“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Uma bomba na consciência da nação

Ocorrido no governo Figueiredo, em 1981, e até hoje impune, o atentado do Riocentro foi um dos episódios mais conturbados, contraditórios e vergonhosos da história militar do país.

Maria Celina D'Araujo

               O atentado do Riocentro, ocorrido em 30 de abril de 1981, tornou-se a mais conhecida ação terrorista da direita armada, durante a ditadura militar que vigorou no país de 1964 a 1985. Marcado do começo ao fim pela impunidade, o episódio encerrou o ciclo de atentados que inquietaram o Brasil, numa demonstração de força e falta de escrúpulos dos setores que se opunham à liberalização do regime militar e à desmontagem da rede autônoma de órgãos de repressão que se instalara dentro das Forças Armadas no início dos anos 70.

              Quando assumiu a Presidência da República, em 15 de março de 1974, o general Ernesto Geisel trouxe na sua agenda a determinação de iniciar um processo de transição democrática, que à época se chamou "abertura". Geisel sucedia ao general Emílio Garrastazu Médici, que governou o país no período mais duro de repressão à oposição, armada ou não. Foram os anos da "guerra suja", expressão que os militares cunharam para justificar os métodos violentos e arbitrários pelos quais combateram os ideais e as ações de brasileiros que discordavam do governo e que ousaram enfrentá-lo.

               Nas palavras do novo presidente, a abertura deveria ser "lenta, gradual e segura", ou seja, um processo de transição direcionada para a retomada da normalidade democrática sem que os militares perdessem o controle do ritmo e da direção da mudança. Iniciava-se assim uma transição pelo alto, isto é, controlada pela elite militar que não estava disposta a ser cobrada pelos "excessos" do passado. Haveria redemocratização, mas não haveria revanchismo. Os militares não iriam para os bancos dos réus, como aconteceu anos mais tarde na Argentina.

               Mesmo com esses cuidados para preservar a imagem da ditadura e ignorar seus crimes, setores das Forças Armadas mais identificados com o sistema repressivo não aceitaram a ideia de mudança. Começou então uma nova etapa do conflito dentro do próprio regime - opondo setores da chamada linha dura ao governo - e iniciava-se uma novidade da ditadura: o terrorismo de direita contra alvos indiscriminados. Atentados contra pessoas e instituições, bombas colocadas em bancas de jornais e outras ações do tipo eram levadas a cabo com o intuito de desestabilizar o governo, intimidar a oposição democrática e, não poucas vezes, atribuir esses crimes a militantes de esquerda.

               Para conter a falta de disciplina e a crise de autoridade dentro da instituição militar, Geisel demitiu, em dezembro de 1978, o seu ministro do Exército, general Silvio Frota, expoente da linha dura e anticomunista radical que acobertava, direta ou indiretamente, as iniciativas discricionárias da direita. Mas mesmo assim os atentados continuaram. O último deles foi o do Riocentro, que manchou de forma indelével a instituição militar. Até o presente, paira no ar a desconfortável certeza de que a justiça não foi feita em relação aos agentes militares que, agindo clandestinamente, colocaram em risco a vida de milhares de pessoas, jovens na maioria. A Justiça Militar, no voto de alguns ministros, optou pela impunidade.

               Quando do atentado, o Brasil era governado pelo general João Batista Figueiredo, que se propusera a dar continuidade ao projeto de abertura política. Vinte mil pessoas assistiam a um show de música popular no pavilhão de convenções conhecido como Riocentro, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Às 21h15, na área de estacionamento, uma bomba explodiu no interior de um automóvel marca Puma, marrom metálico, placa OT-0279. O carro era de propriedade do capitão Wilson Luís Chaves Machado, de 33 anos, especialista em informações, que ficou gravemente ferido. A seu lado morreu, instantaneamente, o sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, de 35 anos, especialista em explosivos. Ambos pertenciam ao Destacamento de Operações de Informações (DOI), um dos braços do Centro de Operações para Defesa Interna (CODI) do I Exército. Todas as evidências mostravam que a explosão teria ocorrido no colo da vítima, no momento em que manuseava o artefato que deveria ser destinado a alvo previamente demarcado.

               Pouco depois, às 21h45, outra bomba, esta mais potente, explodiu em local próximo à casa de força do Riocentro, mas errou o alvo. O objetivo era cortar a luz e produzir o pânico coletivo em um ambiente fechado. A intensidade do som da música cantada na ocasião por Elba Ramalho impediu que a plateia ouvisse o barulho, e o show continuou. Lá fora, um cadáver, um ferido grave, militares à paisana deixando o local e uma série de histórias e versões mal contadas se iniciaram, dando forma a um dos episódios mais conturbados, contraditórios e vergonhosos da história militar do país.

               A primeira reação do Exército foi atribuir o atentado à esquerda. O sargento Rosário foi enterrado com honras militares, na presença das maiores autoridades do Exército no Rio de Janeiro. A versão oficial simplificava o ocorrido e queria fazer crer que aquele era mais um gesto truculento da esquerda armada. Mas, aos poucos, os fatos foram mudando de figura. Testemunhas apareceram, contradições despencaram, e a versão oficial caiu por terra. Um inquérito foi instaurado e fatos inconvenientes para as Forças Armadas começaram a vir à tona. Verificou-se, entre outras irregularidades, que várias pessoas, pertencentes ao quadro das Forças Armadas e da polícia, tinham sido deslocadas de suas funções de segurança, às vésperas do atentado, e substituídas por outras vinculadas diretamente ao sistema de repressão e ao Serviço Nacional de Informações (SNI).

               Dentro da própria administração do centro de convenções várias medidas foram tomadas desmontando o sistema de segurança local. Esse desmonte foi premeditado com detalhes, como se veio a apurar mais tarde, e poderia ter ocasionado uma das maiores chacinas jamais ocorridas no país. Às 22h30, depois das duas explosões, a polícia chegou ao local e mais uma bomba foi encontrada no carro do capitão. Os primeiros resultados do inquérito apontaram para a responsabilidade criminal dos dois militares, mas o chefe desse primeiro inquérito foi destituído. Ganhava força a interpretação de que aquele havia sido um "acidente de trabalho". Ou seja, os militares estavam a serviço e, por problemas técnicos, não souberam operar os dispositivos. Por isso um deles acabou explodindo no colo do sargento.

