“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Anos de chumbo e concreto

Foi durante a ditadura que as grandes empreiteiras consolidaram seu poder, em íntimas ligações com o Estado.
       A Operação Lava Jato, deflagrada em 2014 em ação conjunta da Polícia Federal e do Ministério Público, colocou atrás das grades dirigentes executivos das maiores empresas brasileiras de engenharia. As investigações revelaram que as empreiteiras se organizavam na forma de cartel e mantinham esquemas de corrupção em contratos com a Petrobras. Mas este tipo de relação promíscua entre empresários e órgãos públicos não é exatamente uma novidade. O poder e a influência política dos empreiteiros de grandes obras devem muito ao período da ditadura civil-militar.
     As principais empresas do ramo foram fundadas entre as décadas de 1930 e 1950, momento em que o eixo do desenvolvimento econômico brasileiro se deslocava do campo para as cidades. Para dar conta desse processo, foi montada uma infraestrutura voltada ao desenvolvimento da indústria, com empreendimentos principalmente nas áreas de energia e de transporte. O Estado demandou grandes obras para as corporações de engenharia, ajudando a impulsionar o desenvolvimento industrial. Camargo Corrêa (1939), Andrade Gutierrez (1948), Queiroz Galvão (1953), Mendes Junior (1953)... como o nome da maior parte dessas empresas indica, elas tiveram em sua origem (e têm até hoje) o controle eminentemente familiar.
     O governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) foi muito importante para o desenvolvimento das empreiteiras, encomendando-lhes as rodovias previstas no Plano de Metas e as obras da nova capital federal, Brasília. As corporações do setor tiveram então um crescimento impressionante. De pequenas e médias empresas locais tornaram-se grandes firmas nacionais. Nos anos e nas décadas seguintes, sob a ditadura, as construtoras alcançaram uma expansão sem precedentes, em virtude de políticas estatais favoráveis às atividades do setor, incluindo um intenso programa de obras públicas. Formaram-se grandes grupos na indústria de construção pesada. Com incentivo estatal, as empresas se ramificaram para outros setores econômicos, e desde 1968 passaram a realizar obras também em diversos países. Foi a ditadura a responsável pela gestação de grandes conglomerados internacionais liderados pelas empreiteiras. E o poder conquistado por esses grupos consolidou-se de tal forma que não foi abalado nem com a transição do regime político, na década de 1980.
     Ainda no período Kubitschek, os empresários da construção passaram a se organizar em associações e sindicatos nacionais. Foram criadas entidades como a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) e o Sindicato Nacional da Construção Pesada (Sinicon) – que desempenhariam papel relevante na desestabilização do governo João Goulart e na deflagração do golpe civil-militar. Diretores dessas entidades participavam também do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), que reunia oficiais da Escola Superior de Guerra (ESG) e representantes de empresas multinacionais e assumiria ativamente a campanha para derrubar João Goulart. Caso emblemático foi o de Haroldo Poland, presidente da empreiteira carioca Metropolitana, ex-presidente do Sinicon e que desempenhava função fundamental dentro do Ipes. Ligado a oficiais militares, Poland foi um dos agentes civis mais importantes no golpe de 1964. 
     Ao longo da ditadura, esses organismos fortaleceram sua atuação junto ao Estado, conquistando livre trânsito em certas agências e influenciando a agenda das políticas públicas nacionais. Enquanto as organizações populares e os sindicatos dos trabalhadores eram cerceados e suas lideranças perseguidas, não havia o mesmo tipo de repressão às organizações representativas das empresas da construção civil, que se multiplicavam e tinham intensa proximidade com certas figuras do governo. A Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) e a União Nacional dos Estudantes (UNE) foram fechadas pela ditadura, enquanto continuavam sendo criadas entidades de empresários da engenharia, como a Associação Brasileira de Engenharia Industrial (1964), o Sindicato da Construção Pesada de São Paulo (1968) e a Associação de Empreiteiros do Estado do Rio de Janeiro (em 1975). 
     A política de repressão e terrorismo de Estado contou com o apoio, inclusive financeiro, de empresários e empreiteiros. A Camargo Corrêa foi uma das empresas que contribuíram com iniciativas para desbaratar a esquerda armada e suas organizações, usando métodos que incluíam tortura e assassinatos. A mais conhecida foi a chamada Operação Bandeirantes, financiada por empresas como grupo Ultra, Camargo Corrêa, Folha de S. Paulo, Nestlé, General Electric, Mercedes-Benz e Siemens.
     Grandiosos empreendimentos foram realizados durante o regime, fortalecendo as maiores construtoras, que ficaram responsáveis pelas principais obras do período. Itaipu e outras hidrelétricas de grande porte, a Transamazônica e outras rodovias em diversas regiões do país, a Ferrovia do Aço e projetos no setor ferroviário, os metrôs do Rio e de São Paulo, os conjuntos habitacionais do Banco Nacional de Habitação (BNH, criado em 1964), as usinas termonucleares de Angra dos Reis e a ponte Rio-Niterói foram alguns dos projetos de grande envergadura que saíram do papel naquele período. 
     Com o suporte institucional do AI-5, em 1969 o governo estabeleceu reserva de mercado para as obras públicas realizadas no Brasil: a partir de então, somente companhias sediadas no país e com controle nacional poderiam ser contratadas. Várias outras medidas beneficiaram o empresariado, como isenções fiscais, financiamento público de obras internas e no exterior, entre outras decisões que ampliavam as margens de lucro da iniciativa privada. Em relação às políticas trabalhistas, também houve favorecimento generalizado aos empresários, e aos empreiteiros em particular. Medidas de “arrocho” salarial implantadas a partir do golpe beneficiavam companhias que empregavam numerosa força de trabalho, caso das empreiteiras. A repressão aos sindicatos permitia que as empresas ignorassem as demandas dos operários por melhores condições de trabalho. Com fiscalização relapsa em relação à segurança, o país virou recordista internacional em acidentes de trabalho – no auge da ditadura, chegou-se a registrar 5 mil trabalhadores mortos por ano, e o setor de construção civil era um dos principais responsáveis por essas estatísticas. 
     Para as empresas de engenharia era rentável manter condições inadequadas e perigosas nas obras e não dar atenção à saúde do funcionário, visto que as multas – quando aplicadas – eram de reduzido valor. Quando ocorriam acidentes, era prática corrente culpar o próprio trabalhador, isentando o empregador da sua responsabilidade. Não à toa, ao final do regime, em meio ao processo de abertura política, eclodiram diversas greves, revoltas e motins em canteiros de obras, inclusive em grandes empreendimentos como a usina de Tucuruí, erguida entre 1976 e 1984 em plena selva amazônica.
     Sob as bênçãos da ditadura, o Brasil viu consolidar-se um capital de novo porte, monopolista em alguns setores da economia – e entre estes destacou-se a construção civil. Alguns poucos grupos chegaram a um patamar diferente, extremamente vigoroso, detendo amplo poder econômico e político. As principais empresas beneficiadas foram Odebrecht (Norberto Odebrecht), Camargo Corrêa (Sebastião Camargo), Andrade Gutierrez (Sérgio Andrade) e Mendes Júnior (Murillo Mendes). Dentre os agentes políticos da ditadura associados aos empreiteiros, destacam-se Mario Andreazza (ministro dos Transportes de 1967 a 1974 e do Interior de 1979 a 1985), Eliseu Resende (diretor do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem [DNER] e ministro dos Transportes de 1979 e 1982) e Delfim Netto (ministro da Fazenda de 1967 a 1974). O cenário forjado nos anos 1960 e 1970 foi altamente favorável ao crescimento das atividades dessas empresas, em ambiente propício para a acumulação de capital. A participação ativa que esses e outros empresários tiveram junto ao governo é mais uma prova de que o regime não foi somente militar, mas também civil, com corporações e Estado de mãos dadas em esquemas de favorecimento mútuo. Um casamento que, tudo indica, resistiu incólume à mudança de regime, e persiste em tempos democráticos. 

