Tempos de guerra e de
crise costumam fortalecer movimentos místicos. No horizonte despontam as
terríveis profecias do Juízo Final. Dois mil anos depois de escrito, o Livro do Apocalipse mantém-se
renovado em inúmeros corações e mentes. Como explicar tal mistério?
Foi com essa inquietação
que a historiadora Elaine Pagels, uma das mais respeitadas conhecedoras de
escritos sagrados, decidiu pesquisar o também chamado Livro das Revelações.
Em seu livro recém-lançado (Revelations: Visions, Prophecy, and Politics in
the Book of Revelation, ainda sem tradução), ela explica que não há apenas
um, mas vários textos do Apocalipse, que seu autor provavelmente não era
apóstolo de Cristo e que as imagens demoníacas ali descritas tinham inspirações
bem terrenas.
Nesta entrevista, a
professora da Universidade de Princeton (Estados Unidos) dessacraliza os textos
religiosos, compreendidos em seu contexto histórico e político.
ELAINE
PAGELS Começou em 2002, quando o presidente dos Estados
Unidos [George W. Bush] defendeu a invasão do Iraque utilizando a expressão
“Eixo do Mal”. Foi assim que promoveu a guerra: não por uma decisão
estratégica, mas por uma decisão moral. Quase uma missão religiosa. Eu pensei:
por que ainda tem gente lendo esse velho livro, e lendo desse jeito?
RH De que outra forma ele pode
ser lido?
EP O Apocalipse é sobre sonhos e
visões. Sugere que, quando o mundo está complicado e confuso, as pessoas podem
sentir que tudo está fora de controle, mas tudo vai ficar bem: a justiça de
Deus vai prevalecer e haverá um novo mundo. É um livro sobre esperança, para
pessoas que estão ansiosas diante de uma circunstância caótica.
RH Isso dizia respeito à época
em que foi escrito?
EP Certamente. O autor vivia no período subsequente
ao da terrível guerra dos judeus contra Roma no século I. Ele queria persuadir
seus companheiros judeus, que acreditavam em Jesus, de que a opressão romana
estava destruindo o povo inteiro. E persuadi-los de que nem tudo estava
perdido; a justiça divina seria feita. As imagens são muito específicas daquele
tempo. O Império Romano como a Besta, cujo número representa o nome de Nero
[37-68], que acreditavam ser o pior imperador que se pode ter. Para os leitores
da época, isso era de um simbolismo transparente. Todo mundo sabia que a Besta
e a Meretriz representavam o Império Romano.
RH O homem que escreveu o
Apocalipse não é o mesmo que escreveu O Evangelho segundo João?
EP A maioria dos estudiosos acha que não é a mesma
pessoa. O autor do Apocalipse retrata os doze apóstolos como
se eles já tivessem morrido. Eles também têm seus nomes nos doze portões da
cidade, e o autor nunca disse que era um deles.
RH Por que o livro só entrou
no Novo Testamento dois séculos depois de escrito?
EP Isso me fascinou: mesmo depois que o imperador
Constantino [272-337] se tornou cristão, o bispo Atanásio de Alexandria [ca.
295-373] não usou o Apocalipse durante 25 anos. Só depois,
quando o filho de Constantino [imperador em sucessão ao pai] opôs-se a ele e o
exilou, é que decidiu incluir o livro no Novo Testamento. Estava tão zangado e
furioso que aquela foi sua forma de contra-atacar: “Como pode esse imperador
não ser o Anticristo? Ele é obviamente a Besta”.
RH Houve outras leituras do Apocalipse na
história do cristianismo?
EP A Bíblia original de Martinho Lutero [1483-1546],
quando ele dividiu o mundo cristão, tinha imagens feitas por um amigo seu,
chamado Lucas Cranach. E as ilustrações do Apocalipse retratam
a Meretriz da Babilônia como sendo o papa de Roma. Ao mesmo tempo, o primeiro
biógrafo católico de Lutero retratou-o como a Besta de sete cabeças. Essas
imagens de sonho e pesadelo são tão abertas que qualquer um pode usá-las, a
qualquer tempo. Para alguns católicos do século XVI, a Grande Meretriz era a
rainha Elizabeth I [1553-1603].
RH As versões do livro encontradas
no século XX são diferentes?
EP Sim, elas falam sobre achar acesso direto a
Deus, e não sobre o fim do mundo. Provavelmente foram feitas para cristãos em
um nível avançado, como monges e pessoas engajadas na prática espiritual. Acho
que foram suprimidas pela Igreja mais tarde, porque sugeriam que os homens
podiam achar Deus por conta própria.
RH Imagens apocalípticas
costumam ganhar força em tempos de guerra?
EP São muito úteis. Na Segunda Guerra Mundial
[1939-1945], alguns diziam que Hitler era o Anticristo, enquanto os nazistas
diziam que ele estava trazendo o reino de Cristo. O Apocalipse foi
usado na Primeira Guerra Mundial [1914-1918], na Guerra Civil Americana
[1861-1865], sempre por pessoas dos dois lados. Ele permite interpretar
qualquer conflito como um conflito entre o Bem e o Mal. E o único modo como
podemos lidar com as pessoas do Mal é conquistando-as ou destruindo-as.
RH Até ateus e agnósticos se
identificam com essas ideias?
EP Ah, sim. Uma vez, ouvindo o biólogo Edmund
Wilson, da Universidade de Harvard, falar sobre mudanças climáticas e a
destruição do sistema ecológico, eu brinquei que aquilo soava como o Livro do Apocalipse.
Ele disse: “Ah, sim, eu sou um batista”. Ao falar sobre ecologia, era como se
fosse um sermão batista.
RH Como o Apocalipse alimenta
o fanatismo atual, em seitas cristãs e vertentes do movimento islâmico?
EP Nos Estados Unidos, uma grande quantidade de
cristãos acha que o fim do mundo está chegando. Isso é preocupante. No Corão há
imagens da batalha final, do julgamento final. Alguns muçulmanos leem isso como
uma batalha entre eles e os não muçulmanos. Outros interpretam como uma guerra
do espírito, não uma guerra de verdade.
RH O Apocalipse já
foi usado em favor da ética?
EP Sim, como quando Martin Luther King Jr.
[1929-1968] luta contra a injustiça racial. Ele e vários cristãos
afro-americanos usaram a linguagem do Apocalipse. Falam sobre a
promessa de um mundo que vai reverter as injustiças. As pessoas hoje oprimidas
serão felizes.
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