“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 10 de agosto de 2014

Presidentes da 1ª República - Hermes da Fonseca - Revolta da Chibata

O presidente urucubaca
Com fama de azarado, Hermes da Fonseca trouxe os militares de volta ao cenário político e desbancou o poder das oligarquias estaduais.
Nívia Pombo
     Baixo, gordo e calvo. Hermes da Fonseca era dono de traços físicos pouco atraentes. Pesava ainda so­bre o presidente a fama de ser in­deciso, ignorante e pé-frio. Du­rante todo o seu governo, a opi­nião pública o azucrinou: pela sua presumida ignorância foi apelidado de "Dudu". Na imprensa, as caricatu­ras e paródias faziam mais sucesso do que suas ações administrativas, o que fez dele a maior vítima presiden­cial de chacotas.
     Sobrinho do primeiro presi­dente da Repú­blica, o mare­chal Deodoro da Fonseca, Hermes nasceu em 1855, na vila de São Ga­briel, no Rio Gran­de do Sul. Na infân­cia, a brincadeira dileta era cavalgar, passa tempo que iria manter até a idade adulta. Ouvindo os ecos da Guerra do Paraguai, divertia-se também em assistir aos exercícios diários no Corpo de Ar­tilharia a Cavalo, onde seu pai, Her­mes Ernesto da Fonseca, servia.
     Fugindo do ambiente sombrio do conflito, em 1866, sua mãe, Ri­ta Rodrigues Barbosa da Fonseca, veio para o Rio de Janeiro com seus oito filhos. No ano seguinte, Hermes ingressou no Colégio Saint-Louis, na atual Praça Tiradentes. Pouco afeito aos estudos, foi expulso após brigar com três colegas e rasgar a batina de um padre. Passou a estudar no Colé­gio de Pedro II e a frequentar as aulas do Liceu de Artes e Ofícios. Logo a aptidão para a caserna co­meçou a aflorar e, a contragosto do pai, entrou no Batalhão de Ar­tilharia a Pé e na Escola Militar da Praia Vermelha, em 1871.
     Não tinha ambição política, falando-lhe mais alto a carrei­ra militar. Com a ajuda do tio-presidente, Hermes chegou às mais altas patentes do Exército. Em 1890, foi eleva­do a tenente-coronel, assumindo o "Regimento dos Fonseca", uni­dade assim no­meada por ser reduto de mui­tos oficiais da família. A promoção a mare­chal ocorreu du­rante o governo de Rodrigues Alves, quando enfrentou a Revolta da Vacina. A esta altura, já esta­va casado com sua prima-irmã, Orsina Francione da Fonseca. Namoro de infância, Orsina era uma noiva ideal: "vir­tuosa, bem-educada e econômi­ca". O enlace, em dezembro de 1877, foi marcado por um fato inusitado: o padre se recusou a subir a ladeira que conduzia até a capela, reclamando de cansaço. O noivo teve que ir buscá-lo junto com outros companheiros mili­tares. O casal teve oito filhos.
     A nomeação para o Ministério da Guerra em 1906, no governo de Afonso Pena, marcou sua en­trada na política. Militar presti­giado, era nome certo para os planos de reorganização do Exér­cito. Acumulou ainda o posto de ministro do Supremo Tribunal Militar. Tudo caminhava bem pa­ra Hermes da Fonseca até 1909, quando surpreendeu a todos com suas ambições à Presidência.
 
    Naquele ano, os discursos no Senado sobre o substituto de Afonso Pena apontavam para uma crise. Durante todo o seu governo, Pena não escondia a predileção pelo seu conterrâneo, o então presidente de Minas Ge­rais, João Pinheiro, cria do Jardim de infância (ver Um tico-tico no Catete). Mas a ideia acabou abortada, pois o jovem mineiro morreu em 1908. Outro nome cogitado foi o do talentoso ministro das Finan­ças, David Campista, repelido pe­los correligionários de Pena e pe­la opinião pública.
     Numa coligação entre Minas e Rio Grande do Sul, foi lançada a candidatura de Hermes da Fon­seca, tendo como vice Wenceslau Braz. São Paulo e Bahia se uniram em torno de Rui Barbosa. Pela primeira vez, o esquema "café-com-leite" fora quebrado. A dispu­ta prometia ser quente. Os civilis­tas defendiam princípios de­mocráticos e achavam que os mi­litares não deveriam exercer mais a Presidência, embora reconhe­cessem a importância do Exército na fundação da República.