               Outro coronel, Job Lorena Santana, foi nomeado para presidir o inquérito. Concluiu que os dois militares "foram vítimas de uma armadilha ardilosamente colocada, por terceiros, no carro do capitão", e atribuía a culpa a "grupos identificados como VPR, MR-8 e Comando Delta, sendo os dois primeiros radicais de esquerda e o último agrupando radicais de direita". Em julho, um promotor militar da 3ª Auditoria do Exército, no Rio de Janeiro, recomendou o arquivamento do inquérito, alegando "falta de indícios de autoria". O corregedor da Justiça Militar não concordou e interpôs representação ao Superior Tribunal Militar (STM), pedindo o desarquivamento. Em meio a toda essa briga jurídica, que ainda se estenderia por outras instâncias, o chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, general Golbery do Couto e Silva, demitiu-se, deixando claro que discordava do rumo dado ao caso. Golbery pertencia ao grupo de militares que nessa ocasião defendiam, ainda que discretamente, uma punição exemplar para os criminosos.

               Um acompanhamento mais fino do processo mostra que a pressão pelo arquivamento veio mesmo do Exército, que se mostrou irredutível na sua posição de não punir membros da instituição. Os ministros militares das outras forças acabaram, na maioria, por motivos corporativos, atendendo ao pleito do Exército, mas com isso colocaram em risco a integridade de toda a corporação. Mesmo com esse custo, os militares brasileiros demonstravam uma unidade de posições que sempre lhes foi peculiar quando se trata de defender os interesses da corporação frente ao "público externo".

               Com o avanço da democracia no país cresceram as expectativas de que o caso fosse reaberto e apurado com rigor. A cada ano novas versões, novos fatos ou hipóteses apareceram. Em abril de 1991, dez anos após o ocorrido, o ex-presidente Figueiredo, que deixara o poder em 1985, afirmava, contradizendo-se, estar convencido de que o atentado fora obra dos militares apontados como vítimas. Em março de 1999, a Procuradoria Geral da República, acatando argumentos e estudos de várias organizações de defesa dos direitos humanos, aceitou encaminhar pedido de reabertura aos órgãos competentes. Em meados de 1999 iniciou-se um novo IPM, a sexta tentativa de reabrir o caso. Em maio de 2000, contudo, o STM decidiu novamente pelo arquivamento. Esta decisão significa que, do ponto de vista jurídico, o caso Riocentro está encerrado, não cabendo mais recurso.

               A decisão da Justiça, naquele momento, combinava com a posição do governo brasileiro, então chefiado por Fernando Henrique Cardoso e tendo José Gregori como secretário nacional de Direitos Humanos. Nas palavras deste último, era preferível evitar confrontos com as Forças Armadas ou, no jargão militar, "abrir feridas antigas". Temia-se que a punição de um militar, em decorrência de seu envolvimento político, gerasse reações cujas consequências ninguém podia prever. E o caso Riocentro continuou a ser um assunto tabu, assim como tantos outros que comprometeram o perfil das Forças Armadas durante a ditadura.

               Há certamente, em todo o episódio, uma supervalorização social e política das Forças Armadas como instituição que poderia ficar acima da lei e da crítica. Isto se explica pela longa preeminência dos militares na política brasileira e pelas prerrogativas que obtiveram ao longo de nossa história. Mas os tempos são outros, e embora parte da elite brasileira se recuse a mudar, a democracia e a justiça se impuseram como valores a serem preservados. Por isso mesmo, o Riocentro ocupa hoje o lugar que os militares pleitearam para ele: foi um acidente do passado, coisa da história, página virada. Numa versão mais objetiva, foi uma história de impunidade que desmoralizou as Forças Armadas frente à inteligência e aos meios de comunicação do país.

MARIA CELINA D'ARAUJO é doutora em Ciência Política, professora e pesquisadora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV).

 Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 24 - outubro 2005

 Saiba Mais: Bibliografia

BIERRENBACH, Júlio de Sá. Riocentro: quais os responsáveis pela impunidade? Rio de Janeiro: Domínio Público, 19%.

DARAUJO, Maria Celina, com Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro. A volta aos quartéis: a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

CRAEL, Dickson. Aventura, corrupção e terrorismo: a sombra da impunidade. Petrópolis: Vozes, 1986.

 Saiba Mais: Link

Ditadura Militar no Brasil

Especial: O Golpe de 1964 - Não à guerra civil 

Especial: O Golpe de 1964 - A salvação da pátria 

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O guerreiro do sol

Virgulino Ferreira da Silva, o lampião, foi o último e orgulhoso representante de uma linhagem mestiça, a dos cangaceiros, que tem cinco séculos de história

FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO

               Os primórdios da vida social sertaneja, ao longo dos séculos XVII e XVIII, e mesmo de boa parte do século XIX, a vida da espingarda não se constituía apenas em procedimento legítimo à luz das circunstâncias, mas em ocupação francamente preferencial. Em bolsões remotos, de forma generalizada, o homem violento, afeito ao sangue pelo traquejo das tarefas pecuárias e adestrado no uso das armas brancas e de fogo, mostrava-se vital num meio em que se impunha dobrar as resistências do índio e do animal bravio como condição para o assentamento das fazendas de criar. Naquele mundo primitivo, o heroísmo social forjava-se pela valentia revelada no trato com o semelhante e pelo talento na condução cotidiana do empreendimento pecuário. Nas festas de apartação, em que se adornavam as fazendas em meados do ano, um e outro de tais valores - isto é, valentia e talento - precisavam somar-se para a produção ou confirmação de heróis pelas vias da vaquejada bruta, corrida com o homem nos couros e por dentro dos paus da caatinga mais cerrada, ou da corrida de mourão, expressão moderna, esta última, em que se estiliza a lúdica sertaneja da derrubada do boi.

