“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 4 de novembro de 2012

Jango e Kennedy trocam cartas na “crise dos mísseis” em Cuba

Presidentes dos EUA e Brasil debatem o grave momento mundial diante da presença de armas nucleares em Cuba 
Por Carlos Fehlberg 
     Numa hora delicada para a política internacional, as posições dos dois presidentes, John Kennedy e João Goulart, em outubro de 1962, há quase 50 anos, são conhecidas através de uma troca de correspondências diplomáticas. Era um dos momentos mais tensos da guerra fria, quando Estados Unidos e União Soviética estiveram muito perto de um conflito. A presença de armas nucleares em Cuba criou o que passou a ser chamada de crise dos mísseis. Kennedy tratou de ouvir outros países antes de uma decisão mais forte, daí a troca de cartas entre ele e o então presidente brasileiro, João Goulart. A posição de Jango gerou uma das correspondências importantes da diplomacia brasileira. E a troca de cartas entre os dois presidentes reflete a preocupação do momento e constituem documentos históricos importantes.
De Kennedy a Jango
      “Meu caro Senhor Presidente: Encaramos a necessidade e oportunidade neste hemisfério de determinar pela nossa ação conjunta nos próximos dias, o que pode ser todo o futuro da humanidade sobre esta terra. Vossa Excelência terá a oportunidade de constatar pela minha declaração ao povo norte-americano a natureza da grave ameaça ao hemisfério Ocidental que o regime atual em Cuba permitiu à URSS estabelecer em território cubano. Porém não se trata somente de ameaça militar aos EUA. Este comportamento da URSS apesar dos nossos bem conhecidos e sempre reiterados acordos de defesa e segurança do hemisfério, não leva em conta, pela sua continuidade, minha advertência de 4 de setembro, bem conhecida por eles. Os repetidos desmentidos soviéticos, seja em declarações públicas ou em conversações privadas, de que tal ação fosse empreendida ou mesmo estava sendo contemplada, tornam, perfeitamente evidente que os soviéticos estão lançando um desafio ousado e belicoso a todos os povos livres. Devemos responder a esta ação arrogante com uma determinação unida. Senão a URSS encaminhar-se-á a violações sempre mais flagrantes das exigências da paz internacional e da liberdade até chegarmos ao momento em que não teremos muita escolha senão a rendição completa ou o desencadear de um holocausto nuclear. Devemos tomar posição hoje; o mundo inteiro está nos olhando. Assuntos sobre os quais nós no hemisfério possamos ter desacertos marginais como também divergências políticas entre nossos povos tornam-se insignificantes diante dessa ameaça à paz. Espero que nessas circunstâncias Vossa Excelência sentirá que o seu país deseja unir-se ao nosso, expressando os seus sentimentos ultrajados frente a este comportamento cubano e soviético, e que Vossa Excelência achará por bem expressar publicamente os sentimentos do seu povo. Espero também que Vossa Excelência Vossa Excelência haverá de concordar comigo na necessidade urgente de convocar uma reunião imediata do Órgão de Consulta do Sistema Interamericano sob o Pacto do Rio de Janeiro. Os EUA proporão àquele órgão, uma vez reunido, a adoção de uma resolução para tratar eficazmente desta nova e perigosa situação. O meu embaixador poderá lhe fornecer o texto proposto. É claro que a colocação de armas ofensivas com capacidade nuclear em Cuba “coloca em perigo a paz e segurança do Continente” nos termos do art. 6 daquele pacto. Estou certo de que Vossa Excelência concorda com a urgência de tal resolução. Estou também pedindo uma reunião urgente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Dei instruções ao embaixador Stevenson para apresentar, em nome dos Estados Unidos, uma resolução que peça a retirada das bases de foguetes e de outras armas ofensivas em Cuba, sob a supervisão de observadores das Nações Unidas. Eu espero que Vossa Excelência dê instruções a seu representante em Nova York para trabalhar ativamente conosco e fale diretamente em apoio ao programa na Organização das Nações Unidas. Quero convidar Vossa Excelência para que as suas autoridades militares possam conversar com os meus militares sobre a possibilidade de participação em alguma base apropriada com os EUA e outras forças do hemisfério, de qualquer ação militar que se torne necessária pelo desenvolvimento da situação em Cuba. Tenho confiança de que, por intermédio de uma aproximação comum a esta ameaça, por meio de medidas sábias, que combinem a firmeza e a limitação necessária à natureza da crise, haveremos de marchar a um novo marco de progresso para o mundo livre com reduzido receio de dominação do mundo pelo comunismo internacional. Neste termo, após indicar os perigos à paz mundial do rumo que a URSS tem seguido em Cuba, escrevi ao senhor Kruchev pedindo-lhe que sejam adotadas medidas que haverão de nos permitir retornar o caminho de negociações pacíficas”.
John Kennedy
(22-10-1962. tradução informal possivelmente elaborada pela Embaixada dos EUA)

