“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 22 de outubro de 2017

Especiarias da China

Trazidos para cultivar chá no Rio de Janeiro, os primeiros imigrantes chineses a desembarcar no Brasil sofreram com o preconceito e as más condições de vida.
Geraldo Moreira Prado e Rael Fiszon Eugênio dos Santos
      Se, a despeito da globalização, os modos e cultura chineses ainda causam estranheza entre nós, imagine-se então no começo do século XIX! As fontes históricas disponíveis sobre o Rio de Janeiro, naquela época, mostram que a população da cidade era composta de comerciantes, trabalhadores livres, nobres luso-brasileiros, viajantes europeus e, em sua maioria, de escravos africanos. Mas, como destacam alguns historiadores, jornalistas e naturalistas que visitaram o Brasil no século XIX, havia também chineses, trazidos ao Brasil para cultivarem o chá na Real Fazenda de Santa Cruz, situada na Zona Oeste da cidade, e no Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
      A este grupo de chineses se devem as primeiras experiências brasileiras de cultivo da planta conhecida pelo nome científico de Camellia sinensis, nativa da China. Alguns poucos livros, como o clássico D. João VI no Brasil, do historiador pernambucano Oliveira Lima, destacam a presença chinesa no Brasil. O mais comum entre os autores, no entanto, é apontarem os suíços que se estabeleceram na região serrana de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, em 1818, como a primeira força de trabalho estrangeira, e livre, a atuar no país cuja economia era então sustentada pelo braço escravo. Ao lado dos suíços, os colonos chineses também tiveram papel relevante, protagonizando um projeto que seria a menina-dos-olhos de d. João VI, mas cujos resultados acabaram infelizmente ficando bem aquém das expectativas.
      O hábito de tomar chá chinês (dito inglês) surge por aqui a partir da chegada da família real portuguesa, em 1808, que introduz na acanhada colônia hábitos europeus mais sofisticados. A ideia de d. João, príncipe regente e futuro rei de Portugal, era cultivar o produto por aqui mesmo, dispensando as importações e transformando-o em fonte de riqueza. O número de trabalhadores chineses que ficaram no Brasil no período com esse propósito, bem como suas origens, não são exatos. Benedicto Freitas se refere a uma centena, mais ou menos, e seriam eles provenientes de Macau e Cantão. Sabe-se que primeiramente desembarcaram 45 colonos, em 1815 - e, segundo Fania Fridman, provenientes de Macau. Mas havia também chineses de outras regiões. Johann Luccock, viajante que chegou ao Brasil em meados de 1808, referindo-se ao chefe dos lavradores residentes na Fazenda Santa Cruz, diz ser ele originário de Nanquim.
      Pelos relatos que ficaram, a fazenda, naquela época, principalmente graças aos cuidados de d. João, pessoalmente empenhado no projeto, parecia algo muito próximo do paraíso. Na visita ao local, a viajante Maria Graham, além de testemunhar o interesse do monarca português pelo assunto, descreve um cenário que mistura trabalho, sonho e fantasia. Segundo ela, d. João mandara construir na Fazenda Santa Cruz portões e cabanas, em estilo chinês, que ficavam próximos a canteiros abrigando arbustos da erva, de folhas escuras e brilhantes e flores semelhantes às da murta. Tais canteiros eram cercados por caminhos onde se misturavam laranjeiras, roseirais e uma linda espécie de mimosa, formando belos jardins. Desse modo, a "China de Santa Cruz", escreveu Maria Graham, se tornara um dos pontos mais aprazíveis para os visitantes.
      No diário de viagem escrito durante sua estadia nas cortes de d. João VI e d. Pedro I (1821 a 1823), Maria Graham registra que introduzir o chá da China no Brasil era de fato um dos projetos favoritos de d. João, cujo entusiasmo foi também testemunhado por Johann Luccock. Para compor o cenário físico da Fazenda Santa Cruz, há os registros pictóricos do artista inglês Thomas Ender (18171818) mostrando a peculiaridade no modo de vestir e nos hábitos - particularmente o de fumar cultivados pelos chineses. O pintor também registrou a arquitetura diferenciada do local. Nos desenhos do príncipe Maxiliano Wied-Neuwied, datados de 1815, é possível perceber detalhes das cabeças de chineses em poses de perfil, sentados às margens dos caminhos ou segurando um caniço.
