Fotografias de Militão de Azevedo revelam a trajetória da relação ambígua entre as amas-de-leite e as crianças de seus senhores.
Rafaela de Andrade Deiab
No entanto, foram inúmeras as gerações que
se formaram embaladas no colo das escravas domésticas, amas-de-leite, mães
pretas. Essa relação social criada no cenário da escravidão imortalizou-se em
inúmeros retratos por todo o Brasil. O fotógrafo Militão Augusto de Azevedo
(1837-1905) fez muitas dessas imagens em seu estúdio em São Paulo. Ainda jovem, começou sua carreira de retratista
como aprendiz no ateliê Carneiro & Gaspar, o qual veio a comprar em
1875, alterando-lhe o nome para Photographia Americana. Por esses dois
ateliês passaram por volta de 12 mil pessoas, entre 1862 e 1885, cujos retratos
ainda se preservam em seis álbuns, que funcionavam como catálogo dos negativos
de Militão. Essa indústria de retratos, que se estabiliza no país na segunda
metade do século XIX, trouxe certos padrões que se repetiam nas variadas
fotografias, fosse em seus formatos (como no clássico carte de visite, com
imagens colocadas em suporte rígido de cartão), nos paramentos (fundo, móveis,
tapetes) e também nas posições dos clientes. No entanto, alguns desses esquemas
que chegam junto com a técnica fotográfica, supostamente neutra, são relidos em
diferentes contextos; e isso fica evidente nas imagens de amas com
crianças.
A mãe segurando a criança junto
ao rosto, apoiando-lhe a cabeça, ou mesmo as costas, com as mãos, era um padrão
internacional da época para fotografias com bebês. Isso porque, em função da
baixa sensibilidade do negativo, o tempo de exposição era muito longo (por
volta de um minuto), sendo complicado manter as crianças imóveis. Aproximar as
crianças junto ao rosto e segurá-las pelo dorso era a maneira de obter,
portanto, uma postura estática. Mas esse modelo de pose, trazido da Europa
juntamente com a fotografia e fotógrafos, foi absorvido segundo a cultura
local, de modo que, em muitas imagens (como as apresentadas neste artigo), uma
negra posa com a criança branca. Ou seja, em poses internacionalmente indicadas
para unir nas fotos mães e filhos, na São Paulo de meados do século XIX, surgem
mães pretas acompanhadas de filhos brancos, termos próprios de um contexto
marcado pela escravidão doméstica, que promoveu múltiplas relações entre
senhores e escravos.
Nos retratos aqui reproduzidos, a ama
e o bebê estão no centro e no mesmo plano: ambos eram o foco da imagem. A negra
responsável pela amamentação e pelos cuidados com a criança era sua companhia
natural nessas fotos de 1870 e 1876. Estando mais habituados com elas,
diminuía-se o risco de que os bebês ficassem inquietos durante a feitura do
retrato. Além disso, essas fotografias, provavelmente encomendadas por famílias
senhoriais, propagandeavam seu status social apresentando sua escravaria em
trajes finos da moda. Muitas vezes as negras apresentavam uma estética próxima
à das senhoras brancas: cabelos repartidos, brincos, colares e vestido com
colarinho alto em renda, o que pode ser observado na imagem de Militão.
Nos anúncios de compra e venda de
escravos em jornais, a habilidade no trato com as crianças é elemento de
destaque na propaganda das escravas, mostrando que esse cuidado extremado era
esperado e desejado pelas famílias: “Mulatinha. Nesta tipografia se dirá quem
vende uma mulatinha com sete para oito anos de idade, com princípios de costura
e muito jeitosa para carregar crianças (Correio Paulistano,
22/02/1865)”; “Aluga-se uma crioula, sadia, muito própria para tratar de
crianças, por ser muito carinhosa. Já sabe costurar, e engomar alguma cousa,
sem vício nenhum (Correio Paulistano, 06/01/1865)”.
Gilberto Freyre, em seu livro Casa-grande
& senzala, deu muito destaque ao papel das amas-de-leite, mucamas,
negras velhas ou, ainda, mães pretas produtoras de laços sentimentais com seus
filhos brancos, e toda a família de seus senhores. Segundo o autor
pernambucano, elas teriam sido, até mesmo, grandes contribuintes para a
formação da cultura mestiça brasileira, uma vez que adocicavam ou amolengavam a
cultura portuguesa, então transmitida por elas às crianças. Assim, as histórias
lusitanas que contavam nos serões eram adaptadas, tinham seus personagens
mudados, e os cenários passavam a conter uma cor local, tornando-se mais
compreensivos para os infantes do que as distantes paisagens europeias. Além
disso, elas ainda davam outro ritmo às mesmas canções de ninar da tradição
portuguesa que embalaram gerações. Tinham cuidados com os pequenos que iam da
higiene do corpo ao resguardo espiritual, por meio de simpatias, benzeduras e
mezinhas; preparavam-lhes comidas especiais, os ensinavam a rezar, além de
nutri-los com seu próprio leite.
