Esses estereótipos envolvendo a
“solteirona” vêm de longe. A palavra spinster
(“solteirona”) dá uma pista sobre a principal causa da desvalorização das
mulheres solteiras na Inglaterra do século XVIII. O termo foi usado pela
primeira vez em 1719, na edição inaugural de um jornal chamado exatamente The Spinster. Sob o pseudônimo de Rachel
Woolpack, uma articulista afirma que, em sua origem, a palavra não era
depreciativa. Referia-se “à louvável ‘atividade das mulheres obreiras’” e
significava, literalmente, “fiandeira”, como sugere Ian Watt em seu livro A ascensão do romance: estudos sobre Defoe,
Richardson e Fielding.
Mas àquela altura, com o desenvolvimento
da manufatura têxtil, as solteiras inglesas viam diminuídas a sua importância
nas atividades caseiras de fiar e tecer. Enquanto as casadas iam viver à custa
do marido, as solteironas se viram “inúteis dependentes de alguém” ou obrigadas
a trabalhar fora por baixos salários. Viria daí o sentido pejorativo que
ganharam as spinsters.
A literatura oferecia fartas caricaturas
de solteironas. “Considera-se agora a solteirona como uma maldição que nenhuma
fúria poética consegue superar”, bombardeava o inglês Richard Allestree no
livro The ladies’ calling (algo como
“O chamado das mulheres”), de 1673. Em outras (terríveis) palavras, elas eram
“a mais calamitosa criatura da natureza”.
Na França, ganharam outro nome, também nada lisonjeiro: vieille fille (literalmente, “filha velha”). E apareciam já na literatura clássica do século XVII, em autores como Thomas Corneille, La Fontaine e Molière, embora de forma superficial e como personagens secundários.
Na França, ganharam outro nome, também nada lisonjeiro: vieille fille (literalmente, “filha velha”). E apareciam já na literatura clássica do século XVII, em autores como Thomas Corneille, La Fontaine e Molière, embora de forma superficial e como personagens secundários.
Com as transformações do século XIX, a
“decadência” social das mulheres celibatárias torna-se irreversível. Os
processos de urbanização e industrialização levaram as moças a entrar de forma
mais efetiva no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, diminuía a influência da
Igreja, e assim essas mulheres – que antes tinham como destino certo o convento
– ficaram restritas ao ambiente doméstico, precisando contribuir para as
finanças do lar. Restava às jovens burguesas dedicarem-se a atividades como
governanta e professora, mais aceitáveis para a sua condição social. As mais
pobres engajavam-se também nas atividades de vendedoras dos grandes magazines,
funcionárias dos correios, enfermeiras ou empregadas domésticas.
Como antes, a produção literária
acompanhava e alimentava o folclore em torno das solteironas. A diferença é
que, no século XIX, os autores se preocupavam em aplicar princípios
psicológicos no estudo da sociedade, o que ampliou o número de personagens da vieille fille, diversificou e aprofundou
seus tipos. Muitas delas eram heroínas, vítimas necessárias de uma “seleção
natural” e das circunstâncias. Personagens mais complexas surgiram das penas de
Balzac e do grande historiador francês Jules Michelet, por exemplo.
Nada que as redimisse. Fatores como a
migração masculina, as guerras e os altos custos do matrimônio faziam aumentar
na Europa o número de moças que não conseguiam encontrar marido, principalmente
as instruídas da classe média. Elas passaram a alimentar um verdadeiro exército
de preceptoras e governantas. Muitas iam buscar trabalho em outros países, como
Maria Frieda Kruger Mancini, professora alemã altamente instruída, com 25 anos
de prática de ensino, que veio para o Brasil. Em 1905, ela anunciava no jornal O
Jequitinhonha, de Diamantina (MG), a abertura de cursos de português, francês,
inglês, alemão e italiano, além de lições de piano.
No imaginário brasileiro, as mulheres
solteiras já mereciam atenção desde os tempos da Colônia. Segundo o historiador
Ronaldo Vainfas, as expressões mais usadas para nomeá-las eram “celibatárias” –
“mulher que aspirava a casar-se ou que optara pela castidade sem ingressar em
religião” – e “mulher solteira” – “mulher que nunca se casou”, “mulher que não
tem marido”, “mulher pública”, quase sinônimo de meretriz, embora sem a
conotação profissional.
Mas a ideia de “solteirona” surgiria com
maior força somente no final do século XIX, quando as brasileiras também passam
a ocupar de forma mais efetiva o mundo do trabalho remunerado, espaço até então
predominantemente masculino. Avançavam os setores de prestação de serviços,
comércio e burocracia, abrindo possibilidades de emprego para secretárias,
funcionárias públicas, enfermeiras, vendedoras, datilógrafas, farmacêuticas, assistentes
sociais. A partir da década de 1920, a oportunidade de ingresso em cursos
superiores oferece para as mulheres as carreiras de médica, advogada,
engenheira, promotora e professora.
