“Não é de
hoje que estudos, auditorias e investigações denunciam que a dívida pública, ao
invés de aportar recursos ao Estado, vem desviando recursos (que deveriam se
destinar a áreas sociais) para o pagamento de juros e amortizações de uma
dívida cuja contrapartida não se conhece, pois não existe a devida
transparência.”
A crise da dívida dos Estados Unidos da
América do Norte, maior economia do planeta, escancara a usurpação do
instrumento de endividamento público e a sua utilização em benefício do setor
financeiro bancário.
Sabemos que o endividamento público é um
importante instrumento de financiamento dos Estados, por isso todas as nações
são autorizadas a endividar, dentro de certos limites e condições. As dívidas
contraídas deveriam aportar recursos aos cofres públicos, complementando os
recursos arrecadados por meio de tributos, de forma que o Estado possa cumprir
seu papel e garantir vida digna ao seu povo.
Não é de hoje que estudos, auditorias e
investigações denunciam que a dívida pública, ao invés de aportar recursos ao
Estado, vem desviando recursos (que deveriam se destinar a áreas sociais) para
o pagamento de juros e amortizações de uma dívida cuja contrapartida não se
conhece, pois não existe a devida transparência.
Assim, o problema central é que o
instrumento do endividamento público tem sido utilizado como um sistema de
desvio de recursos públicos que, para operar, conta com arcabouço de
privilégios e possui diversas ramificações que constituem o que batizamos de
“Sistema da Dívida”.
Nos EUA, esse sistema operou,
recentemente, para salvar grandes bancos em risco de quebra. Até a semana
passada, não se sabia o tamanho dessa ajuda, pois as informações eram vagas e
conflitantes, até que no último dia 21 de julho o Senador Bernie Sander
publicou o seguinte:
Auditoria inédita realizada pelo
Departamento de Contabilidade Governamental norte-americano revelou que US$ 16
trilhões foram secretamente repassados pelo Banco Central dos Estados Unidos –
FED, Federal Reserve Bank - para bancos e corporações norte-americanas, bem
como para alguns bancos estrangeiros de diversos países.
Os registros de tais repasses haviam sido
anotados pelo FED sob a modalidade de empréstimos com juros próximos de zero,
realizados no período de dezembro/2007 e junho/2010, que abrange tanto a
administração Bush (republicanos) como Obama (democratas).
Assim, volumosa dívida pública foi
contabilizada para garantir ajuda aos maiores bancos do país e do exterior.
Lista de instituições que receberam a maior parte dos recursos do Federal
Reserve está registrada na página 131 do Relatório de Auditoria Governamental,
resumida a seguir:
Citigroup: $2.5 trillion ($2,500,000,000,000)
Morgan Stanley: $2.04 trillion ($2,040,000,000,000)
Merrill Lynch: $1.949 trillion ($1,949,000,000,000)
Bank of America: $1.344 trillion ($1,344,000,000,000)
Barclays PLC (United Kingdom): $868 billion
($868,000,000,000)
Bear Sterns: $853 billion ($853,000,000,000)
Goldman Sachs: $814 billion ($814,000,000,000)
Royal Bank of Scotland (UK): $541 billion
($541,000,000,000)
JP Morgan Chase: $391 billion ($391,000,000,000)
Deutsche Bank (Germany): $354 billion
($354,000,000,000)
UBS (Switzerland): $287 billion ($287,000,000,000)
Credit Suisse (Switzerland): $262 billion
($262,000,000,000)
Lehman Brothers: $183 billion ($183,000,000,000)
Bank of Scotland (United Kingdom): $181 billion
($181,000,000,000)
BNP Paribas
(France): $175 billion ($175,000,000,000)
Estas cifras estratosféricas evidenciam a
utilização do instrumento do endividamento público para fins totalmente
diversos do que se poderia considerar justificável, pois enquanto bancos
receberam ajuda de US$ 16 trilhões - soma superior ao PIB do país - o peso
dessa “dívida pública” tem recaído sobre o povo, provocando desemprego recorde,
restrições a serviços de saúde e demais benefícios do seguro social,
transformado radicalmente a realidade social naquele país, e para pior.
