“Incêndios” (Incendies,
2010) é um filme cruel. Sobretudo, é uma película contra a guerra. Gosto desta
definição, mas não pretendo limitar a sua beleza a uma simplória crítica contra
a guerra. Até porque, não há nada simplório na película de Denis Villeneuve –
pelo contrário. Tanto a complexidade quanto a brutalidade são suas
características mais marcantes, que me permitiram sair do cinema sentindo na
pele a expressão “soco no estômago”.
Existe em “Incêndios” um intrincado jogo
de identidades envolvendo embates religiosos entorpecidos pela política libanesa.
Não somos poupados da crueldade da guerra, nem mesmo da ferocidade da religião
que mata em nome de Deus ou de Alá. Os acontecimentos não são classificados, o
que os torna, portanto, capazes de serem alocados em qualquer período das
longas décadas de conflitos naquela região.
O ponto de partida é o testamento de
Narwal Marwan (Lubna Azabal), no qual seus filhos, os irmãos gêmeos Simon
Marwan (Maxim Gaudette) e Jeanne Marwan (Mélissa Désormeaux-Poulin), se deparam
com o inquietante desejo da mãe:
“Enterrem-me sem caixão, nua e sem orações, com a face voltada para a terra.
Nada de epitáfio para aqueles que não cumprem suas promessas”. Além do
inusitado pedido, os jovens são surpreendidos com a notícia de que eles têm um
irmão e um pai vivos e de que eles devem voltar ao Oriente Médio para
encontra-los. A mãe deixa ainda uma carta aos entes desconhecidos, e pede que
os filhos a entreguem em mãos.
Diante da descoberta, os gêmeos enfrentam
uma crise por perceberem que não conheciam a mulher que acabaram de enterrar –
seus segredos, suas dores e suas amarguras passadas. Simon resiste à ideia de
voltar à Palestina, enquanto Jeanne considera relevante descobrir o
paradeiro da família e cumprir o último desejo de sua mãe. A menina decide,
então, embarcar sozinha ao Oriente Médio, numa viagem cortada por múltiplos
flashes, que conduzem o espectador a diversos períodos da História – ali, os fragmentos
temporais são peças de um quebra-cabeça, montado ao longo da narrativa.
Viagem pelos
horrores da guerra
Simon, por fim, se junta à
odisseia e os dois, aos poucos, começam a descobrir quem de fato foi sua mãe:
ao passo que as múltiplas identidades dela começam a vir à tona, os gêmeos se
deparam com a fluidez de suas próprias personalidades. Enquanto compreendem os
horrores da guerra pelos quais a mãe passou, entram em contato com um amor
profundo e complexo que ela sempre nutriu por ambos. Sentimento que, por tantas
vezes, ficou soterrado pelas dores de outrora e pelo comportamento inexplicável
de uma mulher cuja vida eles só conheceram após sua morte.
O horror vivido por Narwal, sua luta
política e seus anos na prisão, é revertido depois num amor verdadeiro e
profundo por seus filhos. O amor que a guiou, desde o momento do nascimento de
ambos, só fica visível quando o passado é revelado. Porém, todos os
acontecimentos pretéritos estão mesclados com o presente, sobretudo quando
ficam diante de seu pai e de seu irmão. Nós descobrimos juntamente com Simon e
Jeanne toda a dor de sua mãe, e também choramos com eles a cada pequena nova
surpresa. O choro, todavia, não é copioso como em um melodrama; são lágrimas
silenciosas, que seguem conosco para além das paredes do cinema.
O filme termina nas telas e continua em
nós. Os diálogos são fortes e eu diria que em alguns momentos, chegam a ser
violentos. A beleza da obra está também na sábia escolha dos meios pelos quais
a violência é mostrada: o longa fala da guerra sem apelar para cenas de
violência excessiva ou explícita, enquanto o roteiro faz o trabalho de nos
colocar em contato com a complexidade do ser humano, incluindo toda sua
brutalidade inerente. Ao final, estamos nós mesmos diante de Narwal, cúmplices
da dolorosa experiência que ecoa muito além do escuro do cinema.
“Incêndios” (Incendies)
Direção: Denis Villeneuve
Ano: 2010
Duração: 130 minutos
Tamanho: 797 MB
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