     Para Afonso Pena, a candida­tura de Hermes foi um duro gol­pe. Houve quem dissesse que a morte do presidente (1909) foi provocada por um "trauma moral" resultante de uma reunião com o marechal. E pior: houve quem dissesse que a morte fora provocada pela urucubaca que ele espalhava. Coincidência ou não, a morte de Pena inverteu o cená­rio eleitoral: Hermes passou de oposição para situação, porque o então presidente Nilo Peçanha apoiou a campanha militarista.
     Após duas décadas de regime re­publicano, o país teria sua primeira campanha eleitoral de verdade. Na plataforma dos militaris­tas estava a derrubada da "política dos gover­nadores" implementada por Campos Salles. Tinham como símbolo uma vassoura para “varrer a rou­balheira dos civilistas" e imple­mentar a política das "salvações". Já os civilistas percorreram o Brasil defendendo o voto secreto e o combate ao analfabetismo. Após uma disputa incendiária, Hermes venceu as eleições: 403.897 votos contra os 223.784 de Rui Barbosa.
     Mal despiu a farda, o presi­dente foi acusado de vencer gra­ças às fraudes eleitorais.  Não bastasse a denúncia, estoura na capital da República a Revolta da Chibata. Intolerante, expulsou da Mari­nha os integrantes do movimen­to. Os excessos na aplicação das penas resultaram na morte da maioria dos revoltosos. O Rio de Janeiro ficou oito meses em esta­do de sítio, o que minou sua té­nue base política e foi um prato cheio para as críticas civilistas. Eram os primeiros indícios de que a gestão do marechal Hermes seria turbulenta. E azarada.
     Em 1910, em visita oficial a Portugal, durante uma recepção oferecida pelo rei d. Manuel II, um movimento político derrubou a monarquia. Apavorado, d. Manuel sequer aceitou o asilo político ofe­recido pelo marechal. Outro epi­sódio teria resultado mais desas­troso para o Brasil: ao pedir um empréstimo de 2,4 milhões de libras ao Lloyds Bank, em 1912 - para saldar dívidas contraídas por governos anteriores -, metade da quantia foi depositada num banco russo e seria perdida com a Revolução Socialista de 1917. Enquanto isso, o povo declamava: "o Dudu, pobre coitado, parecia um cão sem dono/ Todos os jor­nais só o chamavam de vaca/ de cretino/ urucubaca...".
     Em janeiro de 1911, inicia-se a chamada "política das salvações", no­me atribuído às derrubadas dos presidentes esta­duais com o apoio do governo fede­ral. Oligarcas fo­ram substituídos por militares da confiança do marechal Hermes. No final, a política acabou se tor­nando um desastre. Encontrando resistências em Salvador e em Manaus, o marechal ordenou o bombardeio das cidades.
     Sem experiência administrati­va, o presidente ganhava os adjeti­vos de "indeciso" e "influenciável". Anedotas e caricaturas registravam a ascendência do senador Pinheiro Machado sobre Hermes. Uma de­las relatava uma confidência do presidente ao seu vice: "Olha, Wen­ceslau, o Pinheiro é tão bom amigo que chega a gover­nar pela gente". Para reverter esta imagem, o próprio Pinheiro Machado criou o Partido Republicano Conser­vador (PRC), na tentativa de preser­var o Executivo.
     O marechal ten­tou ganhar popu­laridade se aproximando do opera­riado. Com a ajuda do filho Mario Hermes, ouviu reivindicações tra­balhistas. Construiu vilas operá­rias, como a de Sapopemba, atual bairro de Marechal Hermes, no Rio de Janeiro. Fundou um sindicato, a Liga do Operariado do Distrito Federal, em outubro de 1912. Atento à saúde pública, por inter­médio do Instituto Oswaldo Cruz incentivou viagens de cien­tistas renomados, como Belizário Pena e Artur Neiva, incumbidos de diagnosticar as principais doenças que afligiam a popula­ção do interior do Brasil.
     Se sua gestão andava caótica, um fato viraria de cabeça para baixo a vida do "Dudu". Sua es­posa falece em 1912 e, sem que o luto terminasse, casa-se com Nair de Teffé. Moça rica e da mais alta aristocracia da República, era fi­lha do almirante Antonio Luiz Von Hovnholtz, o barão de Teffé, e, pasmem, 31 anos mais jovem do que o presidente!
