O sentimento que move a humanidade sofreu modificações
Sentimentos são tão fugidios quanto
importantes na história humana. Nos últimos séculos, o desenvolvimento da
ciência histórica contribuiu para a análise do mundo social, desvendando – ou
pretendendo desvendar – estruturas econômicas, desenhos políticos e formações
culturais. Este movimento, que acompanhou a profissionalização do ofício de
historiador, impulsionada no século XIX, nos ajudou a construir parâmetros para
os discursos sobre o passado, mas os estudos sobre sentimentos sempre ficaram
em segundo plano.
Entretanto, a História é protagonizada por
mulheres e homens. E é impossível compreendê-los sem que se leve em
consideração esta pergunta tão subjetiva: o que, em última análise, os move?
Teólogos, filósofos, gurus e líderes religiosos têm se debruçado há milênios
sobre este tema, e nada mais natural que a historiografia também o faça.
Livros, teses e grupos de pesquisa têm se empenhado nesta área, no Brasil e no
exterior, provando que o conceito de felicidade sofreu modificações e foi visto
de maneiras diversas ao longo dos tempos.
Para os gregos do período Clássico, os homens
eram impulsionados pela busca da eudaimonia. Para Aristóteles
(384-322 a.C.), na Ética a Nicômaco, o bem estar humano está
intimamente associado a esta busca de se “estar sob um bom gênio”, como pode
ser traduzida a expressão grega, isto é, a felicidade. Para o filósofo grego,
as pessoas se engajavam na vida política ou em qualquer outra atividade por
conta de uma inclinação natural ao estado de bem estar. Este estado da alma,
portanto, era o objetivo profundo de qualquer movimento humano, em qualquer plano
da vida. Epicuro (341-271 a.C.), seu contemporâneo, dedicou sua filosofia à
busca da felicidade, estado que seria constituído pela ausência da dor física (aponia)
e pela tranquilidade espiritual (ataraxia). A busca pelo prazer, em
todos os sentidos, assume na filosofia epicurista um lugar central na
explicação para todos os fenômenos humanos.
Se os gregos pagãos buscavam a felicidade
em vida, o cristianismo, que se impôs no ocidente a partir do século IV da
nossa era, adiou a realização deste ideal para a pós-morte. Em um mundo criado
pela extrema convulsão social (as “invasões bárbaras”) e pela imposição de uma
religião que rejeita o mundo terreno, ser feliz só podia ser um projeto para um
plano exclusivamente espiritual, onde qualquer vestígio da corrompida
existência material humana estivesse ausente. Ao longo da Idade Média, o
afastamento do ideal cristão de mortificação da carne podia resultar em dura
repressão – o que não significa que muitos não tenham se dedicado intensamente
à busca de uma satisfação física e psíquica à revelia do que queriam teólogos e
bispos.
A partir do século XV, com a
“redescoberta” dos valores da Antiguidade, que colocavam o homem terreno no
centro das atenções, a busca da felicidade em vida começou a entrar novamente
na ordem do dia. Em primeiro lugar, uma mudança de atitude: se até então o
homem precisava a todo o momento ser punido por conta da sua natureza
essencialmente pecaminosa, o Humanismo supera este problema e assume que o ser
humano, por ser a obra-prima do Criador, pode e deve ter sua existência terrena
valorizada. A partir daí, a satisfação neste mundo se torna legítima, e a mais
evidente prova desta libertação é a busca pela satisfação estética. Do início
ao fim, a arte do Renascimento é também uma busca desbragada pela beleza que há
no mundo – uma beleza humana ou humanizada, que pode eventualmente brotar da
natureza, mas que está mais associada à ação das mãos dos homens. Beleza e
felicidade estão novamente associadas.
A Época Moderna, que integrou o Novo Mundo
à velha Europa, viu a felicidade cada vez mais distante. Se o início deste
período trouxe esperanças quanto à realização terrena deste ideal, a
consolidação dos estados modernos – com a formação de uma opressiva autoridade
política e o consequente estado de guerra permanente, acompanhado de convulsões
religiosas, de pestes e de fome – acarretou um deslocamento geográfico desta
ideia. Não foram poucos os que se arriscaram a atravessar o Atlântico a bordo
de frágeis embarcações movidas por três elementos igualmente importantes: os
ventos, as correntes marítimas e a procura da felicidade.
Os súditos ingleses na América do Norte
estavam muito certos da sua escolha. E, no século XVIII, na medida em que viram
esta sua busca da felicidade – a esta altura já associada a uma ideia de
liberdade econômica e de uma concepção absoluta da propriedade privada –
ameaçada por atitudes arbitrárias do Parlamento inglês, não tiveram dúvida: ela
era mais importante do que a submissão à Coroa. Na abertura de Senso
Comum, de Thomas Paine, um dos textos políticos de maior impacto no seu
tempo, publicado na Filadélfia em janeiro de 1776, o escritor liberal e
revolucionário assume que os homens estão associados primordialmente para
buscar a felicidade. Em 1792, em seu Direitos do Homem, Paine
incluía esta procura entre os direitos essenciais dos indivíduos em sociedade:
“Os direitos naturais são aqueles que cabem ao homem em virtude de sua
existência. Desse tipo são todos os direitos intelectuais, ou direitos da
mente, e também todos aqueles direitos de agir como um indivíduo para seu
próprio conforto e felicidade, que não sejam prejudiciais aos direitos naturais
dos outros”.
No século XIX, a crença na evolução
progressiva da humanidade transferiu a felicidade para a realização material.
Os avanços tecnológicos e os ganhos econômicos criaram um mundo no qual a
satisfação física e a espiritual pareciam absolutamente palpáveis, ou ao menos
possíveis de serem alcançados em algum tempo futuro. A tristeza e a angústia só
poderiam ser encaradas como patologias – a psicologia não nasceu no século XIX
por acaso.
Há mais de cem anos, portanto, a
realização imediata deste ideal substituiu o processo de busca – os livros de
auto-ajuda e os antidepressivos são provas desta transformação. Procurar a
felicidade por meio de ações em sociedade, algo que moveu os homens no ocidente
desde o Renascimento, tornou-se uma atividade ridiculamente obsoleta, enquanto
nos satisfazemos com uma literatura de qualidade questionável e toneladas de
remédios – excluindo-se, é claro, casos médicos comprovados.
Sair de um ponto e tentar chegar a outro
pode ter sido, durante séculos muito produtivos em termos materiais e
intelectuais, um motor da História. Assumir que a tristeza é parte importante
da vida e buscar, de forma individual e coletiva, a satisfação estética de
todos os sentidos, tal como faziam muitos contemporâneos de Leonardo da Vinci e
de Henrique VIII, talvez seja, atualmente, um verdadeiro ato de resistência.
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