Motivo de orgulho feminino? Naquela época,
não. Como ocorreu na Europa, o estereótipo da solteirona infeliz e frustrada
começou a se expandir. Afinal, marido e filhos eram elementos obrigatórios para
o ideal de realização da mulher. Um ideal não só culturalmente recomendado, mas
também garantido por lei. O primeiro Código Civil brasileiro, que entrou em
vigor em 1917, definia o casamento como um contrato feito entre “indivíduos
livres” e baseado em obrigações mútuas: o marido tinha por incumbência
sustentar e proteger a esposa; esta, por sua vez, devia-lhe obediência.
Desposada, a mulher se tornava juridicamente incapaz, e só poderia seguir uma
carreira profissional com a autorização do marido.
Havia quem julgasse o casamento e o
trabalho feminino atividades incompatíveis. O estado de Santa Catarina chegou a
criar uma lei determinando que toda professora que viesse a se casar perderia o
emprego. E não foi uma iniciativa isolada. “Deve a professora casar e continuar
no exercício do cargo? Acho que não. O magistério primário, quando bem
compreendido na sua alta missão social e exercido com a convicção profissional
de um sacerdócio, exige renúncias de quem o professa. Uma delas, a meu ver, é o
matrimônio (...) – o casamento é um entrave ao desenvolvimento cabal das
obrigações que o professorado exige da mulher”, defendia um artigo da revista
Semana Ilustrada de 1928, a favor da adoção de uma lei semelhante em Belo
Horizonte.
As artes também contribuíram para a
difusão da imagem da solteirona. Ao longo do século XX, diversos escritores se
dedicaram a essa personagem. Marques Rebelo, em Oscarina (1931), criou Tia
Almira, uma criatura rancorosa e desprezível. Ondina Ferreira deu vida à Tia
Carlota e à Tia Zulmira, em Enganoso é o Coração (1959), e à casta e rígida
Ágata em Chão de Espinho (1955). Em A Primeira Pedra (1953), Heloneida Studart
criou Olímpia, uma quarentona que trabalhava no escritório de uma empresa
americana. Jorge Amado também teve suas solteironas, como as Irmãs Reis de
Gabriela, Cravo e Canela (1960), a Carmosina, simpática funcionária dos
correios, e a beata Cinira, que tinha arrepios sempre que via um homem sem
camisa, ambas de Tieta do Agreste (1977). Ainda mais populares foram as
fofoqueiras irmãs Cajazeiras, criadas por Dias Gomes para a peça teatral “O
Bem-Amado”, nos anos 1960, e depois difundidas por todo o país na novela de
mesmo nome (1973).
Mas antes que as solteironas se tornassem
fenômeno televisivo, duas figuras bastante conhecidas, e de certa forma
contraditórias, se destacaram na literatura brasileira: a bondosa Clotilde,
criação de Maria José Dupré em Éramos Seis, e a independente professora
Conceição, personagem de Rachel de Queiroz em O Quinze.
Publicado originalmente em 1943, o romance
da Sra. Dupré foi leitura obrigatória para toda uma geração. Dois anos depois
já estava em sua quinta edição. Posteriormente, foi publicado na série
“Vaga-lume”, destinada ao público juvenil, e transformado em novela televisiva,
exibida pelo SBT na década de 1990. Narrada pela protagonista Lola, a história
se passa em São Paulo entre os anos de 1914 e 1942. Clotilde, personagem
secundária, é descrita como uma mulher religiosa, prendada, corajosa, cheia de
iniciativas, mas que vive em função da mãe doente, das irmãs casadas e dos
sobrinhos. A personagem é contraposta à irmã Lola, que tem “tudo”: casa
própria, marido e quatro filhos. Clotilde não tem nada, mas não é uma “inútil
dependente”. Ela sobrevive de seus próprios recursos como doceira. A personagem
parece ter nascido para celibatária, pois não há no romance nada que justifique
sua solteirice. Clotilde é a solteirona funcional da família brasileira, aquela
que foi “reservada” para cuidar dos sobrinhos e dos pais idosos.