E Jango responde:
“Brasília, 24 de outubro de 1962
      Recebi com apreço e meditei com atenção a carta em que Vossa Excelência houve por bem comunicar-me ter sido constatada a presença em território cubano, de armas ofensivas capazes de constituírem ameaça aos países deste hemisfério. Nessa carta, Vossa Excelência também solicitou o apoio do Brasil para as medidas que o seu governo proporia ao Conselho de Segurança da OEA e ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, com fundamento nas disposições do Tratado do Rio de Janeiro e da Carta de São Francisco.
Já é do seu conhecimento o pronunciamento, no primeiro desses Conselhos, do delegado do Brasil. Quero, entretanto, aproveitar o ensejo para fazer a Vossa Excelência, com a franqueza e sinceridade a que não apenas me autorizam, mas me obrigam o meu apreço pessoal por Vossa Excelência e a tradicional amizade entre nossos povos, algumas considerações, tanto sobre a posição brasileira em face do caso de Cuba, como sobre os rumos que recentemente vêm prevalecendo nas decisões da OEA.
     Vossa Excelência conhece a fidelidade inalterável do Brasil aos princípios democráticos e aos ideais da civilização ocidental. Dentro dessa fidelidade, nossos países já combateram lado alado em duas guerras mundiais, que nos custaram o sacrifício de inúmeras vidas e nos impuseram, proporcionalmente e de modo diverso, pesados prejuízos materiais.
     Os sentimentos democráticos do povo brasileiro e de seu governo são hoje por ventura, maiores e mais arraigados do que no passado, porque com o volver dos anos e a aceleração do desenvolvimento econômico, fortaleceram-se e estabilizaram-se as nossas instituições políticas, sob o princípio da supremacia da lei. Era natural que paralelamente ao fortalecimento da democracia se desenvolvesse o sentido de responsabilidade internacional, levando-nos a participar dos acontecimentos e problemas não apenas regionais, mas mundiais, para nos situarmos em face deles à luz dos nossos interesses nacionais e ditames da nossa opinião pública.
     No discurso que tive a honra de pronunciar perante o Congresso norte-americano em 4 de abril de 1962, procurei resumir e enunciar com clareza os aspectos dominantes de nossa posição nos seguintes termos:
“A ação internacional do Brasil não responde a outro objetivo senão o de favorecer, por todos os meios ao nosso alcance, a preservação e fortalecimento da paz. Acreditamos que o conflito ideológico entre o Ocidente e Oriente não poderá e não deverá ser resolvido militarmente, pois de uma guerra nuclear, se salvássemos a nossa vida, não lograríamos salvar, quer vencêssemos, quer fôssemos vencidos, a nossa razão de viver. O fim da perigosa emulação armamentista tem de ser encontrado através de convivência e da negociação. O Brasil entende que a convivência entre o mundo democrático e o mundo socialista poderá ser benéfica ao conhecimento e à integração das experiências comuns, e temos a esperança de que esses contatos evidenciem que a democracia representativa é a mais perfeita das formas de governo e a mais compatível com a proteção ao homem e a preservação de sua liberdade.”
     A defesa do princípio de autodeterminação dos povos, em sua máxima amplitude, tornou-se o ponto crucial da política externa do Brasil, não apenas por motivos de ordem jurídica, mas por nele vermos o requisito indispensável à preservação da independência e das condições próprias sob as quais se processa a evolução de cada povo. É, pois, compreensível que desagrade profundamente à consciência do povo brasileiro, qualquer forma de intervenção num estado americano inspirada alegação de incompatibilidade com o seu regime político, para lhe impor a prática do sistema representativo por meios coercitivos externos, que lhes tiram o cunho democrático e a validade. Por isso o Brasil na VIII Consulta de chanceleres americanos se opôs à imposição de sanções ao regime cubano, tanto mais que não eram, apontadas então, como só agora veio a suceder, fatos concretos em se pudesse prefigurar a eventualidade de um ataque armado.