Mas essa relação entre mãe preta e
filho branco não se constituía apenas de modo idílico. Para ter condições de
aleitar um filho branco, era necessário que a escrava tivesse engravidado
recentemente, tendo, portanto, também um filho natural. Este último era, muitas
vezes, preterido diante do filho branco, quando não vendido ou levado para
doação nas rodas dos conventos. Além disso, as amas escravas eram obrigadas a
amamentar por longos períodos, sendo levadas em ocasiões não raras a um
profundo esgotamento físico. Esse mercado do dito “leite mercenário” também
aparece nos anúncios dos jornais: “Escrava e filho. Quem quiser comprar uma
mulata muito moça, sem vícios, sabendo cozinhar, lavar e engomar e estando com
um filho de dois meses e abundante leite, nesta tipografia se dirá quem vende (Correio
Paulistano, 05/02/1865)”; “Ama-de-leite. Precisa-se de uma que seja sadia:
prefere-se cativa, sem filho (A Província de São Paulo, 14/09/1880)”.
Esse segundo anúncio, além de revelar
a cruel preferência por uma escrava recém-parida, com leite, mas sem filhos,
indica ainda um contexto já um tanto modificado, em que há clara preferência
por negras cativas. Ou seja: nesse momento há amas no mercado que não são mais
escravas. Esses novos termos são sinais de grandes modificações de referências
culturais já sentidas nos anos 1880, marcados pela progressiva derrocada do
sistema escravista e início da imigração para o estado de São Paulo. A
incorporação da mão de obra imigrante e branca trazia naquele momento
transformações no mercado das amas, articuladas a alterações na incorporação de
negros e escravos na sociedade como um todo.
Com a modernização acelerada e com a
disseminação dessas teorias, a escravidão começa a ser malvista no Brasil, e o
elemento negro torna-se sinal daquele passado retrógrado que não convém ser
mais mostrado nos retratos com os bebês. Dessa maneira, as amas negras passam a
existir nas fotografias como rastros: uma mão, um punho, até serem
completamente banidas das imagens. Os avanços da técnica fotográfica ajudam
essa eliminação, ao possibilitar um tempo de exposição consideravelmente menor
para a tomada do retrato, o que permitia às crianças serem fotografadas
sozinhas.
Nesse sentido, a série de fotografias
de Militão de Azevedo deixa evidente o movimento de representação da
escravidão: inicialmente (de 1860 até cerca de 1870), valorizadas e
naturalizadas pela sociedade, as negras eram expostas junto aos bebês de seu
senhor, representando até mesmo, pela sofisticação de sua aparência, o status
da casa da qual era propriedade. Já no fim do período escravista, passa a não
ser mais de “bom-tom”, tampouco adequado, associar os filhos da elite branca a
negras escravas. Isso porque, nesse momento, a escravidão passa a ser sinônimo
de uma instituição retrógrada que não se encaixa nas novas ambições de um
Brasil civilizado, moderno e branco.
Essa série de retratos das amas
expressa, dessa maneira, uma bela metáfora do que fora a escravidão no Brasil:
a princípio mostrada com orgulho, de rosto inteiro, depois escondida, em
segundo plano, desfocada e retocada, até ser completamente retirada do quadro
nacional. No entanto, mesmo encoberta, ela persistia nos hábitos consolidados
durante três séculos. Hábitos esses cultivados pela experiência da relação
íntima entre amas e crianças, que transmitiu uma memória de histórias, músicas,
receitas e cuidados com o corpo e o espírito que reverberam até os dias de
hoje.
É muito ambígua, portanto, essa
relação social entre mãe preta e filho branco, expressa no laço afetivo entre
pessoas pertencentes a diferentes status e hierarquias. Essas barreiras sociais
foram, no entanto, transpostas no cotidiano do espaço privado do lar quando a
negra e escrava passa a ter poder sobre o filho branco de seu senhor e, até
mesmo, autoridade dentro da casa senhorial. A tensão se revela também na
assimilação da escrava na família, nesse parentesco afetivo, mas sempre
qualificado como uma incorporação de segunda ordem. Tal experiência
contraditória com as amas, que escasseou no tempo, foi, talvez, uma das únicas
a permitir um verdadeiro reconhecimento do “outro” escravo, um “outro” negro.
Rafaela de Andrade Deiab é mestranda do programa de pós-graduação em antropologia social da universidade de São Paulo (USP)
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional – Ano 1- Edição nº 4 - outubro 2005
Saiba mais - Bibliografia
FREYRE, Gilberto.
Casagrande & senzala. São Paulo: Global Editora, 2003.
ALENCASTRO, Luiz
Felipe de (org.) História da vida privada no brasil. Vol. 2. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998,
GRANGEIRO,
Cândido Rodrigues. As artes de um negócio: a febre photographica em São
Paulo 1862-1886. Campinas: Editora Mercado de Letras, 1997.
Saiba Mais: Link
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ResponderExcluirO poder das letras - Medo de alfabetização
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Guarani, a língua proibida.
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Muito obrigada por compartilhar a sua pesquisa
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