Pedro Henrique Pedreira Campos é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor de Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar brasileira, 1964-1988 (Eduff, 2014).

Saiba mais – Bibliografia
 CRUZ, Sebastião Velasco. Empresariado e Estado na Transição Brasileira: um estudo sobre a economia política do autoritarismo (1974-1977). Campinas/São Paulo: EdUnicamp/ Fapesp, 1995. 
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1981.
FONTES, Virgínia & MENDONÇA, Sonia Regina de. História do Brasil Recente: 1964-1992. 4. ed. atualizada. São Paulo: Ática, 1996 [1988].
LEMOS, Renato. “Contrarrevolução, ditadura e democracia no Brasil”. In: SILVA, Carla Luciana; CALIL, Gilberto Grassi & SILVA, Marco Antônio Both da (orgs.). Ditaduras e Democracias: estudos sobre hegemonia, poder e regimes políticos no Brasil (1945-2014). Porto Alegre: FCM, 2014.

Saiba mais – Documentário 
Cidadão Boilesen
O documentário vai desnudar a participação do empresariado nos governos militares, não só apoiando o golpe de 1964, mas também financiando a repressão, à perseguição e tortura de grupos de esquerda e revolucionários que se opunham ao regime. Para que isso fosse possível, houve um eficiente trabalho de pesquisa sobre Boilesen (dinamarquês naturalizado brasileiro, presidência da Ultragaz), resgatando desde a sua infância na Dinamarca até o seu assassinato em 1971. O documentário, ainda traz depoimentos de familiares e amigos do empresário, ex-militantes de esquerda, militares, jornalistas, ex-governantes, membros da Igreja, ex-agentes da repressão, entre outros personagens importantes da época.
Além dos depoimentos, da documentação, e das falas dos personagens que vivenciaram essa época, o documentário, fornece importantes pistas de como foi articulado o golpe de 1964, bem como esclarece pontos importantes dessa relação entre o empresariado e os militares neste período.
Direção: Chaim Litewski
Ano: 2009
Áudio: Português
Duração: 93 minutos