            Como explicar o apuro ornamental do traje do cangaceiro, nos bordados de cores vivas e harmoniosas dos bornais, nos frisos e debruns contrastantes das cartucheiras, correias, coldres, perneiras, ou nas abas arrebitadas dos grandes chapéus de couro, com muito ouro e prata em meio a signos-de-salomão, estrelas de ponta, cruzes-de-malta e flores-de-lis, nada serial enquanto figura de síntese, nada repetido no requinte das combinações , apesar da convivência grupal intensiva? Como entender as notáveis afetações estéticas desse traje, inconfundível em sua imponência e escancarado no revelar a identidade de quem o porta, senão como um indicativo de orgulho quanto à forma de vida adotada?

               É próprio do apenas criminoso a busca da ocultação. Não assim da parte de grupos sociais que se arvoram em recorrências dentro de tradições caras ao povo. Uma destas, decerto a mais antiga, a de que se podia viver nesta parte do Novo Mundo sem lei nem rei, com cada homem podendo ser o rei de si mesmo, como lançaram em suas anotações os viajantes reinóis do século XVI. Anotações tanto mais compreensíveis na poesia de suas siderações quando sabemos lançadas por homens vergados à dupla sujeição da coroa e do papado. Através desses vestígios de cultura material podemos chegar a uma estética que é projeção do homem e parte da própria vida deste, não a copiagem de formas estranhas a que a educação religiosa nos submeteu ao longo de séculos, separando a arte da vida, como mostrou Gilberto Freyre, em 1933, no Casa-grande & senzala.

               É bem claro o lugar do cangaceiro em nossa história: ao lado dos que, como ele, se fizeram criminosos na epiderme e irredentos no mais fundo da carne, carregando por séculos, a ferro e fogo, o mito da vida primordial absoluta que o colonizador fez de tudo para extirpar ainda em dias pré-brasileiros, e que na Canudos de 1897, passados séculos, continuava a tentar destruir a querosene e a dinamite. É ao lado do índio levantado, do negro em armas contra o cativeiro e do branco de tantas revoltas pagãs, ou de fundo místico, contra disciplinas abusivas ou novidades de governo, que o cangaceiro deve ser perfilado.

               Pelo orgulho, pela imodéstia, pela vaidade, pelo desassombro da imagem ostensiva, pela força de formação de uma subcultura à base de derivações nada desprezíveis na música, na poesia, na dança, na culinária, no artesanato, na medicina, nos costumes, na moral, na religiosidade, na arte militar intuitiva e mesmo na arte de expressão plástica, a partir da herança pastoril, o cangaço sintetiza, aos olhos do brasileiro de hoje, a franja de todos os irredentismos, sua saga confundindo-se com a própria ideia de resistência contra poderosos. Nesse sentido, a mesma revisão feita sobre tantas das revoltas políticas, cívicas e religiosas brasileiras cabe no que toca ao chamado banditismo rural nordestino, de cuja realidade essencial também se pode dizer gilbertianamente tratar-se de regressão à cultura primitiva, recalcada porém não destruída. Isto sem prejuízo de seguir sendo banditismo ao rigor da norma jurídica então incidente.

               O cangaço, em sua raiz de insurgência nômade, grupal e autônoma - quer dizer, de chefia situada dentro do próprio bando -, mostra-se tão velho quanto a própria colonização brasileira, as suas desordens remontando ao período das capitanias, fenômeno de origem litorânea que é, sem que dispusesse, nesses primórdios junto ao mar , do nome por que ficaria conhecido e que só viria a receber no sertão, quando para ali vai sendo enxotado pelo sucesso da colonização na faixa verde.

               E m torno de meados do século XIX, começando a ordem pública a deitar seu longo braço no sertão, o que se vê é a paulatina condenação do viver pelas armas, no plano da administração da justiça, simultaneamente à arcaização nos planos histórico e sociológico. Data daí o emprego solto das expressões nativas cangaço e cangaceiro para revelar modo de vida e protagonista tornados incompatíveis com um tempo social em que já não mais se podia viver a existência selvagem que fora apanágio das gerações que sucederam o momento inicial da penetração das terras do leste setentrional brasileiro. Mas porque, nestas, a desvalorização do viver absoluto se dá muito mais por conta da imposição de um código de valores litorâneos do que pela superação natural de etapa de desenvolvimento, o sertanejo não vê razões para deixar de amar os bons velhos tempos em que não se precisava esperar pela justiça pública para rebater uma afronta, tempos em que a guerra e a vingança privadas se mostravam bem mais simples e fáceis de compreender como procedimentos punitivos. Como mecanismos provedores de uma ordem um tanto bárbara mas real. Eficaz. Direta como a lâmina do punhal de que tantas vezes se valeu, aliás. Relatando façanhas de Antônio Silvino, Leandro Gomes de Barros descreve, num verso apenas, essa justiça sui generis, tão da nostalgia do sertanejo:

                Onde eu estou não se rouba

               Nem se fala em vida alheia

               Porque na minha justiça

               Não vai ninguém pra cadeia:

               Paga logo o que tem feito

               Com o sangue da própria veia!

                Não nos parece presa de ardor retórico, antes animado do afã de sacudir verdades sobre o país dormente de 1902, o Euclides da Cunha que sustentava que "o heroísmo tem nos sertões, para todo sempre perdidas, tragédias espantosas". Uma destas, a que o próprio Euclides chamou de "martírio secular da terra", em alusão ao desequilíbrio dos elementos naturais. Outra, a do misticismo espessamente messiânico, por vezes amaneirado em sebastianismo, com as cotas de sangue do Rodeador, da Pedra Bonita, de Canudos, do Caldeirão, de Pau-de-Colher e de tantos outros episódios, o último dos quais combatido ferrenhamente pelo Estado Novo já em dias de 1938, com o resultado do extermínio à bala de mais de quatrocentos homens, mulheres e meninos. Outra ainda, a do próprio cangaço: o de vingança, arruinando famílias inteiras no calor das guerras privadas, e o profissional, ombreando, pela força da rapinagem mais gulosa, capitães de trabuco a coronéis sertanejos, o rifle fazendo as vezes da terra como fonte de poder. Esse o mundo de despotismos incríveis em que se forjaram os guerreiros do sol, na luz viva do meio e com o aço temperado da mestiçagem.