     Educada na França, Nair falava diversas línguas, tocava violão, era atriz e, por ironia, a primeira caricaturista do Brasil. Ousada, fre­quentava o Café Jeremias, um dos redutos da boêmia carioca, onde conviveu com literatos como João do Rio e Arthur Azevedo. O namoro teve início em janeiro de 1913, em Petrópolis, quando o marechal se recuperava da perda da esposa. Recebido pela família Teffé, logo se apaixonou por Nair. Entre cavalgadas matutinas e ca­fezinhos na casa do barão, Her­mes se declarou: "Estou encanta­do com a beleza de mademoiselle. Queria fazê-la minha esposa".
     Foi um escândalo. Uma menina culta e jovem não deveria se casar com um velho que acabara de ficar viúvo, na opinião dos mais conser­vadores. Os filhos do marechal também não toleraram o consór­cio. Para os opositores do presiden­te a notícia foi um prato quente. O marechal estava caduco, diziam. Mas o casamento ocorreu em 8 de dezembro de 1913, sem lua-de-mel, devido à pobreza do noivo.
     Nair trouxe descontração à vi­da palaciana, e seus salões se tor­naram famosos pelas festas e sa­raus. As recepções eram tantas que Rui Barbosa apelidou o Catete de "Versailles do século XVII", numa alusão à Corte fran­cesa. Mas nenhum evento causou tanto frisson quanto o sarau do "Corta-jaca". Considerada chula e pornográfica, a composição era um dengoso maxixe de Chiquinha Gonzaga. A opinião pública não perdoou: do casamento à noite do "Corta-jaca", tudo foi motivo para mais caricaturas e canções irreverentes: "o Dudu sai a cavalo/ o ca­valo logo empaca/ e só recomeça a andar/ ao ouvir o Corta-jaca..."
     Distraído, o marechal não per­cebeu que o Brasil rumava para uma terrível crise. O país assistia mais um episódio sangrento: a Guerra do Contestado. Ocorrida na divisa do Paraná com Santa Ca­tarina, tinha
caráter messiânico e foi liderada pelo "monge" José Ma­ria. O marechal não conseguiu contornar o conflito, iniciado em 1912, e sobrou para o próximo presidente, Wenceslau Braz, con­trolar a revolta que durou até 1916.
     Para completar, crise financei­ra. Entre 1913 e 1914 foi pedido um novo empréstimo internacio­nal para a manutenção do Con­vénio de Taubaté, firmado em 1906 para garantir os preços do café. Mas a medida foi em vão, pois as exportações despencaram. Na Amazônia, a produção de borracha dava sinais de ago­nia. No último ano de governo, o marechal Hermes negociava no­vo funding-loan, acordo feito em 1898 para o parcelamento da dí­vida externa. Mas a deflagração da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) dificultou a obten­ção de novos empréstimos.
     Hermes da Fonseca entregou ao sucessor um país endividado. Cansado das críticas e chacotas, desiludido com a política, desaba­fou: "Passei pela triste decepção de verificar que 'amigos' meus o eram mais dos oligarcas". Com o fim do mandato, recolheu-se em Petrópolis e passou a fazer móveis e casinhas para passarinhos. Após exílio voluntário na Europa, re­tornou em 1920. Dois anos de­pois, foi preso pelo envolvimento numa conspiração militar contra o presidente Epitácio Pessoa. Em liberdade e doente, voltou a Petrópolis onde faleceu de um ataque cardíaco, em 9 de setem­bro de 1923. Seu último desejo foi ser enterrado em trajes civis, dis­pensando as honras militares.
Nívia Pombo é mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense e pesquisadora de Nossa História.
Fonte: Revista Nossa História - Ano III nº 32 – Junho - 2006


Contra a chibata, canhões
As reivindicações que levaram os marinheiros à Revolta da Chibata iam muito além da extinção do castigo inevitavelmente associado à escravidão.
     Em 22 de novembro de 1910, os moradores da cidade do Rio de Janeiro acordaram sobressaltados. Tiros de canhão eram ouvidos por todos os lados. O que estaria ocorrendo dessa vez? Mais uma tentativa de golpe de Estado?  Revoltas contra o aumento das passagens dos bondes? Uma nova vacinação obrigatória? Ou alguma outra atitude impopular do governo? Os rumores foram desfeitos na manhã seguinte, quando os principais jornais do Brasil e do mundo passaram a publicar as notícias da Revolta dos Marinheiros. 