     Ainda, agora, entretanto, Senhor Presidente, não escondo a Vossa Excelência a minha apreensão e a insatisfação do povo brasileiro pelo modo por que foi pleiteada e alcançada a decisão do Conselho da OEA, sem que se tivesse preliminarmente realizado, ou pelo menos deliberado, uma investigação in loco, e sem que se tivesse tentado através de uma negociação, como a que propusemos em fevereiro do corrente ano, o desarmamento de Cuba com a garantia recíproca de não invasão.
     Receio que nos tenhamos abeirado sem, antes esgotar todos os recursos para evitá-lo, de um risco que o povo brasileiro teme tanto como o norte-americano: o de guerra nuclear. E é na atuação de Vossa Excelência, no seu espírito declaradamente pacifista, que depositamos a esperança de que não sejam usadas contra Cuba medidas militares capazes de agravar o risco já desmedido da presente situação. Para tudo que possa significar esforço de preservação de paz, sem quebra de respeito à soberania dos povos, pode Vossa Excelência contar com a colaboração sincera do governo e do povo do Brasil.
     Não quero, porém, encerrar esta carta, senhor Presidente, asem acrescentar às considerações nela feitas a expressão de meus receios sobre o futuro imediato da OEA. Nos últimos tempos observo que as suas decisões vêm perdendo autoridade à medida que se afastam da correta aplicação das suas próprias normas estatutárias, e que são tomadas por maioria numérica com injustificável precipitação. A isso cabe acrescentar a tendência para transformar a Organização num bloco ideológico intransigente, em que, entretanto, encontram o tratamento mais benigno os regimes de exceção de caráter reacionário.
Permito-me pedir a atenção de Vossa Excelência para a violação do Art. 22 da Carta de Bogotá, que se está correndo o risco de cometer para evitar a adesão de novos Estados por motivos de ordem ideológica.
Permito-me ainda recordar a aplicação imprópria da Resolução H de Punta del Este sobre a vigilância e defesa social, que não autoriza a Organização a encomendar investigações sobre a situação interna de nenhum país, para evitar que se firam os melindres de Estados soberanos, e que agora se pretende abusivamente invocar justamente para execução de uma investigação dessa natureza. A esses casos acrescento o da criação do Colégio Interamericano de Defesa. Este órgão não pode merecer senão a nossa simpatia e cooperação, desde que se limite a apreciar problemas técnicos e de segurança externa, mas seus efeitos podem ser negativos se a titulo de problemas de segurança interna passar ele a estudar questões de competência privativa dos estudos sobre as quais convém que os militares recebam uma formação e orientação puramente nacionais.
     Estou certo de que Vossa Excelência compreenderá as razões de minha apreensão. O Brasil é um país democrático, em que o povo e o governo condenam e repelem o comunismo internacional, mas onde se fazem sentir ainda perigosas pressões reacionárias, que procuram sob o disfarce do anticomunismo defender posições sociais e privilégios econômicos, contrariando desse modo o próprio processo democrático de nossa evolução. Acredito que o mesmo se passa em outros países latino-americanos. E nada seria mais perigoso do que ver-se a OEA ser transformada em sua índole e no papel que até aqui desempenhou, para passar a servir a fins ao mesmo tempo anticomunistas e antidemocráticos, divorciando-se da opinião pública latino-americana.
     Veja Vossa Excelência, senhor Presidente, nestas considerações, que pretendia desenvolver pessoalmente, ao grato ensejo de sua visita ao Brasil, uma expressão do propósito de melhor esclarecimento mútuo sobre as aspirações e as diretrizes do povo brasileiro.
     Renovo a Vossa Excelência a certeza de minha melhor estima e apreço”.
João Goulart
(Íntegra dos dois textos foi publicada no livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira “O governo João Goulart”.)