Saiba mais – Links 

domingo, 20 de setembro de 2015

Terras para todos

Atraídos pela propaganda oficial, brasileiros de todas as partes tentaram a sorte na Amazónia, no início da ditadura, mas em vez de prosperidade encontraram um território controlado pela violência e trabalho escravo.
Regina Beatriz Guimarães Neto
     Consequências de vários projetos de colonização aprovados pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), tanto oficiais quanto da iniciativa privada, a década de 1970 ficou marcada pela derrubada sem precedentes da floresta amazônica. Grandes clareiras deram lugar, da noite para o dia, a cidades. O barulho das máquinas e de pequenos aviões se somava ao burburinho de homens e mulheres de diversas regiões do Brasil, sobretudo do Sul, que chegavam a lugares tão distantes quanto Rondônia e Mato Grosso seguindo as precárias estradas abertas na mata. Os jornais e as propagandas do governo e das empresas privadas estimulavam esse novo bandeirantismo. Faziam alarde das riquezas da região, da abundância de terras e das inúmeras oportunidades de trabalho que iam surgindo. O que se chamou de "colonização" pelos governos militares se encaixava numa narrativa majestosa sobre a grandeza do Brasil. Era a versão moderna do mito do Eldorado amazônico.
     Esses projetos de colonização passaram a ser um instrumento de poder do Estado para direcionar o deslocamento, sobretudo de pequenos proprietários, do Sul para o Norte. Para a ditadura militar, era prioritário controlar os movimentos sociais no campo. A "questão da terra" era um problema de segurança nacional. Por isso, as empresas de colonização se beneficiaram dos incentivos financeiros do Estado, através da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e da Superintendência do Desenvolvimento Sustentável do Centro Oeste (Sudeco) e outros programas ou projetos governamentais, como o Polocentro, o Proterra, o Polonoroeste e o Prodeagro. Programas desenvolvidos com recursos obtidos pelo governo federal junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ou ao Banco Mundial.
     Nos estados que compõem o território amazônico, instaurou-se um grande mercado de terras, em que o governo controlava o acesso, a posse e a distribuição de áreas a serem exploradas. Empresas de colonização, como a Sinop, a Indeco, a Incol, a Codemat, Jurena Empreendimentos e a Colonizadora Líder, entre outras, adquiriam grandes extensões, com mais de 200 mil hectares, através de licitações abertas pelo Estado para a compra de terras devolutas, que podiam ser compradas a preços irrisórios. A Indeco (Integração, Desenvolvimento e Colonização), por exemplo, adquiriu do estado de Mato Grosso, em 1973, para efeito de colonização, 400 mil hectares de terra, a Cr$ 50,00 o hectare. Incorporando terras contíguas, logo apareceria como dona de mais de 1 milhão de hectares, num território encravado em terras indígenas. A colonizadora Sinop adquiriu 650 mil hectares, num primeiro momento, criando três núcleos de colonização, na área coberta pela BR163 (Cuiabá-Santarém).
     Em sua origem, as empresas que se dirigiram para a Amazônia não eram diretamente ligadas ao agronegócio. Algumas pertenciam a capitalistas estrangeiros, interessados em especular com a terra. Estas colonizadoras destinavam apenas uma pequena parte no caso de Alta Floresta (área explorada pela Indeco), mais ou menos 13% de toda a área enquadrada no projeto - para pequenos agricultores. Eram oferecidos lotes com cem hectares, que logo depois iriam sofrer um processo violento de fracionamento, reproduzindo as mesmas condições das quais os colonos haviam fugido do Sul.
     A construção de novas cidades na região foi anunciada como o melhor caminho para o país superar o "atraso". Ser moderno, como preconizava a publicidade oficial, relacionava-se à adoção de novas tecnologias e à expansão dos mercados. A paisagem da floresta era rasgada por estradas. Em propagandas que exaltavam o "corredor de exportação", a BR-163 - Cuiabá-Santarém, as novas cidades são apresentadas como exemplo de progresso. E mostravam seus grandes saltos desde que clareiras foram abertas na selva.
     Desde o primeiro momento da implantação dos projetos de colonização, as plantas cartográficas que mapeavam os lotes urbanos projetavam um território hierarquizado. Separavam por módulos os novos habitantes, circunscrevendo o lugar social de cada colono. Reproduziam-se, no plano da arquitetura urbana, as relações de poder em que as empresas assumiam o controle sobre a circulação e a fixação dos moradores.
      Os desenhos que projetaram a construção das novas cidades na década de 70 podem ser vistos como um símbolo desta ordem social. A cidade de Juína, próxima ao estado de Rondônia, é emblemática. Tem a forma de vários octaedros interligados, cada qual representando um módulo, que por sua vez é dividido em lotes. Estes octaedros que aparecem nas propagandas parecem grandes colmeias, sugerindo, quase instantaneamente, que se trata de uma cidade voltada para o trabalho. O desenho da cidade de Vila Rica, que se situa nos limites com o estado do Pará, foi feito em forma de sino, evocando a religiosidade do período colonial e a ostentação da riqueza aurífera.
     Os núcleos urbanos dos projetos destinados à colonização se envolveram também com a exploração de madeira por grupos nacionais, mais tarde associados a empresas estrangeiras, à pecuária e à mineração. A exploração de ouro no norte de Mato Grosso fez com que, a partir do final da década de 70, houvesse uma verdadeira corrida para os garimpos dentro dos projetos de colonização. Guarantã do Norte, Matupá, Terra Nova e Colider cresceram com os garimpos do rio Peixoto Azevedo e rio Teles Pires. Também foi assim com Alta Floresta, Paranaíta Carlinda e Apiacás, território controlado pelo grupo Paranapanema. Já na parte mais a noroeste do estado, reinava a Sopemi (Sociedade de Pesquisa e Exploração de Minério S/A), subsidiária da De Beers, Consolidated Mines Ltda., nas grandes explorações e pesquisas de diamantes, com sede na cidade de Juína.
    Estas cidades acabaram, assim, apresentando os maiores índices de aumento populacional da Região Amazônica. Só Mato Grosso - após a divisão do estado, em 1977 - contabilizou mais de cem municípios novos até o ano 2000. Os municípios de Sinop (74.831 habitantes), Alta Floresta (46.982), Juína (38.017) e Sorriso (35.605), que surgiram como núcleos de colonização em finais da década de 70, estão entre os maiores índices de crescimento do estado, segundo dados do censo de 2000, do IBGE. No entanto, a "escravidão por dívida" e o não cumprimento dos contratos de trabalho por parte dos patrões continuam sendo práticas usuais na região.
     As colonizadoras e grandes fazendas contratavam a segurança de homens armados. Os herdeiros deste modelo de colonização ainda utilizam instrumentos de vigilância sobre sua área de influência, uns mais explícitos - como retirar os posseiros à força e até mesmo queimando barracos -, e outros menos visíveis, oferecendo-lhes lotes em setores mais afastados, insalubres, sem acesso a nenhuma infraestrutura.
     Nos primeiros momentos da abertura das novas áreas de colonização, as empresas construíram barreiras físicas, de madeira ou cimento, para ter controle sobre a região. Utilizaram também barreiras naturais, como rios de difícil travessia, para impedir a entrada dos colonos sem identidade comprovada ou daqueles considerados indesejáveis. Os moradores de Juína, cidade encravada em território indígena - Cinta-Larga, Enawenê-Nawê, Erikbaktsa e Myky -, se acostumaram a conviver com os "correntões" que ficam presos às guaritas das empresas onde se abrigam sentinelas armadas. Elas se localizam em pontos estratégicos da área de colonização. Ali se exige a identificação dos colonos, geralmente por meio de uma carteirinha fornecida pela empresa.
      Parcela significativa de pequenos agricultores e trabalhadores, que chegaram à região acreditando na possibilidade de adquirir um lote ou sonhando com novas oportunidades de trabalho, acabou descobrindo que a terra prometida era o paraíso da violência social. O trabalho escravo em propriedades rurais e áreas de desmatamento tem sido alvo de constantes denúncias da Comissão Pastoral da Terra e outras entidades.
     Nos relatórios anuais da CPT, os estados do Pará, Maranhão e Mato Grosso lideram os maiores índices de violência no campo desde a década de 70. Esses números refletem um padrão de ocupação e exploração da riqueza na Amazônia criado na época da ditadura, que acaba por destruir a floresta amazônica em nome da construção de novas cidades e estradas.
     Atraídos pelas promessas do Eldorado amazônico, homens e mulheres, em situação de grande pobreza, três décadas e meia depois se deslocam de forma constante pela região em busca de trabalho. Ora atuam nas áreas de mineração, ora participam das derrubadas da floresta. E ainda nas grandes lavouras de soja, algodão e milho. Excluídos do mercado regular de trabalho e sem qualquer documento de identidade, recebem variadas denominações, sempre pejorativas, nos lugares por onde passam. São conhecidos como "peões de trecho", "andarilhos" ou "pés-inchados". Movem-se de uma cidade para outra, mudam de região e de estado. Esses trabalhadores transformam o próprio caminho que percorrem na sua morada. Trabalhar e caminhar, para eles, são sinônimos.