As revelações dessa auditoria
governamental são tão alarmantes que levam à necessidade de aprofundamento das
investigações, tendo em vista que o volume de recursos emprestados aos bancos,
de US$ 16 trilhões, supera o atual saldo da dívida pública estadunidense, de
US$ 14,5 trilhões.
Além desses repasses feitos pelo FED, o
Tesouro também destinou grandes somas de recursos aos bancos, tanto sob a forma
de repasses diretos como por meio de programas de salvamento bancário que
consumiram grande parte da arrecadação tributária do país.
A crise que atinge a maior economia do
planeta também provoca consequências para o resto do mundo, mas antes de entrar
nessa abordagem, cabe questionar porque razão o FED teria repassado tamanho
volume de recursos aos maiores bancos do país e do mundo?
Possivelmente, a cumplicidade do governo
norte-americano de não coibir a emissão descontrolada de produtos financeiros
que se revelaram verdadeiro “lixo”, seguida de tentativas de empurrar esse lixo
para debaixo do tapete com a criação dos chamados “bad banks” - instituições
que se prestariam a acatar volumes expressivos desses papéis podres, realizando
uma “faxina” para aliviar o sistema financeiro americano - e talvez até
garantias governamentais a certas operações, pesaram em favor da decisão
política de salvar os bancos mediante a emissão de trilhões de títulos da
dívida, transformando a crise financeira em crise da dívida.
Adicionalmente, a desregulamentação do
mercado financeiro internacional contou com a cumplicidade das principais
nações, já que em reunião do G-20 realizada em abril/2009 a proposta de
regulamentação do setor não passou. No ano seguinte, o G-20 apenas discutiu a
necessidade de regulação mais rigorosa para grandes instituições financeiras,
consideradas “grandes demais para quebrar”, admitindo que tal regulação seria
uma medida para evitar que novas eventuais falências não tivessem que ser
resolvidas pelos governos, aprofundando a dívida pública e colocando economias
inteiras em risco.
Portanto, a origem da crise deflagrada
desde 2008 nos EUA reside no setor financeiro bancário e sua excessiva
“criatividade” na produção de séries e mais séries de derivativos sem lastro e
outros produtos financeiros sem respaldo e sem valor algum - chamados de
“ativos tóxicos” pela grande mídia.
Derivativos
são meras apostas baseadas em outro ativo real. Por exemplo, se determinado
conjunto de ações de determinada empresa vale R$ 1.000, faço uma aposta de que
aquele conjunto pode valer mais, por exemplo R$ 1.500, e emito um derivativo no
valor de R$ 500. Enquanto existem diversas restrições legais e normativas para
a colocação de ativos reais no mercado financeiro, a emissão de derivativos não
é controlada, o que deu margem para que essas emissões se tornassem um negócio
altamente rentável, pois o custo de produção de um derivativo era praticamente
nulo.
Como os derivativos são meras apostas
especulativas que podem vir a se concretizar ou não, esses papéis deram margem
ao surgimento de outros papéis que funcionam como “seguros” para garantir o
investidor contra o risco inerente àquelas apostas, também vendidos em larga
escala pelos bancos.
Esses papéis inundaram o mercado financeiro
mundial e foram repassados a fundos de investimento, fundos de pensão, fundos
soberanos e toda espécie de investimentos mundo afora.
Na medida em que as apostas especulativas
foram se frustrando, o tremendo volume de seguros começou a ser acionado,
levando os bancos a sérios problemas financeiros. Cabe ressaltar que quanto
maior e mais famoso o banco, maior a facilidade de colocação de seus
derivativos no mercado, e mais amplo o acesso a mercados secundários em todas
as partes do mundo, inclusive paraísos fiscais, o que explica a destinação de
volumes de recursos mais expressivos para os maiores bancos, conforme lista
divulgada pela auditoria governamental.
Apesar da gravidade dessa questão
relacionada à origem da crise e ao salvamento dos bancos, as discussões
predominantes no parlamento norte-americano nos últimos dias limitaram-se à
necessidade de elevar o limite legal para o endividamento - atualmente fixado
em US$ 14,3 trilhões - bem como ao corte de gastos sociais para que sobrem mais
recursos para o pagamento de compromissos financeiros da dívida.
Essa crise propiciou acalorados debates e
exploração de desgastes políticos inerentes ao período pré-eleitoral
estadunidense que até o Secretário de Tesouro Timothy Geithner chamou de
“espetáculo”, manifestando sua preocupação de dano à confiança nos Estados
Unidos e à cotação dos títulos pelas agências de risco.