               Na sucessão das realezas que povoaram o universo do cangaço ao longo de séculos, polindo a fama de um Cabeleira, um João Calangro, um Jesuíno Brilhante, um Rio Preto, um Cassimiro Honório, um Antônio Silvino, um Sinhô Pereira, para ficarmos nas legendas de maior destaque, o nome de Virgulino Ferreira da Silva representa o paroxismo, a demasia, a culminância de tudo. O domínio concreto das porções rurais de sete estados da federação brasileira, durante mais de vinte anos, através de bando que chegou aos 120 homens, sob comando imediato, e ao dobro disso, quando dividido em grupos de seis a oito homens espalhados pelo sertão, sob o comando de discípulos aproveitados.

               Filho de um pequeno fazendeiro, segundo em meio a quatro irmãos e número igual de irmãs, Virgulino teve infância e adolescência normais, às voltas com as brincadeiras de fundo épico correntes no Pajeú de então. A incomodá-lo apenas o olho direito, remelando sem parar por conta de glaucoma que lhe roubaria a visão na pós-adolescência, auxiliado por acidente com uma ponta de pau, coisa frequente na vida de vaqueiro. É nessa mocidade fragueira que conhece diretamente a violência, ao lado dos irmãos mais próximos em idade, Antônio e Livino, no ano de 1916. Uma troca simbólica de desaforos com vizinho de propriedade, José Alves de Barros, o Zé Saturnino, materializada através de um chocalho e azedada pelo clima de exaltação que a cultura do meio inculcava, finda por provocar tiroteio no qual é ferido o irmão mais velho, Antônio. A partir desse fato, os rapazes do velho José Ferreira dos Santos passam a andar armados, sem largar ainda a almocrevaria (função de conduzir bestas de carga) a que se entregavam com sucesso, após início de vida dedicado ao traquejo do gado da própria família. E m busca de paz, abandonam a fazendola ao pé da serra Vermelha, mudando-se para o Poço do Negro, próximo ao vilarejo de Nazaré, onde se verifica novo tiroteio já em dias de 1917. Outra mudança. Dessa vez para longe. Para o estado de Alagoas, município de Água Branca, onde os rapazes fazem amizade com os irmãos Antônio, Manuel e Pedro Porcino, passando a colaborar no grupo de cangaço que estes chefiavam.

               Tímida, de início, a colaboração evolui para um quase engajamento em poucos meses. Um ataque praticado pelos Ferreira à vila de Pariconha, não muito longe da fronteira de Alagoas com Pernambuco - agindo, já então, como grupo autônomo, à margem dos Porcino -, atrai sobre eles a ira da polícia alagoana. Pouco mais de uma semana após o ataque à vila, um cerco policial à residência dos Ferreira, no intuito de prender os rapazes, redunda na morte do velho José, sem que houvesse a intenção direta de praticá-la. A polícia, sob instruções para combater o banditismo na fronteira, estava agindo com violência maior que a habitual. Não se passam muitos dias e os rapazes perdem a mãe, ao impacto da morte trágica do marido. Furiosos, lançam-se sobre a polícia em tiroteios enlouquecidos e se determinam a abraçar de vez o ofício de bandidos profissionais. Corria o mês de maio de 1921. Com este, de boca em boca, o nome dos irmãos Ferreira nas encruzilhadas do sertão. De um destes a imprensa litorânea já se ocupa em 1922, iniciando-lhe a celebrização do apelido: Lampião.

               Moreno, tipo de caboclo - que é a mistura brasileira do branco com o índio -, alto de l,80m , cego de um olho, manco, meio corcunda, sem cultivar barba ou bigode, óculos professorais a lhe desenhar em o rosto, nem o mais novo nem o mais velho dos irmãos, Lampião faz-se chefe de grupo e capitão de cangaço, arrostando os padrões sertanejos ainda atentos a preconceitos ligados a cor, deficiência física, símbolos de virilidade, ordem de nascimento na família e contra novidades, vistas essas últimas como coisas do cão. Ao entrar como celebridade na terra do padre Cícero, em 1926, surpreende a imprensa local por ser dos mais escuros do grupo. Mas era o chefe. E chefe de autoridade jamais discutida, apesar da convivência de duas décadas com os homens mais perigosos do sertão.

               Administrador intuitivo, confedera os bandos existentes em sua época e passa a comandar comandantes. No passado, só João Calangro o conseguira, no século XIX e em ponto bem menor. Tinha sempre, como nos disse o cangaceiro Medalha, "o pensamento adiante da palavra", de par com a autoridade moral de quem "só comia e bebia depois que todos tivessem comido e bebido; só montava depois que todos tivessem montado".

               Com habilidade ímpar, tira partido das principais ocorrências nacionais que repercutem no Nordeste, desde a suspensão das obras contra as secas no governo Artur Bernardes, em 1922 - que abre para o bando um voluntariado precioso, à base do desemprego que acarreta -, até a passagem da Coluna Prestes, em 1926, de que se vale para obter, por mil ardis, equipamento da melhor qualidade, da mesma maneira vindo a se aproveitar da desorganização das forças militares por ocasião dos movimentos revolucionários de 1930, 1932 e 1935.

