Quando faltam menos de um ano
e meio para que o golpe civil militar de abril de 64 complete 50 anos, a
Justiça brasileira está para decidir uma ação da família do presidente deposto
João Goulart, conhecido como Jango, que poderá resultar na colocação dos
Estados Unidos no banco dos réus. 0 tema é complexo e se arrasta desde 2002 nas
mais variadas instâncias da Justiça e foi iniciada pelo advogado José Roberto
Rutkoski e agora está a cargo de Trajano Ribeiro e Daniel Renout da Cunha.
Para
se entender melhor os meandros da ação, é necessário que os interessados
conheçam os pormenores de uma linguagem jurídica complexa em que se destacam
termos como “atos de gestão e de império” por parte do governo estadunidense.
A história da ação começa em 2002, depois
de uma entrevista do ex-embaixador Lincoln Gordon, ao lançar em São Paulo e no
Rio de Janeiro o seu livro Brasil Segunda Chance: A Caminho do Primeiro
Mundo, admitindo o patrocínio oculto da quebra da ordem constitucional mediante
exemplos como o fato de que a CIA dispôs 5 milhões de dólares, a partir de
1962, com o financiamento de candidatos ao Congresso que desfraldassem a
bandeira do anticomunismo e combatessem também o nacionalismo.
Era o tempo do Instituto Brasileiro de
Ação Democrática (IBAD) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES),
que tinha como um dos principais coordenadores o então Coronel Golbery do
Couto e Silva, um dos principais mentores do golpe de 64.
Com esta admissão, os filhos de Jango,
João Vicente e Denise Goulart, bem como a viúva, Maria Tereza, tomaram a
iniciativa de processar pela Justiça brasileira o Estado norte-americano como
um dos responsáveis pelo golpe que afastou do poder o presidente da República.
Soberania Nacional
Inicialmente, segundo explicou João
Vicente, o objetivo da ação não visava propriamente indenização, apenas uma
ação afirmativa. O pedido sempre foi de indenização, mas não tinha nenhum valor
fixado porque era uma reação política e de defesa da soberania, mas a Justiça,
mais precisamente a 10a Vara Federal do Rio de Janeiro, exigiu que
fosse fixado o valor das perdas que a família teve em decorrência do
afastamento forçado de Jango da Presidência e posteriormente o exílio no
Uruguai.
Foi realizada uma perícia para apurar o
valor da evolução patrimonial. Com base na declaração do Imposto de Renda de
1963 do presidente deposto, a qual foi somada uma quantia referente aos danos
morais e o valor da reparação, acabou sendo estipulada em cerca de 4 bilhões
de reais.
A 10a Vara Federal julgou
extinto o feito com fundamento na impossibilidade jurídica do pedido com base
na imunidade absoluta de jurisdição do Estado estrangeiro cujo recurso acabou
sendo encaminhado para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde, apesar das
sucessivas negativas da maioria dos Ministros, os advogados ainda tentam colocar
o Estado norte-americano no banco dos réus.
No terreno jurídico, segue sendo travada
uma batalha complexa e que para entendê-la é necessário também analisar os
meandros da política externa estadunidense atual e do período da Guerra Fria.
O financiamento pela CIA da campanha para
a derrubada de Jango, que não se limitou na verdade aos cofres do IBAD ou do
IPES, foi inspirada no que aconteceu na Itália logo após o fim da II Guerra
Mundial. Preocupados com a possibilidade de uma vitória eleitoral do então
poderoso eleitoralmente Partido Comunista Italiano (PCI), a CIA e demais
organismos do Estado norte-americano despejaram milhões de dólares para beneficiar,
sobretudo partidos como o da Democracia Cristã e demais opositores do PCI. A
ofensiva anticomunista deu certo e impediu a vitória dos comunistas, então
agrupados unitariamente em um partido forte sob a liderança da figura legendária
do secretário geral Palmiro Togliatti.
Em uma reunião realizada a 30 de julho de
1962 entre o então Presidente John Kennedy e o embaixador Lincoln Gordon, o
assessor presidencial Richard Goodwin aventou a possibilidade de que “talvez
devêssemos pensar em golpe num futuro próximo (no Brasil)”.
Na mesma entrevista sobre os gastos da CIA
com o esquema de desestabilização do governo constitucional brasileiro, embora
confirmando o que disse Goodwin, Gordon procurou minimizar o fato declarando
que a opinião do assessor não foi considerada naquele momento, o que na
prática não se confirma pelo teor dos documentos secretos desclassificados em
2004 pelo Departamento de Estado norte-americano.
