“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

terça-feira, 8 de setembro de 2020

De braços dados e cruzados

Antes mesmo dos direitos trabalhistas, o movimento libertário esteve no centro da organização das primeiras grandes greves do país.
CARLOS AUGUSTO ADDOR
               No Brasil da Primeira República (1889-1930), os trabalhadores urbanos viviam num verdadeiro "inferno social". Homens, mulheres e crianças passavam 12, 14 ou até mesmo 16 horas diárias, ao longo de seis dias por semana, no interior de fábricas insalubres e perigosas. Álvaro Corrêa, antigo operário têxtil e gráfico em fábricas do Rio de Janeiro e de Juiz de Fora nas primeiras décadas do século XX, contou ter visto "moças serem esbofeteadas e saírem chorando sem um protesto para não perder o emprego". As mulheres eram também vítimas frequentes de tentativas de abuso sexual. As crianças eram espancadas por quaisquer deslizes no trabalho. No interior da Fábrica de Tecidos Penteado, na capital paulista, um caso ocorrido em 1922 é exemplar e assustador. Um menino chamado Daniel, exausto após longa jornada de trabalho, adormeceu e perdeu o horário de saída. A segurança do prédio era feita, à noite, por um vigia acompanhado de cães ferozes. Daniel foi dilacerado pelas feras, morrendo no hospital depois de longa e dolorosa agonia.
               Embora em 1919 tivesse sido promulgada no Brasil uma primeira lei sobre acidentes de trabalho, ao longo da Primeira República essa lei, na prática, permaneceu letra morta. O Estado não se propunha a intervir de forma normativa sobre o mundo do trabalho, garantindo aos empresários a possibilidade de superexplorar os trabalhadores. Junte a isso o fato de que nas três primeiras décadas da República chegaram ao Brasil cerca de 4 milhões de europeus, em sua maioria italianos, espanhóis e portugueses. Isso criou uma situação boa para os patrões, péssima para os operários. Sobrava mão de obra, aumentava o desemprego.
               Esses imigrantes, ao lado dos brasileiros, teriam papel decisivo no processo de formação da classe operária. Num primeiro momento, afloraram rivalidades, disputas e conflitos interétnicos. Entretanto, ao longo do tempo, o partilhar do duro e sofrido cotidiano fabril levou os trabalhadores a minimizarem suas diferenças e a priorizarem interesses comuns. Aos poucos, forma-se uma identidade (e uma consciência) de classe.
               As ideias anarquistas vieram com os imigrantes, o que levou setores do patronato e membros do aparelho de Estado a formularem a imagem da "planta exótica": uma ideologia estrangeira que não encontraria terreno fértil para se desenvolver no Brasil. Essa imagem seria usada de forma recorrente para tentar desqualificar o anarquismo, à medida que ele conquistava adesão crescente. Também era utilizada para justificar processos de deportação de trabalhadores estrangeiros que "perturbassem a ordem pública ou a paz social", ou seja, que participassem de greves, comícios e outras manifestações públicas. A Lei Adolfo Gordo, promulgada em 1904 e regulamentada em 1907, fundamentou juridicamente o processo de expulsão de centenas de militantes estrangeiros e brasileiros, enviados para rincões remotos como os seringais do Acre e, nos anos 1920, para a colônia penal de Clevelândia, no Amapá.
               Apesar da perseguição, o anarquismo ampliava sua presença nos sindicatos operários e no debate político e intelectual, denunciando, através de uma imprensa bastante vigorosa, as condições de vida impostas aos trabalhadores. Em 1903, no Rio de Janeiro, e em 1907, em São Paulo, duas greves mobilizaram trabalhadores de vários setores, cujas principais reivindicações eram "os três oitos" - jornada de oito horas de trabalho, propiciando oito horas de repouso e oito horas livres. Ao fim das greves, algumas categorias profissionais com maior poder de barganha conseguiram a redução da jornada, se não para oito, ao menos para nove horas.