Regina Beatriz Guimarães Neto é professora de História na Universidade Federal de Mato Grosso e autora de A lenda do ouro verde. Política de colonização no Brasil contemporâneo. Cuiabá: Unicen/apoio Unesco, 2002.

Fonte: Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio 2005

Saiba Mais – Bibliografia
FERREIRA, Eudson de Castro. Posse e propriedade territorial: a luta pela terra em Mato Grosso. Campinas: Editora da Unicamp, 1986.
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo: HUCITEC, 1997.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência. Tese de Livre Docência - Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1997.

Saiba Mais – Documentários
Mataram Irmã Dorothy
Em fevereiro de 2005, a irmã Dorothy Stang, de 73 anos, foi brutalmente assassinada. Ativista na defesa do meio ambiente e das comunidades carentes exploradas por madeireiros e donos de terra na Amazônia, a freira americana foi morta com seis tiros no interior do Pará. O documentário revela os bastidores do julgamento dos assassinos de Dorothy e investiga as razões de sua morte.
"Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar."
Direção: Daniel Junge
Ano: 2008
Áudio: Português - Legendado
Duração: 94 minutos

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

De demolidor a construtor

Depois de notabilizasse como conspirador e destruidor de presidentes, o jornalista e político Carlos Lacerda enfrentou o desafio de transformar em estado a antiga capital da República.
Marly Motta
     Em plena crise do governo Collor, o cartunista Ziraldo publicou na Folha de S. Paulo (4/7/1992) uma charge em que lamentava a falta de um "Carlos Lacerda". Referia-se ao "demolidor de presidentes", símbolo de um tipo de oposição política marcada pela virulência. A lembrança provocou reações contraditórias, devido ao temor dos estragos que a radicalização do lacerdismo poderia infringir às instituições do país.
     Carlos Frederico Werneck de Lacerda nasceu em 1914, no Rio de Janeiro. Se, por um lado, era neto de Sebastião Lacerda, prestigiado representante da oligarquia fluminense, por outro era filho de Maurício de Lacerda, político defensor dos direitos dos operários, e sobrinho de Fernando e Paulo Lacerda, líderes do Partido Comunista Brasileiro. Seu nome era uma homenagem a Karl Marx e Friedrich Engels. Em 1934, abandonou o curso de direito para se dedicar à militância na Aliança Nacional Libertadora (ANL), organização que reunia a oposição de esquerda ao governo Vargas. A violenta repressão ao movimento comunista de novembro de 1935 o levou à clandestinidade até 1938, quando foi trabalhar na revista O Observador Econômico e Financeiro. Um artigo seu, publicado em janeiro de 1939, foi considerado prejudicial ao PCB e provocou sua "expulsão" do partido, do qual, aliás, nunca fora membro. Banido da esquerda, associou ao antigetulismo trazido da juventude um forte anticomunismo.
     Lacerda ganhou notoriedade como jornalista ao publicar no Correio da Manhã, em 22 de fevereiro de 1945, a entrevista com o escritor e político paraibano José Américo de Almeida, em que este, rompendo o bloqueio da censura, criticava o regime ditatorial de Vargas. No mesmo jornal, lançou a coluna "Na tribuna da imprensa", destinada a cobrir os trabalhos da Assembleia Constituinte (1946). Filiado à União Democrática Nacional (UDN), foi o candidato mais votado na eleição de 1947 para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, então Distrito Federal. A experiência parlamentar durou apenas um ano, já que renunciou ao mandato por discordar da Lei Orgânica do DF, que dava aos senadores, e não aos vereadores, o poder de examinar os vetos do prefeito carioca, indicado pelo presidente da República.
     Fora da vida parlamentar, fundou, no final de 1949, seu próprio jornal, a Tribuna da Imprensa, de onde iria comandar uma campanha implacável contra Getúlio Vargas, eleito presidente em 1950. Um de seus principais alvos passou a ser o jornal Última Hora, de propriedade de Samuel Wainer, amigo dos tempos de esquerda, a quem acusava de ter obtido empréstimos favorecidos junto aos bancos oficiais para fundar um jornal governista. Foi a pedido de Wainer que o caricaturista Lan desenhou Lacerda como um corvo, símbolo de mau agouro e de morte.
     O antagonismo entre Lacerda e o governo chegou ao ápice na madrugada de 5 de agosto de 1954, quando o jornalista sofreu um atentado na entrada do edifício onde morava, na Rua Tonelero, em Copacabana. Foi ferido no pé, mas o major-aviador Rubens Vaz, que naquele dia lhe dava proteção, foi morto. Os tiros na Tonelero foram o golpe fatal no cambaleante governo de Vargas, que, à renúncia, preferiu o suicídio. Chamado de "assassino de Vargas", Lacerda teve que se esconder para escapar da fúria da multidão, que acorreu às ruas para chorar a morte do "pai dos pobres".
     No entanto, pouco mais de um mês depois do suicídio, Lacerda derrotou um Vargas. Não Getúlio, mas o filho Lutero, presumido herdeiro político. Na eleição de 3 de outubro, foi o deputado federal mais votado no Distrito Federal, com uma diferença de quase 40 mil votos sobre Lutero, o segundo colocado.
     A fama de “demolidor de presidentes” firmaria em novembro de 1955, quando assumiu a liderança civil do movimento que tentou impedir a posse dos eleitos em outubro, Juscelino Kubitschek e João Goulart, considerados herdeiros do varguismo. Como escreveu em editorial da primeira página da Tribuna, no dia 9, "esses homens não podem tomar posse; não devem tomar posse; não tomarão posse".