Parlamentares debateram também a iminência
de uma moratória, o risco de colapso do dólar e de inflação galopante,
engenharia financeira, dentre outros problemas estruturais da economia dos EUA,
mas o foco da origem da crise – que reside na atuação do setor bancário que
inundou o mercado financeiro de papéis sem lastro- não foi devidamente atacado,
muito possivelmente em reconhecimento à generosidade do setor financeiro no
financiamento de campanhas eleitorais.
Democratas e republicanos acabaram
chegando a um acordo para aprovar, por 74 contra 26 votos, um pacote de
“legislação de emergência” que de imediato eleva o limite legal de
endividamento em mais US$ 400 bilhões, seguido de mais uma elevação de US$ 500
bilhões, o que permitirá a emissão de mais 900 bilhões de dólares em títulos
que cobrirão dívidas anteriores, reduzindo o déficit. Os cortes de gastos
sociais serão objeto de cortes drásticos de US$ 2 trilhões em uma década e
atingirão principalmente gastos com aposentadorias, assistência médica e
subsídios agrícolas.
A solução encontrada é paliativa e o
problema real está longe de ser resolvido, pois não está sendo enfrentado: a
economia mundial padece da contaminação de imensa quantidade de papéis sem
lastro; verdadeiro “lixo” estimado em cerca de 10 vezes o PIB mundial que as
nações mais ricas do mundo, principalmente os Estados Unidos, decidiram
reciclar mediante a sua troca por dívida pública.
Países da Europa também decidiram salvar
os bancos que se encontravam em risco de quebra por terem emitido papéis
financeiros sem respaldo, transformando a crise financeira em crise da dívida
naquele continente.
Na realidade, o salvamento do sistema
bancário e o acobertamento das operações que de fato provocaram a crise
financeira nos EUA e Europa estão relacionados à evidente tentativa de
transferir os papéis podres para o resto do mundo. O Brasil não está imune de
absorver esse lixo, mas as consequências da crise da dívida norte-americana vão
muito além desse risco.
Devido à aceitação mundial do dólar em
transações comerciais e financeiras, diversos países aplicam suas reservas
internacionais em títulos da dívida dos EUA. O Brasil é um destes países, tendo
acumulado mais de 200 bilhões de dólares em títulos do Tesouro estadunidense
nos últimos 6 anos, embora tal aplicação não renda quase nada ao país. O mais
grave é que a compra dessas reservas internacionais (que não rendem quase nada)
foi feita mediante a emissão de títulos da dívida interna brasileira que pagam
os juros mais elevados do mundo. Essa diferença de rendimentos agravada pela
forte desvalorização do dólar frente ao real resultou em mega prejuízo ao Banco
Central do Brasil, da ordem de R$ 147 bilhões em 2009 e R$ 50 bilhões em 2010, que
é arcado pelo Tesouro Nacional, isto é, por toda a sociedade. O endividamento
brasileiro já atinge quase R$ 3 trilhões e em 2010 consumiu 44,93% dos recursos
do orçamento da União, sacrificando os investimentos em saúde, educação e todas
as demais áreas. Desta forma, o povo brasileiro também já está pagando, há
algum tempo, a conta da crise da dívida norte-americana.
Outros impactos advirão das medidas
aprovadas nesse 2 de agosto de 2011: a demanda norte-americana por produtos de
outros países deverá ser fortemente abalada pelas medidas recessivas que estão
sendo adotadas para reduzir gastos e fazer sobrar mais recursos para o
pagamento da dívida. Além de afetar, em cascata, o comércio de diversos países,
tais medidas recessivas provocarão o agravamento da própria crise, inibindo
investimentos reais, produtividade e geração de empregos. Por isso outro
impacto deverá ser o aumento da pressão para a colocação de produtos
norte-americanos em todos os mercados, afetando indústrias locais.
Segundo Michel Chossudovsky, para
financiar o salvamento dos bancos o governo dos EUA recorreu a empréstimos
junto a esses mesmos bancos. Assim, como num passe de mágica, os bancos falidos
foram salvos e ainda transformados em credores do Estado! Por isso, o autor
defende a ANULAÇÃO destas dívidas, o retorno dos recursos ao Tesouro dos EUA, e
o confisco dos bens dos especuladores, proposta bem distinta da recentemente
aprovada no parlamento norte-americano.
