I.
Ao descrever, num ensaiorecente (breve em português,
em Outras Palavras), a situação tormentosa vivida pela Grécia, o
jornalista Paul Mason, da BBC, recorre à história da Alemanha, às portas do
nazismo. Só uma sucessão de erros crassos, mostra ele, pôde permitir que Hitler
chegasse ao poder. Mas havia algo sórdido por trás destes enganos. Embora não
fosse conscientemente partidária do terror, a maior parte das elites alemãs desejava o
autoritarismo, pois já não conseguia tolerar o ambiente democrático da
república de Weimar.
As circunstâncias são distintas: não há
risco de fascismo no cenário brasileiro atual. Mas é inevitável lembrar de
Mason, e de sua observação sobre a aristocracia alemã, quando se analisa a
espiral de violência que atormenta São Paulo há cinco meses. Em guerra com a
facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), parte da Polícia Militar
está envolvida numa onda de assassinatos que já fez dezenas de vítimas, elevou em quase 100% o índice de homicídios no Estado e aterroriza as periferias.
Pior: a escalada foi iniciada (e é mantida
e aprofundada) por integrantes da própria PM, a força que deveria garantir a
segurança e o cumprimento da lei no Estado. Mas apesar de inúmeras evidências,
o governo do Estado não age para refrear tal atitude. E a mídia omite, ao
tratar da onda de mortes, a participação e responsabilidade evidentes da
polícia. É como se tivessem interesse em manter, em São Paulo, um corpo armado,
imune à lei e ao olhar da opinião pública, capaz de se impor à sociedade e
diretamente subordinado a um governador cujos laços com a direita conservadora
são nítidos.
Para ocultar o papel de parte da PM na
avalanche de brutalidade, a mídia criou um padrão de cobertura. As mortes de
autoria do PCC são noticiadas, corretamente, como assassinatos de PMs.
Informa-se que o número de crimes deste tipo cresce de modo acelerado — já
são 90 vítimas,
este ano. Mas se associa a insegurança que passou a dominar o Estado apenas a
estes atos. Também informa-se sobre parte das mortes praticadas pela PM — seria
impossível escondê-las por completo. No entanto, aceita-se, sempre sem
investigação jornalística alguma, a versão da polícia: morreram “em
confronto”, depois de terem reagido.
Este estratagema permite silenciar sobre
três fatos essenciais e gravíssimos: a) parte da PM abandonou seu compromisso
com a lei e a ordem pública e passou a agir à moda de um grupo criminoso,
colocando em risco a população e a grande maioria dos próprios policiais,
honestos e interessados em cumprir seu papel; b) diante desta subversão do
papel da PM, o comando da corporação e o governo do Estado estão, ao menos,
omissos; c) procura-se preservar este estado, evitando, recorrentemente,
caracterizar a atitude do setor criminoso da polícia e, muito menos, puni-lo.
II.
Algumas iniciativas
permitiram, nos últimos dias, começar a quebrar a cortina de silêncios e
omissões. O jornalista Bob Fernandes, editor-chefe do TerraMagazine, sustentou, num comentário corajoso, em noticiário da TV Gazeta, que havia algo além do crime organizado,
por trás da onda de assassinatos. “Rompeu-se um pacto entre polícia militar e
PCC”, frisou Fernandes — e atribuiu a esta ruptura tanto a “guerra” entre os
dois grupos como a espiral de morte que se seguiu. “Criminosos
matam de um lado? Vem a resposta: alguns, quase sempre em motos, com munição de
uso exclusivo de forças policiais, dão o troco e também matam.”
A fala do editor do Terra Magazine teve o
mérito de romper o consenso que a mídia fabricava, até então, em torno de uma
explicação inconsistente. Mas a que se referiria ele, ao mencionar, em
linguagem quase enigmática, a ruptura de um pacto?
Uma das pistas, para encontrar a resposta,
é seguir o fio da meada da onda criminosa. Quando ela teria começado? Por quais
motivos? Entre o final de maio e o presente, os jornais estão fartos de
notícias sobre os assassinatos, sempre no padrão descrito acima. Mas não é
difícil encontrar um ponto de inflexão, o momento a partir do qual o cenário se
transforma.
Ele situa-se precisamente em 29 de maio.