A tensão
     A crise dos mísseis terminaria domingo 28 de outubro de 1962, quando após os difíceis, tensos e longos entendimentos entre Kennedy e Kruschev, o governo soviético divulgou um comunicado. O governo russo, além de instruções anteriores sobre a interrupção do trabalho nos locais de construção de armas em Havana, dava nova ordem para desmontar as descritas como ofensivas, encaixotá-las e trazê-las de volta à União Soviética. Mas até chegar a essa decisão houve muito jogo diplomático com negociações em meio a um quadro de tensão. E Kennedy comunicou-se com Kruschev várias vezes, buscando e encontrando saídas. A temida terceira guerra era evitada.

Saiba Mais – Filmes:
Treze Dias Que Abalaram o Mundo
O filme relata a crise dos mísseis de Cuba. Em outubro de 1962, fotografias aéreas tiradas pelos aviões americanos que espionavam regularmente Cuba. Nessas fotos são detectados mísseis de origem soviética sendo instalados a poucas milhas da Flórida. Armas dotadas de ogivas nucleares, de médio e longo alcance que, instaladas nas terras de Fidel poderiam detonar as principais cidades do Tio Sam em poucos minutos. E o pior, sem tempo para reações de defesa ou ataque por parte das autoridades norte-americanas.
A informação restrita aos círculos mais altos da cúpula governamental norte-americana é confirmada pelo movimento de embarcações e construção de uma base em território cubano verificadas através de novas fotos. O que fazer?
"Treze dias" mostra os bastidores políticos norte-americanos quando se discutia como reagir a atitude dos soviéticos e dos cubanos. Personagens de vulto desse momento da história americana como John e Bobby Kennedy, Kenny O´Donnell (Kevin Costner), Robert MacNamara, Adlai Stevenson e a alta cúpula militar são os protagonistas de toda a trama. Manchetes de jornal de época e imagens das discussões na ONU permeadas por aparições em preto e branco do jornalista Walter Cronkyte falando dos acontecimentos aumentam ainda mais o nervosismo em relação ao desfecho dos desencontros entre russos e americanos.
A possibilidade de um conflito nuclear e, consequentemente, a destruição do planeta servem como fio condutor. Eletrizante do começo ao fim.
http://www.youtube.com/watch?v=1hW7PgbOdFcDireção: Roger Donaldson 
Ano: 2000
http://ul.to/ou80orhqÁudio: Português
Duração: 145 minutos

Che
O filme “Che” tem cerca de quatro horas de duração e é dividido em duas partes. Filmado em 2008, e dirigido por Steven Soderbergh, é uma co-produção de EUA, França e Espanha.
O roteiro é assinado por Peter Buchman, que baseou a história no livro de memórias de Ernesto Che Guevara. O personagem de Che Guevara é protagonizado pelo ator Benício Del Toro, vencedor do prêmio de melhor ator do Festival de Cannes.
O elenco ainda conta com Santiago Cabrera que interpreta Camillo Cienfuegos, Demián Bichir que interpreta Fidel Castro, e Rodrigo Santoro como Raul Castro.
O filme inicia quando Fidel e Che se conhecem num jantar familiar, decidem lutar juntos pela independência social de Cuba. Em 26 de novembro de 1956, o comandante Fidel segue de barco para Cuba acompanhado pelos rebeldes, entre eles Che Guevara, com o objetivo de lutar contra a ditadura de Fulgêncio Batista.
Che aprende a lutar no método de guerrilha, de médico é promovido a comandante e herói revolucionário.
A segunda parte do filme aborda os últimos momentos de Che Guevara na Bolívia. O filme, desde a primeira parte, é intercalado com momentos de Che Guevara em Nova York, onde concedeu entrevistas, aparições públicas e participou da convenção internacional da ONU.
As sequências em Nova York foram filmadas em preto e branco, expressando um caráter documental ao filme. O filme Che, além de cenas de ação, também mostra um comandante intelectual inspirado em ideais socialistas e que incentiva os seus comandados a respeitar os trabalhadores cubanos e a estudar.
Direção: Steven Soderbergh
Ano: 2008
Áudio: Português
Duração: 268 minutos
Che parte 1: O Argentino
Che parte 2: A Guerrilha
http://ul.to/glzfldqg

2 comentários:

  1. A superioridade de Jango em relação a compreensão sóbria e honesta dos princípios que orientam a democracia burguesa é notória, embora escondida por detrás de belas palavras esteja uma incapacidade de agir, como se verá em 64 diante do golpe, presente, por outro lado, por detrás do discurso de Kennedy. É um documento e tanto, cujo conteúdo expressa de maneira cabal o comprometimento com a democracia que João Gulart tinha, a ponto de levá-la aos seus extremos, muito mais do que os EUA estavam dispostos.

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    1. Vale apena ler: http://act14-anjovida.blogspot.com.br/2012/09/especial-o-golpe-de-1964_28.html

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