     A conspiração, entretanto, fracassou por conta da reação do ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, e Lacerda ficou fora do país até outubro de 1956. Para se precaver contra sua volta à cena política, Juscelino anexou uma nova cláusula aos contratos de concessão de rádio e TV, mediante a qual os concessionários seriam punidos com suspensão por trinta dias no caso de transmitir programas "insultuosos às autoridades públicas". Segundo confissões do próprio ex-presidente, a primeira pessoa em quem pensava ao acordar era Carlos Lacerda.
     Na Câmara dos Deputados, onde permaneceu de 1955 a 1960 - em 1958, foi, mais uma vez, o recordista de votos para a bancada do Distrito Federal -, Lacerda foi o tribuno implacável, dono de uma oratória que, segundo contemporâneos, "cortava os ares como rajadas de fogo". A transformação da cidade do Rio de Janeiro em estado da Guanabara, devido à transferência da capital para Brasília em abril de 1960, abriu uma nova perspectiva para a sua carreira política: ser o primeiro governante do Rio eleito pelos cariocas.        
     Logo no início da campanha, Lacerda recebeu um precioso conselho do publicitário Emil Farhat: o momento não era de demolir, e sim de construir. Ganharia a eleição o candidato que se mostrasse mais capaz de conciliar a construção da nova Guanabara com a manutenção de um lugar privilegiado para o Rio de Janeiro na federação. Em 1960, o eleitorado foi às urnas para eleger também o sucessor de JK. Jânio Quadros venceu o general Lott com uma margem mais confortável que a de Lacerda sobre seus opositores, os deputados Sérgio Magalhães e Tenório Cavalcanti.
     Vencida a eleição, o grande desafio era: como um político nacional, radical, que desprezava a "política da conversa", poderia articular apoios para governar, fazer alianças com os grupos locais, construir as bases políticas de um novo estado? Lacerda apostou na montagem de um governo "técnico", que preservasse a administração das disputas políticas.
     A atenção dedicada ao governo estadual não reduziu a participação de Lacerda na política nacional. O discurso que fez na televisão no dia 24 de agosto de 1961, denunciando a manobra golpista de Jânio, aliado com quem rompera pouco depois da posse, provocou a renúncia do presidente no dia seguinte. A fama de "demolidor de presidentes" voltou com força, ainda mais pela movimentação frustrada para impedir a posse do vice João Goulart, o herdeiro do getulismo.
     A ida de Jango para a Presidência da República, garantida pela Campanha da Legalidade, criou um estado de permanente tensão entre o governo federal e o da Guanabara. O ano de 1963 foi decisivo nesse embate: um plebiscito restaurou os poderes presidenciais de Goulart, depois da breve experiência parlamentarista, e Lacerda se lançou candidato a presidente da República nas eleições previstas para 1965.
     Em tempos de Guerra Fria, o anticomunismo era uma importante bandeira, mas Lacerda sabia que precisava apresentar bons resultados à frente do governo da Guanabara. Educação, urbanização e habitação foram as áreas mais beneficiadas, e que até hoje dão a Lacerda um lugar privilegiado na memória carioca. Contando com recursos externos e, principalmente, com receitas oriundas do aumento de impostos, o governador investiu tanto na construção de escolas, quanto de adutoras (Guandu), viadutos e túneis (Rebouças e Santa Bárbara) e parques (Aterro do Flamengo), firmando, assim, a imagem do administrador "tocador de obras". Afinal, para enfrentar JK, o construtor da Novacap (Brasília), e seu possível rival em 1965, Lacerda teria de "reconstruir" a chamada Belacap.
     Foi polêmica a decisão de remover algumas favelas da Zona Sul e de construir conjuntos habitacionais em subúrbios da Zona Oeste, como os de Vila Aliança e Vila Kennedy, para abrigar os favelados. A ideia de que o governador não gostava de "pobres", vinda desde a época do suicídio de Vargas, foi alimentada pela chacina de mendigos ocorrida em 1962 - corpos foram encontrados no rio da Guarda -, e habilmente explorada por seus adversários. Tachado de "mata-mendigos", Lacerda passou a ser acusado de pretender exterminar também os favelados.
     A derrubada do governo Goulart pelo golpe militar de 1964, incentivado e apoiado pelo Palácio Guanabara, não ajudou a caminhada de Lacerda rumo a Brasília. Ao contrário. Decidido a exorcizar o fantasma do "demolidor", o general-presidente Castello Branco suspendeu as eleições previstas para 1965 e obteve a prorrogação de seu mandato até março de 1967. Derrotado na própria sucessão na Guanabara, quando seu candidato, Flexa Ribeiro, foi batido por larga diferença de votos por Negrão de Lima, Lacerda teve que se defrontar com as mudanças institucionais impostas pelo regime militar: fim dos partidos políticos, bipartidarismo (Arena e MDB) e eleições indiretas para presidente e governador.
     O estreitamento político em nível nacional e o surgimento de outros personagens na política carioca, como Chagas Freitas, levaram Lacerda a apostar na Frente Ampla, de oposição ao regime militar, e a procurar dois antigos adversários, Kubitschek e Goulart, cassados em 1964. A Frente Ampla fracassaria, e Lacerda também seria cassado, em 30 de dezembro de 1968, em seguida ao AI-5. Nove anos depois, a perspectiva da abertura política o animou a dar uma longa entrevista ao Jornal da Tarde (SP), entre 19 de março e 16 de abril de 1977. Como disse na ocasião, "ainda não estava na idade de sair da política". No entanto, a morte por septicemia, em 21 de maio, contrariou suas previsões.
     Casado com Letícia Lacerda e pai de três filhos, foi escolhido como modelo de governante por políticos cariocas, e sempre lembrado em momentos de crise política, Lacerda ocupa um lugar especial no imaginário político nacional e local, já que encarna, ao mesmo tempo, o tribuno incendiário, "demolidor de presidentes", e o administrador competente, o "construtor da Guanabara".

