“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Ecos de Mussolini

Nos anos do fascismo, o Brasil se tornou destino de italianos em busca de segurança política e econômica
MARCELLO SCARRONE
              Eram trinta, quarenta, talvez um pouco mais. Vinham de diferentes procedências e tinham variadas orientações políticas. Dialogavam entre si. E, por vezes, tomavam caminhos sem relação com a militância. Esta era a realidade dos refugiados antifascistas italianos no Rio de Janeiro entre as duas guerras mundiais. Um grupo pequeno, sobretudo se comparado com os milhares de compatriotas que já viviam e trabalhavam na capital federal. Mas que buscou movimentar as fileiras da colônia e de setores da sociedade carioca, denunciando as violações e as ilegalidades cometidas no seu país de origem e alertando contra a ameaça que o fascismo podia representar para qualquer nação do mundo.  
               Após anos de violências e intimidações contra sedes de sindicatos, cooperativas e partidos de esquerda, o regime fascista de Benito Mussolini chega ao poder em 1922. Três anos depois, uma série de leis duríssimas retira de seus opositores toda liberdade de expressão, de imprensa e de associação. Aos dirigentes e militantes dos partidos antifascistas não restam mais que dois caminhos. O primeiro, abraçado sobretudo pelo recém-fundado Partido Comunista, será o de uma perigosa atividade clandestina, muitas vezes resultando em anos de prisão ou degredo. O segundo será a emigração. Esta foi a via adotada pela maioria dos líderes políticos e sindicais socialistas e anarquistas, mas também pelos liberais, republicanos e católicos, e por numerosos membros destas agremiações.
               O destino principal do exílio forçado era Paris, que se constituiu no centro do antifascismo italiano no exterior. Inglaterra, Suíça e as Américas também eram alternativas. No Brasil, particularmente São Paulo e Rio de Janeiro se apresentaram como destino de uma viagem em busca de refúgio e segurança econômica e política.
               O termo só se consagrou historicamente no pós-guerra, mas nada retira daquelas pessoas a condição de refugiados. Além de serem perseguidos por seus ideais políticos, foram forçados a sair de seu país por não encontrarem mais condições dignas de vida e trabalho. Os nomes de muitos deles povoavam os informes e os boletins da polícia política fascista. Rede de informantes e, sobretudo, a colaboração das autoridades diplomáticas italianas nas cidades brasileiras vigiavam suas atividades em terra paulistana ou carioca.
               Comerciantes, livreiros, garçons, mecânicos, jornalistas: cada um se reinventa no Brasil como pode. Ao mesmo tempo em que mantêm laços vivos com o centro do antifascismo em Paris, por meio de correspondência e pelos jornais recebidos, estreitam relações com os colegas de exílio em associações tradicionais da imigração italiana no Brasil (como as Sociedades de Beneficência) e outras criadas especialmente para eles – como a Liga para os Direitos do Homem, a Associação Antifascista e a União Democrática.
               Alguns refugiados tiveram atuação destacada. Um deles foi o advogado Libero Battistelli, que chegou ao Rio de Janeiro em 1927. Cruzara a fronteira de seu país após ter casa e escritório em Bolonha destruídos pela milícia do Duce Mussolini por defender numerosos antifascistas. Por aqui, além de liderar várias associações, tornou-se um precioso colaborador de La Difesa, semanário paulistano que funcionava como elo entre as várias vertentes antifascistas. De militância republicana, Battistelli dialogava com socialistas e anarquistas, com comunistas e liberais. No Rio, seu quarto era ponto de encontro e de decisão dos membros da colônia empenhados na propaganda e na ação política.
               Ao obter a naturalização brasileira, o advogado consegue maior liberdade de movimentos. Em 1930, faz uma breve viagem à Europa para arrecadar fundos em favor das organizações criadas no Rio e encontrar os expoentes da oposição exilados na capital francesa. De volta ao Brasil, continua a militância, agora como representante de uma organização antifascista recém-surgida na Itália, Giustizia e Libertá (Justiça e Liberdade). O regime de Mussolini parece cada vez mais inabalável, e só com a chegada de Hitler ao governo da Alemanha em 1933 o mundo começa a perceber a verdadeira periculosidade do fascismo. A guerra civil na Espanha desponta como uma oportunidade de traduzir em prática tantos apelos antifascistas. Em 1936, Battistelli resolve viajar para a França e depois se alista nas milícias antifranquistas na Espanha. No ano seguinte, em ataque em território aragonês, é atingido mortalmente pela artilharia inimiga.  