               Excelente dançarino, nunca descurou do lazer para os seus homens, promovendo bailes à razão de dois por semana, quando possível, fechados ao bando ou abertos às moças e rapazes das comunidades próximas, sob compromisso de silêncio. Também no bordado e na costura, em pano e em couro, a que se dedicava por dias inteiros, na despreocupação de refúgios seguros, ia buscar o reequilíbrio intuitivo da personalidade exposta ao cotidiano de violências, conseguindo que muitos dos auxiliares de confiança fizessem o mesmo, a exemplo dos cangaceiros Esperança, Luís Pedro, Português, Zé Sereno, Pancada e tantos outros. Lampião foi exímio na arte da costura, à mão ou com o emprego de máquina Singer portátil - é depoimento uniforme dos que privaram com ele no dia a dia.

               A eficiência neurológica da rede de protetores, informantes e fornecedores que montou e tocou por toda a vida permanece misteriosa por muitos de seus aspectos, notadamente o do fornecimento de armas, sendo um caso raro de sigilo perfeito em organizações do tipo. Ao tempo em que as forças policiais que o perseguiam usavam munição militar do ano de 1912, seus homens dispunham de balas datadas de 1932.

               A ele se deve ainda a introdução no cangaço do ofício religioso coletivo, das mulheres em caráter permanente, da organização e equipamento militares , de procedimentos táticos e estratégicos racionais, da documentação escrita dos negócios, do uso intuitivo da informação, contrainformação e guerra psicológica, mas também do sequestro a resgate, dos sangramentos sistemáticos, das castrações como procedimento vulgar, às vezes debochado. Entre as qualidades negativas, assinale-se ainda um desprezo jocoso pelos negros, mais por palavras que por gestos, muito ao estilo dos debiques correntes num sertão em que a presença destes se mostrou sempre relativamente rarefeita, o que não o impediu de contar com auxiliares negros de inteira confiança e de lhes dedicar amizade.

               Apesar da irregularidade do cotidiano que abraçou, teve vida pública surpreendentemente intensa, não deixando de se realizar, por igual, no plano da família, como marido e pai. Amoroso com os parentes até as lágrimas, vê a tragédia abater-se sobre estes como decorrência da notoriedade da vida que levava, na qual amarga a perda sucessiva de três irmãos convertidos em cangaceiros e de um primo, paisano. Mas não se emenda: na véspera da morte, costurava o traje de um sobrinho que acabava de atrair para o bando...

               Por haver sido tropeiro e ter convivido, já feito salteador, com a classe rica da área rural - classe sempre interessada em alianças com o cangaço, fosse para o extermínio de inimigos, fosse ainda para a divisão da rapina, que tudo isso ocorreu com frequência no sertão primitivo -, Lampião incorporava em seu dia-a-dia novidades desconhecidas do matuto em geral. No final dos anos 1920, causavam sensação sua pilha elétrica manual, a capa de borracha e a garrafa térmica, mimos de poderosos de seu convívio, ao lado dos cartões de visita e postal com foto no anverso, do uísque White Horse e do perfume Fleurs d'Amour, da maison Roger&Gallet.

               Pés fincados num a existência bandoleira arcaica nos anos em que viveu, servindo de suporte a um espírito aberto às inovações que iam tangendo para o passado o velho sertão das superstições, do isolamento geográfico, da desconfiança como norma de sobrevivência, da rigidez de costumes, da presença viva do demônio medieval nas relações do cotidiano, do fatalismo, da vingança privada, dos padres de prole numerosa, do culto à coragem, do próprio cangaço, enfim. Espanta vê-lo, assim, tão antigo no modo de vida, a conviver, desenvolto, com o gramofone, o cinema - que o imortalizou em documentário de 1936 -, o telefone, o telégrafo, o automóvel, inclusive o caminhão e o ônibus , a luz elétrica, as máquinas datilográfica e de costura, o óculo-de-alcance, o binóculo, a arma automática, além do que vimos acima. Não exageramos ao recomendar que algum a coisa do traje do cangaceiro, no período de Lampião, deva ser pesquisada nas revistas de cinema ilustradíssimas da época, a Cinearte e a Cena Muda. Que instante mágico não há de ter sido aquele em que um de seus subgrupos, o do cangaceiro Balão, pôde assistir, queixos caídos, à passagem do zepelim sobre os campos agrestes do estado de Sergipe...

               Para esse homem imponente, de fala serena, gestos contidos, fisionomia calma e dominadora, docemente paternal para com os seus, mais do sorriso que do riso, moderado no fumo e na bebida, anfitrião irrepreensível, afilhado de Nossa Senhora da Conceição e devoto de Santo Expedito, a vida humana não valia nada, tanto fazendo matar um homem como mil , segundo suas palavras. A solução violenta, envolvendo espancamento, corte de orelha ou língua, tatuagem a fogo, castração - esta consistindo na retirada, à faca, dos testículos e da bolsa correspondente, com a manutenção do pênis -, execução lenta ou sumária a punhal ou arma de fogo, era a que primeiro lhe acudia ao espírito diante de conflito. Ou de simples arenga de coiteiro, reclamação de amigo ou pedido de colega de bando. E era um alfabetizado. Um leitor de folhetos de cordel, de romances policiais, de jornais e de revistas ilustradas, algumas vindas do Sul do país, um fruitivo das delícias do cinema. Sem o mais leve sinal de arrependimento, nele a vida adotada parece ter correspondido à vocação. Um perfeito ajustado no cangaço. No cangaço de que se tornou rei absoluto e que lhe forneceu o passaporte para a imortalidade pelas vias da história, da literatura e da arte, dele recebendo, em curiosa retribuição, a marca visual da meia-lua com estrela, capaz de fazer com que o fenômeno, superando a derrota militar inevitável, findasse por se imortalizar como símbolo de toda uma região brasileira.

               Habitando um meio cinzento e pobre, o cangaceiro vestiu-se de cor e riqueza. Satisfez seu anseio de arte, dando vazão aos motivos profundos do arcaico brasileiro. E viveu sem lei nem rei em nossos dias, deitando uma ponte sobre cinco séculos de história. Foi o último a fazê-lo com tanto orgulho. Com tanta cor. Com tanta festa.

FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO E PESQUISADOR D A FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO E AUTOR DE GUERREIROS DO SOL - VIOLÊNCIA E BANDITISMO NO NORDESTE DO BRASIL ( A GIRAFA EDITORA , 2004).

 Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 01 - nº 03 – setembro de 2005

 Saiba Mais: Bibliografia

CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião: o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

UMA, Estácio de. O mundo estranho dos cangaceiros. Salvador: Itapoá, 1965.

MELLO, Frederico Pernambucano de. Quem foi Lampião. Recife-Zunque: Stâhli Edition, 1993.

 Saiba Mais: Link

O eunuco do Morro Redondo

Misticismo e sangue

sábado, 19 de setembro de 2020

Os deslizes factuais de Os sertões

Obra-prima da literatura brasileira, o livro em que Euclides da Cunha narrou a aniquilação de Canudos passa por uma revisão que evidencia certos exageros

Walnice Nogueira Galvão

               No dia 5 de outubro de 1897 disparou-se o último tiro da Guerra de Canudos, tombando os defensores que restavam. Euclides da Cunha, em Os sertões, registra o fato nas páginas que encerram o livro: "Eram quatro apenas, um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados". A imagem, crua e singela, é um bom apanhado do que foi aquela guerra de extermínio, em que um exército equipado com a mais moderna tecnologia bélica massacrou um bando de excluídos, que só dispunham de sua fé e de sua coragem. Testemunha ocular dos combates, Euclides ficaria marcado para sempre pelo que assistira, e ao escrever o que chamou de "livro vingador" extravasou todo o seu horror. Em estilo caracterizado por uma retórica exacerbada e grandiloquente, incorreu algumas vezes em exageros que visavam ao engrandecimento do ocorrido, assim impregnando-o de uma aura de emoções. São portanto antes hipérboles que propriamente distorções propositais da verdade, aqueles deslizes do factual que encontramos em Os sertões.

                    A cobertura da guerra já era controversa à época. Um exame dos jornais - veículo de opiniões infundadas, papéis forjados, cartas falsas, notícias plantadas - mostra que se tratava de uma vasta operação de desinformação. Seu objetivo era convocar os brasileiros para a defesa da jovem República, travestindo Canudos de foco de uma conspiração restauradora da monarquia, com ramificações nacionais e internacionais.

               Logo depois, foram publicados vários livros relatando a campanha, em geral de militares comba-tentes. De lá para cá, a massa de estudos que se acumulou perfaz uma montanha, que continua crescendo. Muito se ganhou e muito se aprendeu com os trabalhos posteriores, sobretudo os que procuraram fugir ao que José Calasans chamou de "gaiola de ouro" de Os sertões. É inestimável o papel desse historiador na renovação de tais estudos, lançando mão da metodologia da história oral e desencavando documentos, quando, a partir dos anos 50, encetou uma série de viagens para entrevistar sobreviventes da guerra. Conseguiu identificar figuras de proa, como por exemplo Pedrão, auxiliar direto de Antônio Conselheiro. Pesquisou aspectos menos conhecidos do episódio, esclarecendo a atitude dos vigários da região, que iam do apoio ao mais violento repúdio; a etimologia da palavra jagunço; os inícios da peregrinação do líder místico; a composição de seu séquito; os caminhos que palmilhou; as trajetórias dos principais canudenses; a poesia popular que se originou daqueles eventos; e inúmeros outros. A partir de sua atuação, não é de surpreender que a Guerra de Canudos tenha passado por um rigoroso processo de revisão.

 A brecha no cerco

               Valeria a pena examinar mais de perto a afirmação, constante das últimas páginas de Os sertões, de que "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo". Sabe-se que muitos moradores, e mesmo alguns cabecilhas, fugiram do arraial cercado. O assédio que o estrangulava nunca seria completado, ficando aberta a estrada de Uauá por ordem do comando militar, deixando uma brecha para quem desejasse fugir. Foi assim que escaparam, por exemplo, os irmãos Vilanova.

               O abastado Antônio Vilanova era o principal comerciante do lugar. Ele e João Abade, homens de confiança do Conselheiro, estavam acima de todos os demais. O poder por assim dizer civil pertencia ao primeiro, enquanto o militar cabia ao segundo, que era o "chefe do povo" e o "comandante da rua". Era este quem liderava a Guarda Católica, ou Companhia do Bom Jesus, uma falange de doze apóstolos uniformizados que constituía o estado-maior de Antônio Conselheiro. João Abade pereceria nos últimos dias da luta. O outro irmão Vilanova, Honório, décadas mais tarde prestaria depoimento que é uma das melhores fontes para um ponto de vista interno ao arraial. Pedrão, outro membro da Guarda Católica, também escapou, e regressaria muito depois, inválido das pernas ao fim de uma vida de lutas. Consciente de seu valor, ao ser entrevistado por Calasans, declarou: "Faz pena um homem como eu morrer sentado".

Bandeira branca

               Se muitos canudenses fugiram do arraial pela estrada de Uauá, outros engrossaram as fileiras de uma rendição coletiva. Três dias antes da guerra terminar, Antônio Beatinho e mais dois companheiros apareceram no acampamento do exército para negociar a rendição. Após combinarem os termos, regressaram à cidadela e de lá escoltaram um triste cortejo de trezentas pessoas, mulheres, crianças e velhos, reduzidos a esqueletos. Entre elas, nenhum homem válido. Em represália, os generais mandaram degolar os negociadores. O cortejo rendeu a melhor e mais famosa foto de Flávio de Barros, autor da cobertura visual da última expedição.  

O heresiarca

               Assim como não pretendia ser d. Sebastião, o Conselheiro tampouco era heresiarca, o que Euclides também poderia ter conferido no livro de sermões. Ao contrário, mantinha-se dentro da mais estrita ortodoxia, tanto é que se recusava a ministrar os sacramentos - batismo, confissão, casamento, eucaristia, extrema-unção - por não ser sacerdote ordenado. Seus sermões veneravam Jesus Cristo e a Virgem Maria, além de referirem temas da doutrina católica ou passagens significativas da Bíblia, como a história do dilúvio, a travessia do Mar Vermelho, etc.

