“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 3 de julho de 2020

De olhos bem fechados

Durante a Segunda Guerra, governo brasileiro não se sensibilizou com o drama dos refugiados do nazismo
FÁBIO KOIFMAN
               Disseminado pela mídia, o drama dos refugiados na Europa comove o mundo. As tentativas desesperadas de fuga e a busca por abrigo em outros países geram relatos e imagens aterradores. Tamanha quantidade de gente forçada a abandonar seu lar por conta de conflitos e perseguições político-religiosas motiva comparações com o período da Segunda Guerra Mundial. Naqueles tempos o mundo fechava as portas aos refugiados, e a falta de solidariedade de então não ajudou a impedir um número assombroso de mortes. Em fins da década de 1930, países de todo o mundo adotavam políticas de restrição à imigração, o que acabaria contribuindo, por omissão e indiretamente, para o Holocausto perpetrado pelos nazistas: cerca de 6 milhões de judeus se tornaram vítimas da política de extermínio de Adolf Hitler. Inicialmente seu objetivo era “livrar a Europa” da presença judaica, ou seja, expulsar todos os judeus do continente. A opção pela execução sistemática veio em meados de 1941, e a chamada “Solução Final” – aniquilação total dos judeus nos territórios ocupados pelo Estado alemão – somente em janeiro de 1942, depois que os nazistas tiveram a certeza de que nenhuma nação receberia aqueles que desejavam expulsar.
               Entre os países com fronteiras fechadas aos judeus estava o Brasil. Se atualmente recebemos refugiados sem nos pautarmos por critérios raciais, no tempo da Segunda Guerra a política imigratória era seletiva e restritiva. A imigração era depositária das esperanças de parte das elites em “melhorar a composição étnica da população”.
               Excetuando as chamadas nações indígenas e seus descendentes, os demais habitantes do Brasil têm ancestrais de fora do continente – sejam eles africanos que vieram na condição de escravos ou europeus exploradores e imigrantes. Ao longo de alguns séculos, os africanos e seus descendentes se tornaram a maior parte da população. Mesmo antes do fim da escravidão, no século XIX, o contingente de negros no país preocupava as elites dirigentes, que se consideravam brancas e culturalmente ligadas às nações europeias. O incentivo à vinda de imigrantes europeus nas últimas décadas daquele século tinha como propósitos substituir a mão de obra escrava e contribuir para o projeto de “branqueamento” da população.
               Tal política teve continuidade no início da República. O novo século trouxe a paulatina absorção de um discurso de aparência científica para justificar projetos de evidente concepção racista. Boa parte dos intelectuais atribuía o atraso do país à “má formação étnica” dos brasileiros. Com o passar das décadas, acreditaram que o imigrante branco se assimilaria aos habitantes não brancos e que essa miscigenação tornaria a população mais clara e, portanto, mais próxima das nações desenvolvidas.
               Mesmo com diferentes pontos de vista, os defensores das teses de branqueamento identificaram-se com o eugenismo, que por aqui ganhou conotação e propostas específicas. Em 1929, o movimento eugenista brasileiro definiu a imigração como boa solução para a “melhoria da composição étnica do povo” e, graças ao seu lobby junto aos constituintes de 1934, conseguiu fazer implantar na Constituição um regime de cotas – cujo principal alvo de restrições eram os imigrantes japoneses. Ao longo do primeiro governo de Getulio Vargas (1930-1945), outros projetos dessa natureza foram colocados em prática. Em discurso de 1932, o presidente mostrou- se favorável ao “aperfeiçoamento eugênico da raça” para “apressar o progresso do país”. Seu governo seguiria essas premissas, acabando por afetar o destino dos refugiados judeus.
               Com a ascensão do nazismo em 1933, a política imigratória passava cada vez mais a ocupar a cúpula do Estado. E entre as justificativas para transformar os judeus em imigrantes indesejáveis estava a “infusibilidade” dessas pessoas: eles seriam inassimiláveis, por não contribuírem para o branqueamento da nação.
               Como os judeus viviam em diferentes países da Europa e o sistema de cotas estabelecido em 1934 não especificava a origem étnica dos indivíduos, alguns meses antes da instauração da ditadura do Estado Novo, em 1937, o governo brasileiro produziu a primeira das Circulares Secretas destinadas a orientar a restrição da emissão de vistos para estrangeiros de origem judaica. Até 1945, outras circulares e decretos foram publicados com o fim específico de impedir que estrangeiros considerados indesejáveis fossem recebidos na condição de imigrantes.
               Desde a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, a Europa vinha enfrentando o aumento da pressão pelo recebimento de refugiados internos. Com o avanço dos exércitos alemães sobre o continente, as ameaças e as perseguições perpetradas pelo nazismo espalhavam-se velozmente, levando cada vez mais pessoas a buscar desesperadamente países que lhes pudessem conceder refúgio e asilo.