               Outro expoente daqueles anos foi o anarquista Nello Garavini, que aportou no Rio em 1926 em consequência da feroz perseguição das milícias fascistas na Itália contra muitos libertários. Após anos de trabalho como ascensorista e garçom no Hotel Glória e depois como vendedor de tintas, Garavini adquiriu em 1934 uma pequena livraria na Praça Tiradentes, que logo transformou também em editora. A recém-nascida “Minha Livraria” passou a ser frequentada por estudantes, intelectuais, artistas e um público interessado em conhecer o pensamento da esquerda. Não à toa: em pouco tempo o italiano começou a publicar o que chamava de “manuais de cultura social”, isto é, livros que apresentam os clássicos anarquistas e comunistas, de Malatesta a Bakunin, de Marx a Lenin.
               Pioneira na difusão do pensamento libertário no Brasil, a editora se abre aos poucos à publicação de outros autores. Até porque o estado de sítio introduzido por Vargas após o levante comunista de 1935 aumenta a vigilância policial sobre a livraria e seus volumes. No Brasil daqueles anos, não era confortável a situação dos refugiados italianos antifascistas: além da desconfiança de longa data das autoridades contra expoentes de movimentos e partidos de esquerda, o Estado Novo incrementa a repressão a comunistas e aliados, além de implementar uma legislação que busca disciplinar a presença dos estrangeiros no território nacional. Mais tarde, com a entrada do país na Segunda Guerra Mundial contra as forças do Eixo, o simples fato de ser italiano tornaria o indivíduo suspeito. Nesse período, muitos exilados do fascismo sofrem restrições, inquéritos policiais, prisões e expulsões. O próprio Garavini é obrigado em 1942 a encerrar a atividade editorial, silenciando seus ideais e projetos.
               Além dos exilados que escolheram o Brasil como refúgio em tempos de perseguição, vários membros da colônia italiana se empenharam no esforço de propaganda e luta contra o fascismo. Um deles, chegado ao Rio ainda em 1911, na esteira das tradicionais correntes migratórias, foi o genovês Giuseppe Scarrone. Mestre vidreiro, ele deixou a Itália aos 52 anos, após o enésimo boicote à sua atividade por parte das famílias locais que detinham o cartel da produção. A militância socialista explica seu ostracismo, e o caso demonstra como na figura do emigrante – e na do refugiado – as razões políticas ou religiosas misturam-se frequentemente com motivos econômicos.
               Na capital federal, Scarrone monta a Fábrica Nacional de Vidros no bairro de Vila Isabel, que chega a contar com 500 operários. Ali tenta implementar uma forma de cooperativa de divisão dos lucros com os trabalhadores e os clientes, à luz de seus ideais socialistas, numa experiência que dará certo durante alguns anos. Enquanto isso, produz dezenas de opúsculos, cartas abertas e livrinhos contra o fascismo. É ele mesmo quem escreve, manda imprimir em numerosos exemplares e os envia à Itália, para particulares e autoridades. A ousadia lhe rende, em 1926, uma condenação a dois anos e meio de prisão pela Justiça italiana. O empresário não mais poderá retornar à sua pátria.
               Em carta aos parentes, Emma, esposa de Garavini, resume os sentimentos dos antifascistas em terra brasileira. “Partimos há cinco anos, mas não esquecemos nem um momento do que vocês tiveram que sofrer, amordaçados, atordoados pelo hábito diário da obediência que não encontra consentimento na consciência... Sabemos de tudo, das violências, das bárbaras sentenças, do confinamento, tudo o que de mais feroz um governo pode usar para se sustentar”, escreve.  A vida refugiada, mesmo renovada, não comporta esquecimento.

MARCELLO SCARRONE É PESQUISADOR DA REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL E AUTOR DA TESE “NELLO, LIBERO E GIUSEPPE: DO RIO CONTRA MUSSOLINI. PERCURSOS POLÍTICOS DO ANTIFASCISMO ITALIANO NA CAPITAL FEDERAL (1922-1945)”, (UFRJ, 2013).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016

Saiba Mais – bibliografia
BERTONHA, João Fábio. “Sob a sombra de Mussolini. Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945”. São Paulo: Fapesp/ Annablume, 1999.
DROZ, Jacques. “Histoire de l’antifascisme en Europe (1923-1939)”. Paris: La Découverte, 2001.
TRENTO Angelo. “Do outro lado do Atlântico. Um século de imigração italiana no Brasil”. São Paulo: Istituto Italiano di Cultura/ Nobel, 1989.


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