               Em abril de 1906, foi realizado no Rio de Janeiro o Primeiro Congresso Operário Brasileiro, com clara influência anarquista. Uma de suas resoluções, efetivada em 1908, era a criação da Confederação Operária Brasileira (COB) que, por sua vez, lançou o jornal A Voz do Trabalhador, um dos mais importantes periódicos da imprensa operária na Primeira República, ao lado de A Plebe, Guerra Social, A Terra Livre, Na Barricada, Spartacus, A Voz do Povo e A Lanterna - este último ainda enfatizava o caráter anticlerical do anarquismo.
               A eclosão da Primeira Guerra Mundial levou o movimento anarquista a reafirmar seu caráter internacionalista, pacifista e antimilitarista. Em São Paulo, o movimento pôs em circulação cartões-postais com a expressão "Papai, não vás à guerra", ecoando o lema "Não mandes teus filhos à guerra", que anarquistas divulgavam na Europa. Intelectuais libertários, como o paulista Edgard Leuenroth (1881-1968) e o baiano Fábio Luz (18641938), escrevem e publicam artigos e manifestos propondo transformar a guerra imperialista em guerra revolucionária. O jornal libertário paulistano La Propaganda conclama os pacifistas a "declarar guerra à guerra". Em outubro de 1915, a COB organiza no Rio de Janeiro o Congresso Internacional
da Paz, do qual participam delegados de sindicatos e federações operárias do Brasil, da Argentina, de Portugal e da Espanha. Dias depois, militantes promovem na sede do COB o Congresso Anarquista Sul-Americano, com a presença de delegados da Argentina e do Uruguai.
               Os efeitos da guerra mundial sobre a economia brasileira são terríveis: redução do comércio externo, retração da atividade fabril, desemprego, carências generalizadas. Mas uma notícia vinda do Oriente anima trabalhadores e militantes anarquistas, socialistas e comunistas: em 1917, pela primeira vez uma revolução que se diz socialista, feita em nome dos operários e dos camponeses russos, chega ao poder. Cria um clima de euforia revolucionária e alimenta expectativas de que o capitalismo estaria agonizante. Durante os anos seguintes, os anarquistas ainda acreditam numa suposta dimensão libertária da Revolução Russa que, por meio da "revolução social", completaria o processo iniciado com a Revolução Francesa (1789), a "revolução política". Os massacres dos marinheiros de Kronstadt e dos camponeses ucranianos liderados pelo anarquista Nestor Makhno, ambos em 1921, enterram essas ilusões.
               Em 1917, grandes greves envolveram dezenas de milhares de trabalhadores em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na capital paulista, onde militantes anarquistas vinham há anos desenvolvendo atividades de propaganda libertária, o assassinato do jovem sapateiro espanhol José Martinez pela polícia, num conflito de rua, transformou uma greve já bem ampla em greve geral, que paralisou a cidade por alguns dias. Durante a greve formou-se o Comitê de Defesa Proletária, composto por cinco militantes anarquistas e um socialista, para negociar um acordo com os patrões. Algumas demandas, como reajustes salariais e redução de jornada de trabalho, foram parcialmente atendidas e o acordo foi ratificado por três grandes comícios públicos. Foi a primeira greve geral parcialmente vitoriosa na história brasileira, contribuindo para a autoestima da classe operária. No entanto, muitos patrões não cumpriram o acordo e as autoridades públicas não honraram sua palavra: vários líderes foram perseguidos e presos, e alguns estrangeiros deportados.
               No ano seguinte, outras duas greves tiveram grande efeito simbólico. Em agosto, pararam os trabalhadores da Companhia Cantareira e Viação Fluminense, que operava as barcas entre Rio de Janeiro e Niterói e os bondes desta última. O movimento se radicalizou. Num conflito entre operários e policiais na rua da Conceição, em Niterói, alguns soldados do Exército tomaram partido dos grevistas. Um cabo e um soldado morreram no confronto, e ganharam homenagens de delegações operárias. O episódio foi associado à experiência russa de confraternização entre conselhos de operários (sovtets) e soldados, estimulando a imaginação dos libertários brasileiros: sonhavam com a formação do "Soviet do Rio". Em novembro, a greve de dezenas de milhares