Segundo o próprio Lincoln Gordon, foram
gastos pela CIA 5 milhões de dólares, o equivalente hoje a cerca de 50 milhões
de dólares ou 100 milhões de reais.
Maior Temor
Na verdade, temendo que no Brasil se
consolidasse um governo nacionalista, Kennedy chegou a dizer que o número de
comunistas no Brasil é irrelevante na cena política e que esse fato serviria
apenas para atacar o governo de Jango.
Kennedy temia eventuais ameaças aos
interesses de empresas norte-americanas, sobretudo com a possibilidade, já
então concreta, da aprovação da lei de remessa de lucros. Ele não pensou duas
vezes em executar o que pouco tempo antes o Conselho de Segurança Nacional
estadunidense sob o governo de seu antecessor, o Presidente Dwight Eisenhower,
aprovou, ou seja, a resolução sobre as “covers actions” (ações encobertas)
contra a ordem jurídica de outros países: “as operações deviam ser secretas e
permitir que o governo pudesse negar, com foros de plausibilidade, sua
participação nas mesmas”.
Kennedy, portanto, seguindo essa prédica,
não poupou esforços no sentido de que em algum momento ocorresse a derrubada
de Jango, o que hoje é confirmado com a leitura de uma série de documentos do
Departamento de Estado liberados para consulta. Lyndon Johnson, o sucessor de
Kennedy, simplesmente levou adiante a política adotada pelo Presidente assassinado
em novembro de 1963.
Na petição apresentada pelos advogados da
família Goulart à Justiça brasileira, é lembrado o fato de que vários
embaixadores estadunidenses (no começo da década de 60) queixaram-se de terem
sido usados para dissimular atividades de espionagem, mas a CIA sempre insistiu
que a cobertura das embaixadas é essencial a seu trabalho, porque inclusive
sem a imunidade de que goza a propriedade diplomática, os códigos, arquivos
e comunicações da central de inteligência estadunidense não estariam em
segurança.
Foi
lembrado também que o atrito entre funcionários do serviço exterior e os
agentes da CIA tornou-se tão agudo ao fim do governo de Dwight Eisenhower que o
então presidente expediu uma ordem executiva, em novembro de 1960, onde
afirmava: “Os chefes de missões diplomáticas dos Estados Unidos no exterior,
como representantes do Presidente e agindo em seu nome, deverão possuir e
exercer, na medida em que permitam as leis e de acordo com as instruções que o
Presidente venha promulgar, a responsabilidade direta pela coordenação e
supervisão das atividades das várias agências que sirvam nos diferentes
países”.
E tão logo foi empossado,
lembram os advogados Trajano Ribeiro e Daniel Renout da Cunha, John Kennedy
apressou-se em reafirmar os poderes do Departamento de Estado e dos
embaixadores. Os embaixadores que eventualmente não aceitassem a determinação
ou simplesmente apenas a questionassem foram removidos e substituídos.
A partir de então, e sem que fossem canceladas
até hoje as determinações, as embaixadas estadunidenses se tomaram uma espécie
de linha auxiliar da CIA.
Os advogados da família Goulart apresentaram
na Justiça brasileira a tese segundo a qual a intervenção norte-americana no
Brasil com a liberação de verbas aos golpistas de 64 e a presença de uma
esquadra naval norte-americana nas costas brasileiras para, em caso de
necessidade, apoiar a ação de derrubada do Presidente brasileiro, foi um “ato
de gestão”.
Ou seja, o governo estadunidense (Poder
Executivo) agiu sem consultar o Congresso (Poder Legislativo). Para entender
melhor, foi uma ação diferente da empreendida em 2003 contra o Iraque, quando
para aprovar a ação militar houve consentimento do Senado, caracterizando-se
como “ato de império”. Não vem ao caso se a decisão do Senado ocorreu com base
na mentira segundo a qual o Iraque possuía armas de destruição em massa, o que
ficou comprovado não existiram.
No caso do golpe de 64, ao intervir da
forma como interveio, o governo dos Estados Unidos, segundo os advogados
Trajano Ribeiro e Renoult da Cunha, simplesmente violou a Constituição norte-americana
ao ferir a carta de princípios da Organização dos Estados Americanos (OEA),
que impede a intervenção direta ou indireta de um estado estrangeiro sobre a
ordem interna de um aliado dos EUA. Um ato ilícito sob o ponto de vista da
Constituição norte-americana, portanto, não pode ser um ato de império.
Negativas da Justiça
Negativas da Justiça
Mas a Justiça brasileira entendeu que a
ação dos EUA foi um “ato de império”, inviabilizando a continuação do processo
contra o Estado estrangeiro em território nacional, o que em linguagem jurídica
é considerado “imunidade absoluta de Jurisdição”.
