas prolongadas.
               Escravas com bons dotes vocais eram alugadas para apresentações nos salões aristocráticos. A oportunidade lhes permitia demonstrar o dom para a música em ambientes aos quais normalmente não tinham acesso. Apesar do talento, seus nomes não eram divulgados (quem se importaria de dar atenção ao nome de uma cativa?) e as quantias que deveriam receber pela apresentação ficavam por conta de seus proprietários.
               Atendiam também a solicitações dos ofícios religiosos. No século XVIII, na fazenda dos padres mercedários no Pará, algumas negras emocionavam os ouvintes ao cantar “Bendito Sejais, Te Deum”. No Rio de Janeiro, a Família Real portuguesa encontrou na Igreja de Santo Inácio de Loiola, em Santa Cruz, três escravas que se destacavam pela beleza com que interpretavam as canções.
               A melancolia musical se mostrava durante os cortejos fúnebres das negras. Ao contrário dos enterros de homens, o corpo era seguido por mulheres que soltavam a voz em lamentos que remetiam à escravidão. A presença masculina se limitava a dois carregadores e um mestre de cerimônias.
      A maneira de falar ou de se expressar através da música servia até para identificar negras fugitivas. O jornalista e escritor pernambucano Mario Sette transcreveu o anúncio do desaparecimento de uma cativa chamada Joana. Segundo ele, a procurada apresentava “fala mansa e descansada”. O periódico cearense O Comercial noticiou a fuga de Margarida, escrava com idade entre 25 e 28 anos que se destacava por desempenhar múltiplas funções. Tinha desenvoltura com foice, machado, enxada e era sapateira. De acordo com o jornal, era também “cantadeira de samba”, o que revela sua habilidade com a música – na época, somente as mais especializadas eram chamadas de cantadeiras. Samba tinha uma conotação diferente da atual: significava batuque, típico dos cativos.
                Por outro lado, o hábito de cantar durante o trabalho diário era utilizado para conter possíveis insurreições dos cativos. O memorialista Pedro Nava (1903-1984) lembra que sua avó controlava as tarefas confiadas às antigas escravas por meio das músicas que elas entoavam: atenta às inflexões das vozes, que traduziam o clima emocional das cativas a suas intenções, a senhora impedia “conjuração de preto” e seguia o andamento do serviço. Entre as melodias estava uma modinha muito conhecida na época, “O Gondoleiro do Amor”, com versos de Castro Alves (1847-1871), que diz: “Teus olhos são negros, negros, / Como as noites sem luar... / São ardentes, são profundos, / Como o negrume do mar...”.
               O cantarolar negro também transbordou para a literatura brasileira. No século XIX, a voz lamentosa de uma cativa motivou um poema do diplomata fluminense Luís Guimarães Júnior: “Nhãnhã”. O narrador conversava com a sinhá no interior da casa-grande quando ouviu uma escrava cantando em meio a gemidos. Ao indagar de quem se tratava, a senhora respondeu: “Ora! uma escrava!”. E nada mais: a conversa despreocupada prosseguiu comentando valsas, outras danças dos salões imperiais e a chegada de uma importante cantora lírica italiana. Enquanto isso, do lado de fora, a escrava expirou no silêncio da noite.
               Nos séculos passados, as mulheres da elite não costumavam amamentar seus filhos. Daí a necessidade de se buscarem amas de leite. Havia a crença de que o leite das negras era mais nutritivo que o das brancas. Nas grandes cidades, não faltavam anúncios nos jornais oferecendo cativas com abundante leite a preços elevados. As amas de leite mantinham uma proximidade especial com as crianças, que nenhuma outra condição igualava no cativeiro. Às vezes, amamentavam ao mesmo tempo os próprios filhos, criando uma condição conhecida como irmão de leite. Quando não se tratava de uma escrava alugada somente para este fim, mas própria da casa, os vínculos afetivos com os filhos da sinhá podiam se prolongar ao longo da vida. Ali, próximas dos filhos das famílias abastadas, elas acalentavam as crianças com melodias e histórias fantásticas. Os cantos amolengados e repetidos, acompanhados do tão apreciado cafuné, proporcionavam prazer, indolência e relaxamento. Aquela “fala cantada” continha uma mistura de termos portugueses, africanos e corruptelas.
               A música se alternava com histórias típicas do nosso folclore, como relatou em suas memórias Francisco de Paula Ferreira de Rezende, ministro do Supremo Tribunal Federal no início da República. Ele conviveu com a escrava Ana Margarida, que sempre que podia cantava e, se não podia, conversava ou contava casos de saci, lobisomem, mula sem cabeça e uma lenda sobre a origem dos negros.
               O idioma foi se tornando mais flexível, com sons suavizados, palavras novas, corruptelas e inflexões desconhecidas no português europeu. Enquanto os senhores e as sinhás sequer percebiam o que estava acontecendo, suas crianças participavam de uma mistura cultural que se tornaria indispensável para a estruturação do nacionalismo nas artes e na literatura brasileira.

SÉRGIO BITTENCOURT-SAMPAIO É MEMBRO DA ACADEMIA NACIONAL DE MÚSICA E AUTOR DE MÚSICA EM QUESTÃO (MAUAD, 2014).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016

Saiba Mais: Bibliografia
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1989. 
LIMA, Ivana Stolze & CARMO, Laura do. História social da língua nacional. Rio de Janeiro: NAU Editora/ Faperj, 2014.
SCHLICHTHORST, Carl. O Rio de Janeiro como é (1824-1826). Uma vez e nunca mais. Brasília: Ed. Senado Federal, 2000.
XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto & GOMES, Flavio (orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e pós-emancipação. São Paulo: Ed. Selo Negro, 2012

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