     A Marinha de Guerra havia encomendado diversos navios aos estaleiros ingleses de Newcastle, como parte do seu projeto de reaparelhamento naval, e, em 1910, chegaram os modernos e poderosos encouraçados: Minas Gerais e São Paulo. Foram esses dois navios e mais duas embarcações – Deodoro e Bahia – que os marinheiros utilizaram para exigir o cumprimento das suas reivindicações. Aos gritos de “Viva a liberdade” e “Abaixo a chibata”, os amotinados foram matando e expulsando oficiais, sargentos e marinheiros contrários ao movimento. Logo após, apontaram os enormes canhões contra a cidade e atiraram, vitimando pessoas em duas residências.
     As alternativas de contragolpe eram nulas. Sob a liderança de João Cândido Felisberto e Francisco Dias Martins, os marinheiros, negros em sua imensa maioria, mostraram-se habilidosos na condução das embarcações e na sobriedade com que encararam a luta por melhores condições de trabalho. O uso de bebidas, a prática dos jogos de azar e diversas outras atividades foram proibidas. Afinal, eles estavam planejando essa revolta havia meses e não poderiam comprometer seu sucesso.
     Hermes da Fonseca fora empossado presidente apenas sete dias antes. Com a surpresa do ataque e a dimensão da organização, o marechal se viu obrigado a negociar, sob a pressão de retirar a capital federal da República — e o seu próprio governo — da estranha condição de reféns de centenas de marinheiros amotinados.
     Os debates no Congresso foram fervorosos e puseram em lados opostos os senadores Rui Barbosa e Pinheiro Machado. O primeiro defendia a votação de um projeto imediato de anistia e o segundo entendia que tal direito só deveria ser satisfeito caso os marinheiros primeiro entregassem as armas. Rui Barbosa foi vitorioso, e a anistia encerrou a revolta dos marinheiros naquele mês de novembro. Pensaram os amotinados que os debates no Poder Executivo e a cobertura jornalística nacional e internacional seriam suficientes para terminar com seus problemas. Afinal, haviam conseguido revelar a humilhante realidade a que eram submetidos no interior da armada por seus oficiais superiores. 
     No entanto, em 27 de novembro, os oficiais ordenaram o desarmamento dos poderosos navios e, no dia seguinte, começaram a expulsar dezenas de ex-amotinados, desrespeitando a anistia. A tensão entre marinheiros e oficiais aumentou, e os líderes já não mais conseguiam comandar todos os colegas. Dias depois, em 9 de dezembro do mesmo ano, outra revolta estourou no navio Rio Grande do Sul e no Batalhão Naval da ilha das Cobras. O navio foi logo dominado pelos oficiais, e o Batalhão Naval passou a ser brutalmente bombardeado pelas forças do Exército. Sendo um alvo fixo e sem a liderança e a organização existentes em novembro, os amotinados do Batalhão Naval foram sendo mortos e feridos ao longo daquela intensa noite.  Não há dados que revelem a quantidade de mortos, mas alguns jornais chegaram a noticiar mais de trezentos. 
     Tanto os marinheiros de novembro quanto os de dezembro foram sendo presos.  Dezesseis deles morreram asfixiados numa masmorra da ilha das Cobras. Mais de cem outros foram enviados para o Acre, junto a mais de duzentos presos e presas da Casa de Detenção. Lá foram obrigados a trabalhar nos seringais e na construção da ferrovia Madeira-Mamoré. João Cândido foi um dos dois sobreviventes da cela da ilha das Cobras. Passou dois anos preso, incomunicável, e só conseguiu sua liberdade após um arrastado processo militar, que o acusava de participação no movimento de dezembro.
      Raros eram aqueles que desejavam ser marinheiros. Os homens eram recrutados à força nas ruas ou prisões. Havia também o alistamento de menores pobres, órfãos e desvalidos que eram enviados por pais, juízes e tutores. O governo incentivava esse tipo de alistamento através do pagamento de prêmios aos responsáveis dos garotos.  Entre os receios que afastavam voluntários para o serviço estavam o tempo de serviço militar obrigatório (entre nove e quinze anos), o baixo salário e as violências sexuais. No entanto, as formas de disciplinamento usadas pelos oficiais eram o que maior aversão gerava entre os possíveis candidatos.
     Há diversos casos de cem, 250 e até quinhentas chibatadas num único dia. Embora o castigo da chibata em marinheiros seja facilmente associado à recém-abolida escravidão no Brasil, é importante ter em mente que esse tipo de disciplinamento era comum na maior parte das forças armadas no mundo (Inglaterra, Estados Unidos, Rússia).  Mas não havia  maiores questionamentos por parte dos marinheiros aos castigos considerados justos e sem excessos e, até a República, não ocorreram revoltas contra os castigos na armada.