      Tudo parecia que ia muito bem, mas não era verdade. O clima supostamente idílico da Fazenda Santa Cruz não duraria muito. Contra os chineses e o projeto de d. João se levantariam em breve duas forças imbatíveis: o preconceito e as leis do mercado. Houve quem criticasse as peculiaridades comportamentais dos chineses na relação do trabalho e no modo de assimilar as informações recebidas. Luccock, por exemplo, achava que eram meticulosos no modo de lavrar e que alguns chineses demonstravam rapidez de assimilação. Considerava, no entanto, que a maioria deles era extremamente ignorante, "como jamais se viu em outra raça". O preconceito em Luccock ia ainda mais além: "Tais como os gregos modernos, a inteligência deles se desviou e o caráter envileceu". As condições que cercaram a vinda dos chineses já eram reveladoras de um futuro nada promissor. Não puderam trazer mulheres, para que seus traços orientais não passassem a descendentes brasileiros, e, aqui, eram proibidos de se aproximar da senzala, a fim de se evitar eventuais relações íntimas com escravas.
      Os resultados negativos desse regime de opressão a que foram submetidos, certamente agravado pela barreira da língua, surgiram quatro anos após a chegada dos primeiros imigrantes. Em 1819, 51 chineses subscreveram um abaixo-assinado que foi referendado por José Bonifácio e enviado a d. João VI. No texto, solicitavam um intérprete para auxiliá-los nos tribunais. É que alguns deles haviam virado réus, em consequência de fugas verificadas na colônia chinesa de Santa Cruz. Segundo a acusação, grupos de chineses que haviam deixado a lavoura de chá saíam pela cidade cometendo "abusos" e "desordens". As fugas eram consequência das condições a eles impostas na fazenda, pois, como escreveu Maria Graham em seu diário, "ninguém foge de onde vive bem".
      Segundo Fania Fridman, a relação de trabalho desses chineses tinha na verdade características escravocratas, pois "recebiam apenas 160 réis por dia, não podiam comerciar nem ir à cidade, dormir fora da colônia ou receber visitas". Graham, no entanto, considerou que o salário tinha um valor significativo na época. Não se pode afirmar que a força de trabalho chinesa no Brasil se submetia às características clássicas do escravismo. Havia, sim, relações de hierarquia que tinham de ser observadas e a presença de feitores, típicas do regime escravocrata. Documento de 1817 nomeia um chinês de nome "Bexiga" como feitor de Santa Cruz. Sua tarefa era controlar os conterrâneos rebeldes.
      Em 1825, o chinês João Antônio Moreira (nome adotado), que vivia no Brasil há mais de 11 anos e trabalhava há cerca de seis em Santa Cruz, enviou requerimento ao intendente da polícia, Francisco Alberto Pereira Aragão (1824-1827), solicitando sua nomeação para o cargo de capitão, a fim de auxiliar as autoridades no controle dos abusos cometidos por conterrâneos. Segundo o referido requerimento, certo número de chineses, tendo abandonado o cultivo do chá, desenvolveu total relaxamento dos costumes, formando "partidos" (leia-se bandos) e cometendo roubos. O intendente recomendou ao imperador d. Pedro I recusar o pedido, alegando que os chineses estavam suficientemente habituados ao país e não precisavam portanto de tratamento diferenciado: "Procedimentos errados deveriam ser tratados nos moldes da lei", afirmou.
      Percebe-se, na análise do documento, que os primeiros chineses do Brasil não constituíam um grupo homogêneo. O próprio João Antônio Moreira, considerado chinês, deveria pertencer a um determinado partido, pois denunciava os "abusos" de seus compatriotas que se organizavam em três grupos ou "partidos" denominados Cantão, Macau e Chá. O tempo passou e com ele algumas diferenças se dissiparam. O rígido controle da Coroa não impediu que em 1825 alguns chineses conseguissem licenças para mascatear na cidade do Rio de Janeiro e em outras cidades do sudeste brasileiro. Sobre isso, fontes históricas registram que durante o século XIX o território brasileiro foi palco de muitas experiências similares com trabalhadores livres estrangeiros. Nestes contingentes se encontravam também chineses, que a partir do decênio de 1833 se fixaram em vários pontos do país, particularmente o interior dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.