               No Brasil, mesmo com as restrições impostas pelo Estado Novo, o contingente de estrangeiros que conseguiam entrar no país (por vezes utilizando-se de vistos temporários) seguiu aumentando até os primeiros meses de 1941. Favorecia-lhes o fato de o governo manter a política imigratória de inspiração eugenista, afinal, novos imigrantes eram considerados necessários ao desenvolvimento do país. A seleção implicava aspectos subjetivos e pouco precisos, o que tornava complexa a tarefa dos cônsules. E havia exceções que permitiam conceder vistos mesmo para os estrangeiros considerados “infusíveis”. Imigrantes “capitalistas” – ou seja, indivíduos com condições de realizar transferência de capital elevado – eram bem vindos, assim como pessoas de comprovada formação acadêmico-científica, que poderiam contribuir para o desenvolvimento do país.
               Essas brechas, porém, geraram críticas de setores do governo e da imprensa ao Ministério das Relações Exteriores, apontado como incompetente na tarefa de restringir a entrada de imigrantes indesejáveis. Se já a partir de 1938 o Brasil dera início a uma política imigratória altamente restritiva e controladora, as fronteiras se fechariam ainda mais com um decreto de 1941, que tirou do Itamaraty e passou para o Ministério da Justiça a responsabilidade de emitir vistos temporários ou permanentes. A partir de então, a imensa maioria dos que tentavam obter um visto em qualquer representação consular brasileira recebia um não diretamente. Raríssimos foram os diplomatas que se sensibilizaram com o drama dos refugiados do nazismo e emitiram vistos a despeito da orientação do governo Vargas – caso do embaixador brasileiro na França, Luiz Martins de Souza Dantas. Aquele ano também foi especialmente significativo em relação ao número de estrangeiros impedidos de desembarcar nos portos brasileiros por serem judeus. Em um único caso, no mês de outubro, cerca de 100 passageiros foram impedidos de desembarcar. Vinham em dois navios, Cabo de Boa Esperança e Cabo de Hornos, e tiveram que rumar para Buenos Aires e outros portos ao sul. Impedidos também de desembarcar ali, iam ser devolvidos à Europa quando uma negociação internacional logrou obter autorização para desembarque temporário na da ilha caribenha de Curaçao.
               Parte dos historiadores afirma que a política imigratória adotada pelo Brasil antes e durante a Segunda Guerra estaria influenciada pelo ideário nazi-fascista. Se isto de fato ocorreu, a quebra das relações diplomáticas com o Eixo, em 1942, deveria ter produzido mudanças no controle de entrada de estrangeiros no país. As evidências, no entanto, indicam que isto não ocorreu. Ao mesmo tempo, com o início da “Solução Final” adotada por Hitler, diminuiu drasticamente o número de pessoas ainda em condições de solicitar asilo, pois a política nazista impedia que os grupos perseguidos saíssem da Europa.
               Novas levas de imigrantes voltaram a procurar o Brasil após o fim da guerra. Mesmo com o término da ditadura Vargas, a política imigratória continuava semelhante ao período do Estado Novo: interessada em imigrantes considerados de boa fusibilidade. Os judeus já não significavam um “problema”: com a derrota do nazismo, sair da Europa não era mais uma questão de sobrevivência física e, a partir de 1948, com a criação do Estado de Israel, ficou afastada qualquer possibilidade de pressão internacional para que o Brasil recebesse mais refugiados daquele grupo.
               Oitenta anos depois do contexto histórico que levou ao Holocausto, são muitas as diferenças do quadro atual. Ainda assim, a responsabilidade humana em evitar a ocorrência de novos genocídios nos chama a perceber continuidades: a persistência de preconceitos e intolerância contribui para que, ainda hoje, muitos países do mundo se neguem a ampliar sua política de recepção a refugiados.

FÁBIO KOIFMAN É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO E AUTOR DE QUIXOTE NAS TREVAS: O EMBAIXADOR SOUZA DANTAS E OS REFUGIADOS DO NAZISMO (RECORD, 2002) E IMIGRANTE IDEAL: O MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E A ENTRADA DE ESTRANGEIROS NO BRASIL (1941-1945), (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2012).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016

Saiba Mais – bibliografia
BARROS, Orlando de. Preconceito e educação no Governo Vargas (1930-45). Capanema: Um episódio de intolerância no Colégio Pedro II. Rio de Janeiro: Cadernos avulsos da biblioteca do professor do Colégio Pedro II, 1987.
LESSER, Jeffrey H. O Brasil e a Questão Judaica: Imigração, diplomacia e preconceito. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
MILGRAM, Avraham. Os Judeus do Vaticano. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.            

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