     Com o fim da guerra do Paraguai, a Abolição e as mudanças no pensamento ilustrado, esse tipo de castigo começou a ser contestado. Além disso, um outro fato mexeu com as normas de punição.  No segundo dia da República, o ministro da Marinha, Eduardo Wandenkolk, decidiu abolir os castigos corporais a bordo dos navios. Essa decisão não foi gratuita.  Um ano antes, os marinheiros haviam conseguido pôr as ruas do Rio de Janeiro em estado de guerra, quando atacaram as forças da polícia, devido a antigas questões entre as duas corporações. O barulho foi tão grande e a oposição explorou tanto a situação pelos jornais que a princesa Isabel teve de sair de Petrópolis para dar um basta àquela situação. Wandenkolk estava nas ruas do Rio nesse dia e muito certamente notou a importância de ter os marinheiros avessos à monarquia e inclinados às iniciativas da jovem República.
     No entanto, cinco meses após o fim dos castigos físicos, os oficiais passaram a pressionar Wandenkolk, que instaurou um novo regime de punição, mais rigoroso que o anterior, resgatando inclusive o castigo de chibata. As primeiras revoltas de marinheiros começaram a estourar em estados como Rio de Janeiro, Mato Grosso e Rio Grande do Sul ainda na década de 1890. A liderada por João Cândido, no entanto, foi a mais organizada, alcançou maior sucesso que as anteriores e demonstrou a consciência a que os marinheiros haviam chegado. 
     Não era somente uma revolta contra a chibata. Os marinheiros expuseram os problemas e apresentaram propostas concretas de mudança. De um lado, a chegada dos novos navios exigiu maior quantidade de homens, sobrecarregando o trabalho dos existentes. As irritações e os castigos aumentaram consideravelmente. Além disso, os oficiais receberam aumentos de salários, mas os marinheiros não tiveram a mesma sorte. O aumento dos salários e a criação de uma nova tabela de serviços, que diminuísse o excesso de trabalho, foram duas reivindicações reveladoras dessa insatisfação.
     Por outro lado, exigiam o fim dos castigos físicos. Um código penal permitia tal punição, mas diversos oficiais castigavam mais que o ratificado nos seus parágrafos, impiedosamente. Daí exigirem a mudança do código penal e a demissão desses oficiais.  Mas eles também sabiam que mudanças no comportamento dos marinheiros eram necessárias. Havia muitos colegas seus que se embriagavam com frequência, implicavam com colegas, roubavam objetos do fardamento, trapaceavam no jogo.  Eram essas atitudes que geralmente levavam o marinheiro indisciplinado e outros envolvidos por ele a sofrer castigos físicos, descontos de salários, rebaixamento de posto. Assim, exigiram “educação” para os marinheiros indisciplinados. As lideranças certamente discutiram estes problemas nas reuniões preparatórias para a revolta de novembro de 1910.
     Em 1911, a maior parte dos envolvidos tinha sido desligada, morta ou fugira.  Anos depois da revolta, os resultados começaram a aparecer. Em 1923, a Escola de Aprendizes da Bahia teve todas as 47 vagas preenchidas rapidamente. No entanto, o oficial comandante dessa instituição começou a reprovar diretamente todos os menores negros, dando lugar aos brancos. Segundo ele, esta era uma seleção “natural”.  Parte dos oficiais, enfim, desejava embranquecer a armada. 
     Devido ao racismo na Marinha, negros não poderiam ser oficiais. Mesmo que distantes do oficialato, os marinheiros de 1910 desejaram construir uma nova realidade capaz de alavancar suas carreiras.  Numa cidade onde a disputa por empregos no mercado de trabalho criou e recriou conflitos por nacionalidade, cor e gênero, os amotinados de 1910 tentaram garantir um espaço no qual assegurassem dias mais felizes para suas vidas.
Álvaro Pereira Nascimento é doutor em história pela Unicamp e autor de A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na armada imperial.  Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.



O mestre-sala dos mares
Em 1975, os compositores João Bosco e Aldir Blanc fizeram uma música em homenagem a revolta da Chibata que aconteceu no Brasil em 1910. Nos anos 1970, o Brasil era governado por uma ditadura militar e as criações artísticas, como as letras de música, de­viam ser aprovadas pelas autoridades. A Censura Federal vetava ou alterava artigos de jornal, livros, filmes, músicas, etc. A letra da música de Bosco e Blanc desagradava aos militares e foi censurada. Abaixo estão reproduzidas as duas versões da mú­sica: a versão original e a versão modificada para passar pela censura.

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