de tecelões, metalúrgicos e operários da construção civil, no Rio, articula-se com uma tentativa de insurreição planejada por militantes anarquistas - rapidamente delatada e reprimida. Seus principais líderes, José Oiticica, Astrojildo Pereira e Agripino Nazaré, são presos. Oiticica é "deportado" para Alagoas e Agripino para a Bahia. A greve operária, pacífica e até certo ponto independente da atividade dos anarquistas, também foi duramente reprimida pela polícia. Respaldados pelo governo, os patrões endureceram sua posição: não mais reconheceriam a União dos Operários em Fábricas de Tecidos (Uoft), uma das organizadoras do movimento, como entidade representativa dos têxteis, por estar "dominada por elementos anarquistas estranhos à classe".
               Mesmo derrotadas em sua maioria, essas greves colocaram a causa operária, pela primeira vez, em destaque na grande imprensa. Não seria mais possível continuar com o discurso de que não havia razão para greves no Brasil. Contudo, reconhecer a legitimidade de reivindicações operárias não significa aceitar o anarquismo. Em 19 de novembro de 1918, o jornal A Razão, que se dizia um órgão defensor da "causa das classes que trabalham", publica o artigo "O joio e o trigo". O "trigo" seriam os trabalhadores brasileiros, honrados, dóceis, laboriosos. E o "joio", os anarquistas estrangeiros, "apátridas, homens sem Deus, sem honra, sem família, ingratos com a terra que os acolheu, mazorqueiros (desordeiros), arruaceiros que vivem a pregar a subversão social e política, a revolução que lhes entregue o poder". Uma das poucas vozes a sair em defesa do anarquismo é a do escritor Lima Barreto, em especial nas crónicas "Da minha cela" e "Sobre o Maximalismo".
               No início da década de 1920, as divergências entre anarquistas e comunistas se aprofundam. Astrojildo Pereira, ex-anarquista, adere ao bolchevismo e participa da fundação do Partido Comunista do Brasil (1922). Torna-se um dos mais ácidos críticos do anarquismo, segundo ele, uma proposta "utópica", sem condições políticas para elaborar um projeto consistente de revolução socialista. A verdade viria unicamente de Moscou. Essa visão comunista sobre o anarquismo iria se consolidar nas décadas seguintes. José Oiticica e Fábio Luz, entre outros anarquistas, contestam duramente Astrojildo. Para eles, qualquer ditadura, mesmo aquelas que se dizem "de esquerda" ou "do proletariado", deve ser combatida e ter suas arbitrariedades denunciadas. "Como anarquistas revolucionários (...) não podemos concordar que à ditadura do capitalismo, origem de toda a tirania, se oponha a ditadura de outra classe, embora essa classe seja o proletariado", afirma o jornal A Plebe em 1922.
               O estado de sítio promulgado em 1922 para auxiliar o governo no combate aos primeiros levantes militares que marcarão toda a década incide fortemente sobre o movimento operário: sindicatos são fechados, lideranças presas e deportadas, jornais empastelados. Além de uma repressão mais dura, o governo republicano começa a cooptar ou assimilar setores da classe trabalhadora através da elaboração de leis, como a das férias, um código para o trabalho infantil e um projeto de aposentadoria e pensões. É um período de transição entre o liberalismo ortodoxo vigente nas primeiras décadas do século e a construção, ao longo das décadas de 1930 e 1940, do Estado autoritário e centralista, do qual o sindicalismo corporativista será peça estratégica. Fechavam-se os espaços ao anarquismo na vida operária do Brasil.

CARLOS AUGUSTO ADDOR E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE E AUTOR DE UM HOMEM VALE UM HOMEM: MEMÓRIA. HISTÓRIA E ANARQUISMO NA OBRA DE EDGAR RODRIGUES (ACHIAMÉ, 2012).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 08 - nº 95 – agosto 2013

Saiba Mais: Bibliografia
RAGO, Margareth. Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2000,
REIS, Daniel Aarão & DEMICINIS, Rafael (orgs.). História do Anarquismo no Brasil Vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad X / Eduff, 2006.


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