Nesta data, quando ainda não adotava a confirmação sem checagem das versões da
Polícia Militar, O Estado de S. Paulo registra um
massacre. Seis pessoas foram mortas pela ROTA, uma unidade da PM conhecida pela
truculência. Estavam num estacionamento, próximo à favela da Taquatira, Zona
Leste da capital. Foram vítimas de um comando constituído por 26 policiais. A
própria PM afirmou, na ocasião, que eram integrantes do PCC. Alegou-se que
estariam reunidas (num estacionamento?) para “traçar um plano de resgate de um
preso”. Segundo as primeiras versões, teriam “atirado contra os policiais”.
Apesar de numerosas (segundo a PM, 14 pessoas, das quais três foram capturadas
e cinco fugiram), e “fortemente armadas”, nenhum soldado sequer se feriu.
Esta versão fantasiosa foi desmentida logo
em seguida. Pouco depois da ação policial, um dos mortos “em confronto” seria
executado a sangue frio, por parte dos PMs que haviam participado da operação.
Os assassinos agiram em pleno acostamento da rodovia Ayrton Senna, e em área
habitada. Uma testemunha presenciou o crime e o denunciou, enquanto acontecia,
pelo telefone 190. A sensação de impunidade dos assassinos levou-os a ser
fotografados pela próprias câmeras de vigilância da estrada. Nove dos 26
policiais foram presos,
horas depois. Destes, seis foram soltos em dois dias. Três — apenas os que
teriam praticado diretamente a execução — permaneceram detidos. Não é possível
encontrar, nos jornais, informações sobre sua situação atual.
Atingido, o PCC reagiu recorrendo, embora
em escala limitada, ao método que marcou sua atuação em 2006. Na região de
Cidade Tiradentes, uma das mais pobres da cidade e local de moradia de um dos
mortos, o grupo obrigou a população a um toque de recolher no dia do enterro do comparsa, 31 de maio. Tiveram de fechar as
portas, entre outras, as escolas municipais Adoniran Barbosa e Wladimir Herzog…
Mas, também repetindo o que fizera em 2006, a facção não se limitou a isso.
Começaria, logo em seguida, a longa série de assassinatos de policiais
militares.
No ano passado, 47 PMs paulistas foram
mortos, em serviço ou suas folgas. Não é um número excepcional, para uma
corporação que reúne quase 100 mil soldados, exerce atividade de risco e vive sob tensão permanente (o índice
anual de suicídios é
muito próximo ao das vítimas de homicídio). Em 2012, tudo mudou. Até o
incidente fatídico de 29/5, haviam sido contabilizadas 29 mortes de PMs — pouco
acima da média registrada no ano anterior. Entre 29/5 e 4/11, os ataques
disparam. São 61 novos assassinatos, em apenas cinco meses. Há casos
dramáticos: uma policial morta diante
de sua filha; um garoto assassinado apenas por ser filho de policial, ocasiões em que as próprias
bases da PM são atacadas. Inúmeros relatos narram a situação de pânico vivida
por milhares de soldados honestos, cuja vida foi subitamente colocada em risco
numa “guerra” provocada por uma minoria.
Mas aos poucos — e aqui começa um dos
pontos mais obscuros de todo o episódio –, a PM parece inclinar-se em favor de
sua banda violenta. Além de ter provocado o PCC à luta no final de maio, num
ataque cujo caráter criminoso está demonstrado, a polícia paulista empenhou-se,
nos meses seguintes, em tornar a disputa cada vez mais sangrenta e mais letal
para a população civil.
Alguns episódios são emblemáticos desta
tendência e da barbárie produzida por ela. Em 10 de outubro, por exemplo, um
soldado de 36 anos foi executado em Taboão da Serra, oeste da Grande São Paulo.
Dois homens dispararam seis tiros em seu corpo. Nas horas seguintes, no mesmo
município, nove pessoas foram assassinadas. Duas delas foram vítimas da ROTA
— execuções,
segundo testemunhas. As sete outras, em circunstâncias nunca esclarecidas, mas
muito assemelhadas às descritas por Bob Fernandes, em seu comentário recente.
Poucos dias antes, na Baixada Santista, um outroepisódio, em condições muito
semelhantes, deixou, em cinco dias, um rastro de quinze mortos. Em nenhum
destes casos houve investigações sobre o comportamento dos policiais — nem por
parte de seus pares, nem da mídia…
A esta altura é
perturbador, porém inevitável, traçar um paralelo. Radicalizar ao máximo a
guerra contra o PCC; afogar o “inimigo” em sangue, sem se importar com o risco
de atingir a população como um todo, foi a estratégia que prevaleceu na PM em
2006, quando a força enfrentou pela primeira vez o grupo criminoso. Entre 12 e
20 de maio daquele ano, mais de 500 pessoas foram assassinadas em chacinas e execuções na capital, região metropolitana,
interior e litoral de São Paulo. A grande maioria não tinha relação alguma com
o PCC, como denunciam, desde então, as Mães de Maio.