MARLY MOTTA é pesquisadora do CPDOC-FGV e autora de Saudades da Guanabara. Rio de janeiro: Editora da FGV, 2000 e de Rio, cidade-capital. Rio de janeiro: Zahar, 2004.

Fonte: Revista Nossa História - Ano II nº 19 - Maio 2005

Saiba Mais – Bibliografia
BENEVIDES, Maria Vitória. A UDN e o udenismo: as ambiguidades do liberalismo brasileiro (194S-65). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
DULLES, John W. Foster. Carlos Lacerda: a vida de um lutador. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, v. 1 (1992); v. 2 (2000).
FERREIRA, Jorge. "Crises da República: 1954, 1955 e 1961". In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano. O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2003.
LACERDA, Carlos. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

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Flores Raras
O Brasil nos anos 50/60 passa por grandes transformações, Brasília é construída, a Bossa Nova faz grande sucesso e o Rio de Janeiro se transforma rapidamente preparando-se para deixar de ser a capital federal. É quando Elisabeth Bishop (Miranda Otto), poeta americana, chega para conhecer o Rio de Janeiro e passar alguns dias com Lota de Macedo Soares (Glória Pires) mulher forte e empreendedora da sociedade carioca. Com personalidades muito a frente de seus tempos, elas rapidamente estabelecem uma relação pessoal gerando muitas conquistas e perdas, que se refletem até os dias de hoje.
Direção: Bruno Barreto 
Ano: 2013
Áudio: Português
Duração: 118 minutos