               Como ninguém ignora, o Brasil é o maior país católico do mundo, mas o catolicismo não é sua religião oficial desde que a República, destronando a realeza, separou Estado e Igreja, assim criando um dissídio que seria uma das motivações da Guerra de Canudos. Antônio Conselheiro, e não só ele, desaprovou a medida. O sacramento do matrimônio, até então monopólio da Igreja, perdeu o caráter sagrado, tornando-se civil e profano; os cemitérios também foram retirados da alçada da Igreja. O governante deixou de ser um imperador de direito divino, e passou a ser qualquer um que fosse eleito. Tudo isso desgostou o Conselheiro e seus prosélitos, como se pode constatar nos sermões, nos quais ataca tanto a República quanto os ateus, os protestantes, os maçons e os judeus, por serem inimigos da Igreja.

D. Sebastião no Belo Monte

               Consideremos o diagnóstico de Os sertões de que em Canudos havia influência do sebastianismo, a forma própria que assumiu em Portugal o fenômeno universal do messianismo, dali emigrando para o Brasil. Quando, em 1578, o rei português d. Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África, Portugal ficou sob o jugo da Espanha por sessenta anos. Só em 1640 a Coroa portuguesa se restabeleceria. A catástrofe daria origem à lenda de que d. Sebastião, cujo cadáver nunca foi encontrado, sobrevivera, para um dia reaparecer, restaurando a grandeza da nação. Logo surgiriam, sucessivamente, vários impostores, depois desmascarados, pretendendo ser d. Sebastião.

               No Brasil, afora manifestações menores, um surto de sebastianismo deu-se no episódio de Pedra Bonita, no interior de Pernambuco, quando um grupo de crentes entregou-se à penitência para fazer d. Sebastião surgir de dentro de uma laje, à custa de sacrifícios humanos. O surto só seria debelado mediante a intervenção das forças armadas, em 1838.

               A presença do sebastianismo em Canudos é mais discutível. Embora Euclides o afirme, não chegou a examinar os sermões de Antônio Conselheiro. À vista deles, certamente verificaria que o beato não aspirava a tal papel. Dois manuscritos contendo sermões, cópias de textos da Bíblia e resumos foram cobiçados como troféus pelos vencedores, e deixam claro que o líder jamais tentou assumir a personalidade do rei português. Mas boa parte de sua congregação nele via d. Sebastião. Euclides fala dos folhetos e papéis dos canudenses com versinhos e profecias, em muitos dos quais d. Sebastião está presente. O que é confirmado por outros autores e pelos jornais da época.

Numância e Massada

               Mesmo se não houvesse fugas e rendições parciais, ainda assim Canudos não seria caso único. Há alguns outros, admiráveis, na História - exemplos que Euclides certamente estudara na Escola Militar. O que chama a atenção é a semelhança da prática tanto de suicídios quanto de incêndios como armas destinadas a frustrar o triunfo do adversário.

               Afonso Arinos, que viria a ser o primeiro a publicar um livro sobre Canudos, o romance Os jagunços, lembrara episódio similar no jornal que dirigia, O Comércio de São Paulo. Em editorial intitulado "Numância", celebrara a intrepidez dos defensores da cidade espanhola que resistira às legiões romanas, em 133 a.C. Ante um assédio que se prolongava, à beira da inanição, mandaram avisar aos atacantes que se entregariam no dia seguinte. Quando estes penetram as muralhas, deparam com uma cidade em chamas, em que todos os cidadãos se jogavam no fogo. Arinos acentua que o caso de Canudos é pior, porque foram soldados compatriotas que atearam fogo ao arraial e assistiram as mães com filhos ao colo se lançarem no incêndio.

               Outro exemplo amplamente conhecido é o da fortaleza de Massada, em Israel. Quem procede ao relato é Flavius Josephus, o historiador judeu tornado cidadão romano, no primeiro século da era cristã. Os rebeldes hebreus, devotos de uma seita religiosa, resistiram por dois anos à ofensiva romana. No fim de suas forças, suicidaram-se e incendiaram o reduto, para não cair vivos nas mãos do inimigo.

               Tanto em Canudos quanto em Numância e Massada, o paralelo se estabelece entre aqueles que exercem sua liberdade preferindo morrer a vergar-se aos grilhões da servidão. Nos três, o impacto reside na imagem de pessoas dando-se a morte e lançando-se ao fogo. Mas, novamente, ao fazer do Belo Monte caso único, Euclides cunha uma hipérbole, um exagero, que força um pouco os limites dos precedentes históricos.

A demografia da cidadela

               Bastante questionadas hoje em dia são as dimensões do arraial e a cifra de seus habitantes. O laudo oficial do exército, que Euclides acata, computou 5.200 casas. Dada a fecundidade das famílias sertanejas e a presença dos parentes mais velhos, a estimativa modesta de cinco pessoas por domicílio daria um total de 26 mil habitantes. O que faria de Canudos a segunda maior cidade da Bahia, logo depois de Salvador; e isso numa época em que mesmo São Paulo mal atingia 200 mil pessoas.

               As dúvidas incidem sobre a possível inflação da contagem, querendo o exército vangloriar-se de uma vitória arduamente conquistada. Nos croquis que Euclides esboçou em sua caderneta de campo, vê-se com clareza uma povoação bem menor. Supõe-se que a mão do engenheiro reproduziria com rigor científico o que tinha diante dos olhos, tal como aprendera a fazer na Escola Militar, onde estudara desenho.

 Cartas de dentro e de fora

               Sabe-se que Canudos se avolumou quando seus habitantes clamaram por socorro, despachando emissários e entregando-se ao proselitismo epistolar. Em verdade, a afluência começa assim que os nômades, ante o recrudescimento da perseguição, se tornam sedentários após vinte anos de perambulação, em 1893. Batem então em retirada, para se isolar e se fortificar no Belo Monte, nome bíblico que dão a Canudos.