Já Conceição não se enquadra no perfil da
solteirona tradicional. Até porque era uma personagem de Rachel de Queiroz. Filha
de uma família da aristocracia rural nordestina, a autora causava polêmica por
suas posições políticas e por um feminismo avant la lettre. Lançou O Quinze aos
19 anos (1931), com enorme repercussão nacional. Em seus romances figuram as
personagens femininas mais radicais da época, como a própria Conceição, que
“dizia alegremente que nascera solteirona”. Como tantas mulheres daquele
período, era uma professora que vivia na cidade, e embora pertencesse a uma
família tradicional do sertão, sobrevivia com seus próprios recursos. Alegre,
bonita, benevolente, inteligente e culta, interessava-se por assuntos como
feminismo e socialismo. Pelas leituras que fazia, por sua formação escolar e
profissional, pela “liberdade” e autonomia financeira de que desfrutava,
Conceição era exigente na avaliação dos pretendentes a marido. “Nunca achei
quem valesse a pena”, repetia sempre. O celibato foi sua escolha, como uma
forma de assegurar a liberdade.
Mulheres como a professora instruída e
emancipada de Rachel de Queiroz, ao contrário da tia funcional Clotilde, eram
vistas como um obstáculo ao sucesso e à plena vigência dos modelos desejados de
mãe/esposa/dona-de-casa. As solteironas eram um elemento desestabilizador. Não
só recusavam os papéis destinados a elas, mas transitavam livremente pelos
espaços de trabalho, governando suas vidas e seus próprios bens. Por isso eram
retratadas como indesejáveis: incapazes de se converter na “verdadeira mulher”,
“ficaram para tia”, “torceram a natureza”, viraram “facão”. Era principalmente
para estas que se dirigiam os discursos de médicos, literatos, advogados e
religiosos, definindo a solteirona como ser desprezível, de quem se devia ter,
no máximo, misericórdia.
As pressões feministas a partir dos anos
1960 tornaram o casamento mais igualitário. Duas leis contribuíram bastante
para isso: o Estatuto da Mulher Casada (1962) e a Lei do Divórcio (1977). A
primeira aboliu da legislação o artigo que afirmava a incapacidade da esposa
perante a Justiça, estabelecendo, entre outras coisas, o princípio do livre
exercício de profissão. A segunda permitia o fim da sociedade conjugal. A
Revolução Sexual, também nos anos 1960, criou condições para que as mulheres
aos poucos se libertassem da rigidez de valores como a virgindade e a castidade.
Por fim, a criação da pílula anticoncepcional possibilitou a prática sexual
fora do casamento sem o risco de uma gravidez.
Nestas condições, a imagem da solteirona
começava finalmente a perder sua razão de ser. Ao contrário do que ocorreu com
nossas mães e tias, o casamento e a maternidade estão deixando de ser o
principal projeto de vida da mulher. Se antes o sinônimo de felicidade e de
realização pessoal era encontrar um bom marido, ter uma casa confortável e
filhos bonitos e educados, hoje grande parte das mulheres deseja e prioriza a
formação escolar, a carreira profissional e a vivência de variadas
experiências. Marido e filhos aparecem em segundo plano, e, em certos casos, há
mesmo uma rejeição à vida conjugal. As estatísticas têm mostrado que, cada vez
mais, as brasileiras se casam mais tarde e muitas sequer desejam ter filhos.
O próprio mercado já
percebeu um bom filão nesta mudança de comportamento. Construtoras investem em
prédios de apartamentos menores com serviços especializados. Supermercados
apostam em porções e pratos individuais. Agências de turismo montam pacotes
para viajantes solitários. Foi criado até o “Dia do Solteiro”, 15 de agosto. Em
2007, as propagandas, os jornais e cartões comemorativos anunciaram que a data
seria dedicada a se “badalar” e celebrar a solteirice.
A solteirona de hoje pode ser “bonitona e
gostosona”, como diz a música de uma famosa dupla sertaneja, a moça
independente das piadas, que se recusa a ter marido, a mulher livre que pode
“ficar com quem quiser”, sem nenhum constrangimento. Ao contrário de outras
épocas, muitas mulheres – como fez a precursora professora Conceição, de Raquel
de Queiroz – assumem orgulhosamente a condição de solteironas. Com o tempo, a
recatada “tia velha” será apenas uma foto desbotada na parede...
*Cláudia de Jesus Maia
é professora da Universidade Estadual de Montes Claros e autora da tese A
invenção da solteirona: conjugalidade moderna e terror moral – Minas Gerais
1890-1948 (UNB, 2007).
Saiba Mais -
Livros:
DAUPHIN, C. “Mulheres
sós”. In: História das mulheres no Ocidente. O século XIX. Porto: Afrontamento;
São Paulo: Ebradil, v.4, 1991.
FONSECA, C. “Solteironas
de fino trato: reflexões em torno do (não) casamento entre pequeno-burguesas no
início do século”. Revista Brasileira de História. São Paulo: v.9, n.18, 1989.
PERROT, M. “À margem:
solteiros e solitários”. In: História da vida privada no Ocidente: o século
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, v.4, 1991.
WATT, Ian. A ascensão do
romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
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