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O Estado à sombra de Vargas

Cinquenta anos depois de Getúlio “sair da vida para entrar na história", o legado do nacional-estatismo ainda está no centro do debate político e, por ironia, vê-se ameaçado por um governo oriundo do sindicalismo que ele próprio criou.
Daniel Aarão Reis Filho
     Quando Getúlio Vargas se suicidou, em agosto de 1954, o país parecia à beira do caos. Acuado por uma grave crise política, o velho líder preferiu uma bala no peito à humilhação de aceitar uma nova deposição, como a que sofrera em outubro de 1945. Entretanto, ao contrário do que imaginavam os inimigos, ao ruído do estampido não se seguiu o silêncio que cerca as derrotas. Uma imensa vaga de protesto popular varreu o país. Multidões queriam reverenciar pela vez derradeira um líder político que já se tornara uma lenda. O suicídio fora um último golpe político. A morte de Vargas salvara o varguismo.
     Já em outras oportunidades, acontecimentos também decisivos para a história da República brasileira se associaram à personalidade de Vargas: a Revolução de 30; o golpe de 1937 e a instauração do Estado Novo; a decretação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943; os movimentos queremistas ("queremos Getúlio") que, em 1945, clamaram pela permanência de Vargas no poder; a volta à Presidência "nos braços do povo", em 1950; as lutas nacionalistas, com ampla participação popular, nos anos 40 e 50, exigindo um Estado nacional forte, com presença marcante na economia, através das empresas estatais: Companhia Siderúrgica Nacional e Petrobras.
     O suicídio conseguira mobilizar todas estas referências, galvanizando o povo, sobretudo as camadas mais humildes, na defesa de um programa, uma tradição nacional-estatista.
     Mas o que era essa tradição? Um Estado forte, centralizado, com poder de intervenção em todas as esferas da sociedade, da economia à cultura, da produção do aço ao consumo de símbolos. A intromissão estatal bem-vinda: do alto para baixo, do centro para a periferia. Em contrapartida, o enfraquecimento dos poderes regionais e locais, então dominados por elites oligárquicas.
     Na cúpula do sistema, líderes carismáticos, dizendo aquilo que toca o coração dos que estão por baixo.  Defendendo e fazendo adotar e cumprir medidas e leis trabalhistas em defesa dos humildes.
     O compromisso com o crescimento econômico. Havendo desenvolvimento, com promessas de justiça, a ordem ganhava legitimidade, mesmo a autoritária, perseguindo e encarcerando as oposições, e adotando a tortura como política de Estado. O mais importante é que o Estado definisse um "projeto nacional".  Política para indústria, agricultura, comércio, finanças, juros, lucros e salários, educação, cultura, artes. Um projeto que mobilizasse o povo, intelectuais, empresários, civis e militares, religiosos, todos juntos, harmonizando-se na luta pelo bem comum, social e nacional.
     No quadro do Estado Novo (1937 a 1945), forjou-se este projeto e uma ideologia nacionalista. Os interesses particulares não poderiam impedir a convergência em torno dos valores da nação e do Estado. Só assim seria possível ao Brasil assumir o lugar merecido no mundo, fazendo valer os interesses próprios no jogo bruto das relações internacionais.
     Contra estas referências positivas, se oporiam apenas os inimigos do povo, os comunistas "vende pátria", acusados de "agentes" de Moscou, e, principalmente, os liberais. O liberalismo era acusado de emancipar os fortes do controle social, tornando-os mais poderosos e os fracos, mais débeis, fragmentando a sociedade e atomizando os indivíduos numa insana luta de todos contra todos. O liberalismo seria a doutrina do egoísmo sem peias, e, por se associar à democracia representativa, a contaminaria.
     Com efeito, as circunstâncias acabariam construindo uma rede de contradições entre os trabalhadores e os valores democráticos. Embora em todo o mundo, desde o século XIX, as lutas democráticas tenham sido travadas pelos trabalhadores, o liberalismo delas se apropriou, cunhando uma expressão, quase um slogan: "democracia liberal". No Brasil, sobretudo depois de 1945, as elites acompanhariam o giro, agrupando-se em partidos "democráticos". A União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Social-Democrático (PSD) marcariam com o selo conservador a palavra. Do ponto de vista dos trabalhadores, seria necessário aproveitar os espaços e as margens democráticas, desde que servissem para fazer avançar o "progresso social" e a "independência nacional". Estas, sim, tornar-se-iam as referências fundamentais para avaliar uma "verdadeira" democracia. "Voto não enche barriga", sintetizou Getúlio, exprimindo ceticismo e desconfiança em relação à democracia representativa.
     A morte física do líder não conseguira matar o projeto político que ele encarnara. Nos anos seguintes, para alarma dos inimigos, reviveu a tradição nacional-estatista, consolidada pela aliança entre os dois maiores partidos das esquerdas brasileiras: o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), fundado em 1945, e o velho Partido Comunista do Brasil (PCB), de 1922 rebatizado Partido Comunista Brasileiro em 1960.
     Na segunda metade dos anos 50, essa aliança questionou as carências do crescimento econômico então verificado, os "cinquenta anos em cinco" do governo Juscelino Kubitschek (1955 a 1960). A economia crescera, mas estava demasiadamente atrelada aos capitais internacionais. Tratava-se agora, argumentavam as esquerdas, de promover uma justa distribuição do bolo - da renda e do poder.
     Entretanto, o candidato nacional-estatista, o marechal Teixeira Lott, não convenceu, derrotado por Jânio Quadros, nas eleições de 1960. A renúncia deste, em agosto de 1961, jogou o país numa crise de graves proporções. Os ministros militares tentaram vetar a posse do vice-presidente João Goulart. Uma mobilização civil e militar abortou o golpe e garantiu a posse de Goulart, embora com poderes diminuídos, no quadro de um regime parlamentarista aprovado a toque de caixa.
     João Goulart, o Jango, era afilhado político e herdeiro reconhecido de Vargas. As forças conservadoras viviam um pesadelo: em apenas sete anos, o velho líder ressuscitava.
     Os movimentos populares passaram à ofensiva: camponeses, trabalhadores urbanos, sobretudo os do setor público e das estatais, estudantes, graduados das Forças Armadas. Foi tomando corpo uma proposta de reformar o Brasil: reforma agrária, urbana, universitária, bancária, do estatuto do capital internacional. Um novo projeto nacional, a ser alavancado por um Estado forte e intervencionista, apoiado pelo povo organizado.
     Para as forças conservadoras, uma revolução social. A Igreja temia o comunismo, os oficiais das Forças Armadas, a indisciplina, as classes empresariais, o sindicalismo agressivo. Deram-se as mãos e formaram uma poderosa aliança autoritária e conservadora.
     Viviam-se, então, tempos quentes da guerra fria. Em todo o mundo, dava-se o embate entre o capitalismo e o comunismo. A Revolução Cubana triunfara em 1959 e, sob pressão do governo norte-americano, transmutara-se em revolução socialista em 1961. Na África e na Ásia, multiplicavam-se as guerras de libertação nacional.
     O Brasil estava integrado neste mundo de conflitos e polarizações. Uma crescente radicalização parecia impor escolhas à sociedade. Reforma ou contrarreforma. Revolução ou contrarrevolução. Aprofundar as heranças do varguismo ou negá-las. As esquerdas contra as direitas.
     No embate, decidido em março de 1964, triunfaram as forças autoritárias e conservadoras. As direitas. A ditadura militar.
     Desabaram as referências nacional-estatistas, derrotadas e desmoralizadas, quase sem luta. A segunda morte de Getúlio Vargas. Seria ele agora definitivamente enterrado?
     A ditadura fora produto da ação de uma frente heterogênea, social e política. Reuniram-se a Cruz (a Igreja), a Espada (as Forças Armadas) e o Dinheiro (os empresários), e mais o cimento do Medo das mudanças. Elites, classes médias e até mesmo setores populares queriam o restabelecimento da Ordem e da Segurança.
     Entretanto, um grupo organizado no Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), reunindo políticos, oficiais das Forças Armadas e empresários, cedo passou a desempenhar um papel-chave, conseguindo fazer eleger o primeiro ditador-presidente: o general Castelo Branco. Haviam formulado para o Brasil um projeto de desenvolvimento modernizante, autoritário e conservador. Previam o atrelamento do Brasil aos Estados Unidos no contexto da guerra fria, o saneamento das finanças, uma economia competitiva, aberta aos capitais internacionais, um Estado liberal, antidemocrático e repressivo, até que os objetivos de "pôr ordem na casa" fossem alcançados.