A atual crise expôs a dominância do setor
financeiro e impõe a necessidade de revisão desse modelo de desenvolvimento e
de acumulação capitalista que privilegia o setor bancário. Especialmente nos
Estados Unidos, o privilégio de impressão de moeda e emissão de títulos da
dívida para financiar investimentos, mas também especulação e guerras, se
esgotou.
Notas da autora:
- PIB = Produto Interno Bruto; soma de todas as riquezas produzidas no país no
período de 1 ano. O PIB dos EUA é o maior do mundo e equivale atualmente a US$
14,12 trilhões
- A emissão
descontrolada desses papéis “tóxicos” foi possibilitada porque os controles
existentes, determinados pela SEC - Securities and Exchange Commission, Estados
Unidos da América - órgão criado logo após a crise de 1929 e que desde então
exercia o papel de controlar a qualidade e autenticidade dos papéis negociados
no mercado financeiro – foram desrespeitados por diversas grandes instituições
financeiras (O documentário Inside Job, disponível na internet, ilustra bem
esse mecanismo)
- Em inglês: Toxic assets, termo empregado para papéis completamente podres,
que não possuem valor algum. Outra denominação é dada para papéis também
problemáticos, mas que ainda teriam algum valor; são os chamados Iliquid assets
Maria Lucia
Fattorelli é coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida no Brasil desde 2001,
foi membro da Comissão para a Auditoria Integral Equatoriana (CAIC) entre 2007
e 2008 e Assessora da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Dívida Pública
na Câmara dos Deputados do Brasil entre 2009 e 2010.
Saiba
Mais – Documentário
Trabalho
Interno (Inside Job)
Pouco mais
de dois anos após o estouro da crise econômica mundial, em setembro de 2008, o
maior colapso financeiro desde a crise de 1929, foi lançado o documentário
"Trabalho Interno". O filme é um dos indicados ao Oscar 2011.
Dirigido por Charles
Ferguson e retrata os lados obscuros de Wall Street. Narrado pelo ator Matt
Damon, revela verdades incômodas da crise que teve início com a quebra do banco
americano Lehman Brothers.
Com base em uma extensa
pesquisa e séries de entrevistas com políticos, economistas, jornalistas e
personalidades do setor financeiro – como o mega investidor George Soros –, o
filme revela as corrosivas relações e o jogo de interesses entre governantes,
agentes reguladores do sistema financeiro e o mundo acadêmico.
Os depoimentos – em certos
momentos concedidos de forma exaltada – e as entrevistas com alguns dos
envolvidos no episódio – nitidamente contrariados diante das questões colocadas
pelo diretor Charles Ferguson –, revelam ainda o esquema de mentiras e condutas
criminosas, inflado pelos altos salários e pelos bônus bilionários oferecidos
aos executivos do mercado financeiro.
Ferguson não poupa
republicanos nem democratas: culpa ex-presidentes dos dois partidos, começando
por Ronald Reagan, que assumiu o comando dos Estados Unidos em 1981 – ou seja,
27 anos antes da eclosão da crise –, passando pelos governos Bush (pai) e Bush
(Jr.), Bill Clinton até Barack Obama.
Segundo o documentário, no
governo Reagan teve início o processo de desregulação do setor financeiro, com
a suspensão de diversas barreiras de segurança que poderiam ter evitado as
operações de risco e as fraudes financeiras nas demonstrações contábeis dos
bancos.
Esse descaso em nome de
uma suposta melhoria nas condições de competição do sistema financeiro
americano criou situações assombrosas, como a existência de um único
funcionário responsável na Securities and Exchange Commission (SEC) – o órgão
similar à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no Brasil - por toda a gestão e
fiscalização de exposição ao risco do mercado financeiro. Ferguson revela
também as medidas desastrosas do Federal Reserve, o Banco Central dos EUA,
potencializadas por uma condução governamental perigosa para a sustentabilidade
econômica, num caldeirão com boas doses de corrupção, vista grossa e
irresponsabilidade.
Direção: Charles Ferguson
Áudio: Inglês/Legendado
Duração: 108 minutos
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