      Quanto ao cultivo do chá, o sonho tão acalentado por d. João VI, virou frustração. Frei Leandro, primeiro diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, em sua obra Memória econômica sobre o cultivo e preparo do chá (1825), reclama do despreparo dos agricultores brasileiros no cultivo da planta. Por este motivo, o chá não se disseminou no Brasil e na colônia chinesa de Santa Cruz malogrou. Em vez do chá, a economia preferiu o café, que continuou sendo produzido, exportado, acumulando e reproduzindo a riqueza das elites "nobiliárquicas" brasileiras. O fato é que o chá chinês deixou de ser produzido no Brasil e passou a ser importado da Inglaterra.
      Na análise de Maria Graham, os custos do investimento para o cultivo de chá eram muito elevados para a Coroa. Como os salários pagos aos chineses incidiam no preço de venda final do produto, a baixa produção, quase artesanal, não era suficiente para garantir o investimento. Analisando-se o caso pela perspectiva de hoje, é possível supor que a iniciativa de d. João VI tenha fracassado por falta de planejamento inicial, evidenciado pela desigualdade na concorrência com o café, cuja produção, para exportação, já ocorria em ampla escala, consolidando-o como o "produto-rei" da economia agrária brasileira, como afirmou a professora Maria Yedda Linhares.
      O hábito de tomar chá, no entanto, persistiu. O pioneiro da venda do produto no Rio de Janeiro foi o comerciante José Praxedes Pereira Pacheco, que fundou a Loja da China "à Rua da Candelária, 18, defronte da Igreja", conforme nos informa o Almanak Laemmert, de 1845. Segundo a propaganda, o estabelecimento tinha "o mais completo e variado sortimento de chá verde e preto, e também chá nacional das províncias de S. Paulo e Minas". Não encontramos registros sobre o plantio do chá em Minas, mas, em São Paulo, o produto começou a ser cultivado a partir de 1833, pelo marechal José Arouche de Toledo Rendon.
      Se os planos de d. João não deram certo, serviram pelo menos de "teste" para estimular a entrada de trabalhadores estrangeiros livres no Brasil. A partir daí, e pelo restante do século XIX e século XX, mais chineses iriam criar raízes no solo brasileiro. Em 15 de agosto de 1900 foi oficializada a entrada de 107 imigrantes chineses no país, radicados, em sua maioria, na cidade de São Paulo e um pouco menos no Rio de Janeiro. Intelectuais cariocas da década de 1920, como João do Rio, Benjamin Costallat e Álvaro Moreira, comentavam sobre chineses morando miseravelmente no Centro do Rio de Janeiro, nas proximidades da Praça XV, e ainda consumindo ópio.
      Com a revolução socialista chinesa de 1949, ocorreu uma diáspora para o Brasil, especialmente para a cidade de São Paulo. Nos últimos anos, eles se espalharam pelas principais capitais brasileiras, e São Paulo continua reunindo o maior contingente, mais de 130 mil pessoas (incluindo-se aí os descendentes), segundo dados apresentados pela Folha de S. Paulo, de 22/3/2005. Distribuídos pelos bairros da Liberdade, Vila Mariana, Cambuci, Aclimação e Vila Olímpia, dividem espaços com a comunidade japonesa e contribuem também para a diversidade da culinária brasileira com suas famosas lojas de pastéis e caldo de cana.
Geraldo Moreira Prado é historiador, PhD em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, e pesquisador do CNPq.
Rael Fiszon Eugênio dos Santos é graduando em História pela Universidade Federal Fluminense.

Fonte: Revista Nossa História - Ano III nº 36 - Outubro 2006

Saiba Mais – Bibliografia
ENDER, Thomas. Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender (1817-1818). Petrópolis, RJ: Kapa Editora, 2000.
FREITAS, Benedicta Santa Cruz: fazenda jesuítica, real, imperial. Vol. II: Vice-reis e reinado (1760-1821). Rio de Janeiro, 1987.
FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor e Caramond, 1999.

OLIVEIRA UMA, Manuel de. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945.

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