     Na prática, contudo, o governo ditatorial compreendeu que forças e instituições vinculadas à tradição nacional-estatista - Estado centralizado, sindicalismo corporativo, lideranças herdeiras do getulismo, mas também conservadoras - poderiam ser aproveitadas na nova ordem.
     Como quase sempre acontece na História, as utopias bem concatenadas no papel esbarraram em realidades complexas. Eliminaram-se os principais herdeiros da tradição nacional-estatista, mas foi necessário assumir a herança, pelo menos em parte, negociar com ela, em certa medida, incorporá-la.
     E, assim, depois de um primeiro momento de fúria reformadora, retomaram-se aspectos antes condenados. Um Estado forte, centralizado, desenvolvimentista, apoiado nas velhas estruturas corporativas criadas e construídas no "velho" Estado Novo. Uma traição? Assim pensaram alguns velhos liberais elitistas que ainda gesticularam em vão contra aquela reviravolta. À esquerda, também seriam derrotadas organizações revolucionárias, que se levantaram de armas nas mãos. Sem encontrar respaldo na sociedade, seriam eliminadas pela violência e pela tortura entre 1969-1971 (guerrilhas urbanas) e 1972-1974 (guerrilha do Araguaia).
     A ditadura consolidou-se como regime militar, embora fortemente apoiada na sociedade e nas classes empresariais. Ao contrário das expectativas catastrofistas, que apostavam no impasse do capitalismo, houve, entre 1967 e 1973, um novo salto para a frente, o "milagre brasileiro", fazendo com que os anos de chumbo fossem também de ouro, para milhões que viram a vida mudar para melhor.
     A recuperação do nacional-estatismo ganharia alento no penúltimo governo militar, encabeçado por Ernesto Geisel. Plano desenvolvimentista, empresas estatais, incentivos à ciência, à tecnologia, aos cursos de pós-graduação, à cultura e às artes. A política externa "pragmática e responsável" tentando afirmar um perfil próprio, incluindo-se aí a ambição da bomba atômica. O nacional-estatismo redivivo, pelo alto e sem o povo, sob direção dos militares, e adotando, a exemplo do Estado Novo, a tortura como política de Estado.
     Getúlio já morrera duas vezes, em 1954 e 1964, mas a herança, teimosa, sobrevivia.
     Numa "distensão lenta, segura e gradual", a ditadura esvaneceu-se. Pressionada por múltiplas crises, perdida a legitimidade dos êxitos econômicos, os chefes militares mais lúcidos preferiram a retirada em boa ordem.
     Na democracia reconstruída, as forças de esquerda voltaram a se organizar em liberdade: o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Socialista Brasileiro (PSB), os partidos comunistas, o brasileiro (PCB) e o do Brasil (PC do B). Também apareceram novas siglas: o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido dos Trabalhadores (PT).
     Na análise dos programas, uma certeza: o nacional-estatismo não morrera como ideário das esquerdas.  Em alguns, os traços eram mais fortes, como no PDT e no PC do B. Em outros, mais fluidos, como no PMDB, mais preocupado com cargos administrativos do que com encargos ideológicos. Numa situação intermediária, o PT, mas também o PSB, onde apareciam propostas democráticas, e as noções de uma cidadania ampliada, não mais concebidas de uma forma instrumental, mas como princípios. Ao mesmo tempo, surgiam declarações, como a do presidente e líder do PT, Luiz Inácio da Silva, o Lula, de que a CLT estava para os trabalhadores como o AI-5 estivera para a sociedade brasileira. Sendo criatura da estrutura corporativa celetista, aquilo pareceu a muitos uma ingratidão. A maioria, entretanto, pensou que se tratava apenas de uma bizarria. O fato é que a frase foi esquecida.
     As esquerdas estavam mudando, mas o mundo também, numa vertiginosa velocidade. E em sentido contrário às utopias nacional-estatistas.
     Uma nova revolução, científico-tecnológica, desde os anos 70, em âmbito mundial, passou a subverter situações estabelecidas, modelos de comportamento, crenças e valores. O processo da globalização, a relativização das fronteiras e dos estados nacionais, a revolução nas comunicações, além de outros fatores, condicionaram o declínio do chamado estado do bem-estar social, cujas referências eram importantes para as propostas nacional-estatistas. O liberalismo, bastante enfraquecido no pós-Segunda Guerra Mundial, reapareceu com força insuspeitada, numa grande ofensiva, capitaneada pelos governos da Inglaterra e dos Estados Unidos.
     Por outro lado, o grande adversário histórico do liberalismo, o socialismo soviético, caía em pedaços e se desagregava. Era uma árvore gigantesca. Na queda, tendeu a arrastar para a vala do desprestígio todas as propostas socialistas ou socializantes, mesmo as que não se identificavam com a sua história e o seu modelo.
     No Brasil, as chamadas tendências liberais também ganharam alento. Mas ainda teriam que lidar com a força das propostas nacional-estatistas, presentes tanto no governo Sarney como na Constituição de 1988.
     Entretanto, nos anos 90, o nacional-estatismo passou claramente à defensiva. A sociedade conhecia avanços democráticos substantivos, e progrediam igualmente os valores liberais, ambos colocando em dúvida os superpoderes do Estado. Depois de Fernando Collor, afastado menos pelas inclinações políticas do que em virtude de escândalos de corrupção, Itamar Franco representou um interregno, mas por pouco tempo. Seguiram-se os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, que, embora mantendo certas preocupações sociais, realizou, em larga escala, o programa de Collor no que diz respeito à profunda redefinição da ação do Estado em suas relações com a sociedade, a economia, a cultura e a política.
     Apesar de lutas sociais importantes, as privatizações se realizaram, abrindo-se o país aos capitais internacionais. A herança getulista, agora, fora ferida de morte. Mas ainda sobrevivia em setores da economia e em muitas instituições.
     A vitória eleitoral de Lula, em 2002, gerou expectativas distintas, correspondentes à ambiguidade de seus discursos. O que significaria? Uma retomada das aspirações e valores do nacional-estatismo? Ou um caminho inovador, capaz de aprofundar conquistas democráticas sem hipertrofiar o Estado? O PT identificava-se com ambas as possibilidades, defendendo simultaneamente os valores democráticos e um projeto nacional, apoiado em um Estado forte e intervencionista e com uma crítica radical às profundas desigualdades sociais que continuavam marcando a sociedade brasileira.
     Entretanto, ao longo dos primeiros 16 meses, o governo Lula não tem feito senão continuar e aprofundar as reformas liberal-sociais já empreendidas por Fernando Henrique Cardoso.
     As esquerdas nacional-estatistas, um tanto aturdidas, voltam agora a se mobilizar. Acusam Lula de tibieza e traição. O governo responde que atende apenas a imposições de circunstâncias e que permanece vinculado a seus compromissos com os trabalhadores do país. Quanto às propostas de radicalizar a democracia, ainda permanecem vagas, não alcançando a consistência de um programa político, embora se registrem conquistas e avanços inéditos na história republicana do país.
     Nestas circunstâncias, o nacional-estatismo parece cambalear. Se couber a Lula o golpe mortal na herança nacional-estatista, será uma cruel ironia da História. Uma das mais autênticas criaturas do sindicalismo corporativista varguista matando as derradeiras heranças da era de Vargas.
     Será a terceira morte, talvez definitiva, do velho líder. Mas o futuro próximo ainda está em aberto. Em disputa com os valores liberais e as propostas democráticas, as tradições nacional-estatistas, enraizadas no passado, e apesar de todas as vicissitudes, definitivamente ainda não são um passado que passou.

Daniel Aarão Reis Filho é professor titular de História Contemporânea na Universidade Federal
Fluminense.

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 7 - Maio de 2004

Saiba Mais – Bibliografia
AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
-------- Trabalhadores do Brasil. O imaginário popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
GOMES, Ângela Maria Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
RODRIGUES, Leôncio Martins. Partidos e sindicatos. São Paulo: Ática, 1990.

Saiba Mais – Link:

Saiba Mais – Documentário
Líder civil da Revolução de 1930, comandou a modernização do Estado brasileiro com políticas nacional-desenvolvimentistas. No seu legado sobressaem as bases da industrialização, a legislação trabalhista e a participação do Brasil na II Guerra.
Nasceu em São Borja (RS), em 19 de abril de 1882, e morreu em 24 de agosto de 1954, no Rio de Janeiro (RJ).