As sucessivas negativas de recursos que
impedem de colocar no banco dos réus do Brasil os Estados Unidos, tanto da
parte da 10a Vara Federal do Rio de Janeiro, como do STJ, inclusive
a de impedir que a ação seja encaminhada para decisão do STF, colocam em dúvida
se a Justiça brasileira tem mesmo interesse em defender a soberania nacional
ou se sente atemorizada com a solicitação de julgar o Estado norte-americano em
território nacional.
Reforça essa tese o fato de o Ministro do
STJ, Félix Fischer ter decidido a ação sem permitir que um recurso
extraordinário pudesse seguir para o STF sob a alegação de que uma petição não
tinha sido apresentada em tempo hábil.
Mas os advogados comprovaram, mediante documento
fornecido pelos Correios, que informaram que o documento original havia chegado
no prazo ao STJ, não tendo sido juntado a tempo por falha administrativa do
órgão judiciário. Isto é, o próprio STJ extraviou o documento em questão, resta
saber se deliberadamente ou não. Os advogados alegam que esta questão foi
ultrapassada quando o ministro João Otávio de Noronha consagrou o entendimento
de que mesmo que os originais do agravo tivessem sido apresentados dentro do
prazo “ratificavam-se os fundamentos da decisão que negou seguimento a ação
rescisória”. Ação que combate o entendimento equivocado de que os Estados
Unidos praticaram ato de Império, quando a jurisdição brasileira é competente
para julgar atos de gestão.
Favorecimento
Além disso, o que é ainda mais
grave, os ministros do STJ, com exceção de Nancy Andrighi e Humberto Gomes de
Barros, concederam ao réu (EUA) a prerrogativa, não solicitada, por sinal, de aceitar
ou não abrir mão da “imunidade de jurisdição”,
Trocando em miúdos, facilitaram o lado dos
Estados Unidos, que com a decisão fizeram a pergunta que favoreceu ao réu,
dando margem à hipótese de que os ministros queriam se livrar, para eles, do
fardo de julgar o mérito da ação interposta pela família de João Goulart. Pior,
acabaram por declarar de maneira ilegal que os Estados Unidos violaram a Carta
da OEA sem que tivesse direito de se manifestar.
Com isso, fica reforçada a dúvida que os
ministros do STJ pouco se importam se está em jogo verdadeiramente a
soberania nacional.
Em razão da dificuldade encontrada para
dar seguimento à ação, não se exclui a possibilidade de a família Goulart
fazer o mesmo que fez a família de Jacobo Arbenz, o presidente deposto da
Guatemala, em 1954. Os Arbenz deram entrada, e ganharam, em ação na Justiça
dos EUA apresentando o Estado norte-americano como um dos responsáveis pelo
golpe patrocinado pela CIA. Não foi divulgado o valor que os EUA pagaram pelos
danos causados à família Arbenz, mas a decisão cria jurisprudência e, caso os
Goulart entrem com ação, obterão resultado favorável ao pleito.
Para João Vicente, no entanto, o ingresso
da ação na Justiça brasileira é um recurso importante no sentido da afirmação
e defesa da soberania nacional, que, no entender dele, foi aviltada com o golpe
que derrubou o presidente João Goulart. João Vicente se baseia no fato de que a
jurisdição se exerce nos mesmos limites da soberania e o dano foi praticado em
território brasileiro. Daí a competência territorial para julgar o pedido de
reparação.
A renúncia de jurisdição e competência
para julgar o pedido da família Goulart, sem que os Estados Unidos tivessem
solicitado formalmente a imunidade de jurisdição, é, sem dúvida, uma renúncia
de soberania.
Não se exclui também a possibilidade,
segundo admitiu João Vicente Goulart, se a justiça negar totalmente a ação, de
a família para o julgamento do Tribunal de Haia. “Lamentavelmente, o Brasil
terá de ser réu pelo fato de a justiça negar a uma família o direito de julgar
em território nacional o país responsável por uma ilegalidade que levou o país
a uma longa escura noite de 21 anos”, observou João Vicente Goulart.
Por estas e muitas outras ao longo dos
anos, está na hora do Poder Judiciário brasileiro ser passado a limpo,
inclusive sepultar os vícios adquiridos ao longo de 21 anos de ditadura e que
continuam vigentes.
Mario Augusto Jacobskind é jornalista.
Saiba
Mais – Link:
Sem resistir ao golpe,
João Goulart partiu para o exílio e evitou uma luta sangrenta entre reformistas
e golpistas.
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