Adotou-se aparentemente a ideia de que deflagrar terror indiscriminado contra a
população forçaria o grupo criminoso a recuar, temeroso de perder apoio de suas
bases sociais.
III.
Um personagem destacado é comum aos
episódios de 2006 e aos de hoje: o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.
Não estava diretamente à frente do Palácio dos Bandeirantes, durante a primeira
rebelião do PCC (deixara o posto um mês antes, para concorrer à presidência da
República). Mas havia governado o Estado nos seis anos anteriores e executara
uma política de segurança considerada ao mesmo tempo brutal e ineficiente. Sua
ligação com os acontecimentos ficou patente ao abandonar, de modo abrupto, uma
entrevista em que jornalistas britânicos (ao contrário da grande mídia
brasileira) questionaram-no sobre o ocorrido.
Apontado como membro da organização ultra-direitista Opus Dei,
até mesmo por integrantes de seu partido (o PSDB), Alckmin é visto, por parte da elite
brasileira, como uma liderança importante a preservar. As declarações que
tem dado, desde maio, em favor das posições mais belicosas e agressivas, no
interior da PM, são eloquentes.
Falta muito a apurar, na trilha tenebrosa
e caótica para a qual descambou a segurança (?) pública em São Paulo, desde
maio. Por que, após uma tentativa fugaz de investigar ações ilegais e
criminosas de parte de seus integrantes, a PM desistiu do esforço? Que levou a
imprensa — que também denunciou a truculência, num primeiro momento — a
silenciar e a repetir, desde junho, uma versão insustentável? Um setor de
policiais especialmente violento terá conseguido impor sua postura? De que
forma estarão envolvidos o governador e a imprensa?
O certo é que, para interromper a escalada
sangrenta, a sociedade precisa agir — o quanto antes.
Saiba Mais – Filmes:
Salve Geral
Salve Geral (2009), é um filme de
Sérgio Rezende. A história aborda os acontecimentos envolvendo a violência do
Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo, em 2006.
Lúcia (Andréia Beltrão) é
uma viúva de classe média que sonha em tirar o filho Rafael (Lee Thalor), de 18
anos, da prisão. Em suas frequentes visitas à penitenciária ela conhece Ruiva
(Denise Weinberg), advogada do Professor (Bruno Perillo), líder do Comando. As
duas ficam amigas e logo Lúcia é usada em missões ligadas à organização
criminosa. Precisando do dinheiro, ela aceita realizar as tarefas.
Paralelamente o Comando passa por uma luta interna pelo poder, ampliada pelo
confronto dos prisioneiros com o sistema carcerário. Quando o governo decide
transferir, de uma só vez, centenas de presos para penitenciárias de segurança
máxima no interior do estado, o Comando envia a ordem para que seus integrantes
realizem uma série de ataques em pleno Dia das Mães, deixando a cidade de São
Paulo sitiada. Inspirado em fatos verídicos, ‘Salve Geral’ conta uma história
de ficção das mulheres por trás do Comando e mostra que quando a lei e a ética
são postas em questão o que impera é a força. Foi escolhido para ser o representante
brasileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010.
Ano: 2009
Áudio: Português
Duração: 121 min.
Verônica
Verônica (Andréa Beltrão) é uma
professora da rede municipal do Rio de Janeiro. Depois de vinte anos na
profissão, ela encontra-se estressada. Um dia, após o final da aula, ela repara
que ninguém veio buscar Leandro (Matheus de Sá), seu aluno de oito anos. Tarde
da noite, ela decide levar Leandro para casa, ao chegar à favela, descobre que os
pais do garoto foram assassinados e que os assassinos estão atrás dele. Diante
da situação, Verônica decide levar o menino consigo e conta com a ajuda de seu
ex-marido e policial, Paulo (Marco Ricca). Ela procura ajuda e descobre que a
policia também está ligada ao assassinato dos pais do menino. Sem poder confiar
em ninguém, ela decide esconder o garoto.
Assim, Verônica é obrigada
a enfrentar policiais e traficantes para sobreviver. E enquanto procura uma
maneira de escapar com o menino, redescobre sentimentos que estavam adormecidos
na sua vida solitária e difícil.
Direção: Maurício Farias
Ano: 2009
Duração: 91 min.
Nenhum comentário:
Postar um comentário