               Por isso, as cartas dos canudenses a parentes e amigos se traduzem afinal em recrutamento de correligionários. Disputadas como pilhagem nas cinzas da cidadela arrasada, são transcritas aqui e ali pela imprensa ou pelos livros sobre a guerra. Euclides anotou várias na caderneta de campo. Os missivistas não pediam propriamente socorro, mas alertavam ser aquela a última chance de "salvar a alma", porque o fim do mundo se avizinhava e só se redimiria quem estivesse dentro do perímetro de Canudos. Um escreve que o Belo Monte será "a barquinha de Noé", no Dia do Juízo. Outro convoca voluntários para morrer aos pés do Bom Jesus. Essas são as cartas de dentro.

               Bem mais abundantes e reveladoras são as cartas de fora. Dão conta de que a região estava se despovoando, com bandos de gente que passava de mudança rumo à cidadela, carregando seus trastes. Fonte preciosa, integram a correspondência passiva do poderoso barão do Império e oligarca republicano, Cícero Dantas Martins, barão de Jeremoabo.

               Além de tudo o que tramou ou nos bastidores ou publicamente no Parlamento, o barão revelou-se um grande publicista ao assumir a missão de inflamar os ânimos com relação ao perigo que Canudos encarnava. Possuindo nada menos do que 59 fazendas na Bahia e duas em Sergipe, deve ter sido o maior proprietário fundiário dos sertões. Pode-se calcular o porte e extensão da rede de relações de parentesco, compadrio e clientela que manejava, com articulações nas esferas municipal, estadual e nacional.

               À luz de sua correspondência, compreende-se como a destruição de Canudos foi sendo passo a passo arquitetada e quanto esforço exigiu o desmantelamento do apoio logístico de que o Conselheiro desfrutava na região. Tal apoio não provinha só de miseráveis, mas incluía fazendeiros, comerciantes e gente de posses.

               Boa parte dessa correspondência dá voz ao alarme dos fazendeiros perante o carisma do líder, que lhes arrebatava os braços da labuta em suas terras. "Seguiu daqui e destas imediações esta semana para o Conselheiro umas 16 a 20 famílias, é um horror!!...", escreve um. Outro avisa: "Temos muito breve de ver este sertão confiscado por ele e seu povo; pois está com mais de 16 mil pessoas; povo este miserável tudo que foi escravo, tudo que é criminoso de todas as províncias". O primeiro temor dos fazendeiros era de perder, como de fato estavam perdendo, a mão de obra, que abandonava o trabalho nas fazendas e refluía para o arraial. O segundo temor era de que suas propriedades fossem invadidas pelos canudenses, que assim tomariam a iniciativa de implementar a reforma agrária.

 Instantâneo de Canudos

               A questão da demografia canudense, tão discutida, é por enquanto difícil de decidir. A planta do arraial tampouco ajuda, como constatamos nos croquis de Euclides, aliados aos pareceres de todos aqueles que o tiveram sob os olhos e escreveram suas impressões. Numa alça do leito do rio Vaza-Barris, seco àquela altura, avistava-se um labirinto de vielas e becos dispostos nas colinas de um terreno acidentado, sem que o olhar percebesse um traçado linear, nem calçadas, nem meios-fios. Distinguia-se uma única rua, que passava pela praça das igrejas, curta de extensão, onde ficavam as casas de telha rebocadas e caiadas, que pertenciam aos mais abastados.

                O restante se dispunha em desordem, numa aglomeração de casebres improvisados, ostentando só uma porta e nenhuma janela, edificados às pressas, por gente que para ali acorrera para entregar-se à ascese enquanto aguardava o fim do mundo. De pau a pique ou taipa, o conjunto inteiro tinha a mesma cor da terra de que era feito. Segundo as testemunhas, o Belo Monte desnorteava. Na expressão de Euclides: "...como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos..."   

               Atualmente, as esperanças para elucidar o enigma de suas dimensões estão depositadas na pesquisa arqueológica que vem sendo realizada dentro do projeto do Parque Estadual de Canudos, criado em 1986, sob a responsabilidade da Universidade Estadual da Bahia. Várias escavações já foram feitas, visando ao levantamento de trincheiras, ossadas, utensílios domésticos e material bélico. Resgataram-se a Igreja Velha, a Igreja Nova e a Fazenda Velha. Certamente, um dos pontos de interesse dessas pesquisas será a determinação do número de domicílios do arraial, permitindo um cálculo melhor de sua demografia.

 WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Tem 22 livros publicados sobre Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, crítica literária e cultural.

 Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 24 - outubro 2005

 Saiba Mais: Bibliografia

CUNHA, E. da. Os sertões. Ed. crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 1998.

GALVÃO, W. N. No calor da hora - A Guerra de Canudos nos jornais. 3a ed. São Paulo: Ática, 1997.

_____ Império do Belo Monte - Vida e morte de Canudos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.

GALVÃO W. N. e PERES F. da R. (Orgs.). Breviário de Antônio Conselheiro. Salvador: Editora da UFBA, 2002.

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terça-feira, 8 de setembro de 2020

De braços dados e cruzados

Antes mesmo dos direitos trabalhistas, o movimento libertário esteve no centro da organização das primeiras grandes greves do país.
CARLOS AUGUSTO ADDOR
               No Brasil da Primeira República (1889-1930), os trabalhadores urbanos viviam num verdadeiro "inferno social". Homens, mulheres e crianças passavam 12, 14 ou até mesmo 16 horas diárias, ao longo de seis dias por semana, no interior de fábricas insalubres e perigosas. Álvaro Corrêa, antigo operário têxtil e gráfico em fábricas do Rio de Janeiro e de Juiz de Fora nas primeiras décadas do século XX, contou ter visto "moças serem esbofeteadas e saírem chorando sem um protesto para não perder o emprego". As mulheres eram também vítimas frequentes de tentativas de abuso sexual. As crianças eram espancadas por quaisquer deslizes no trabalho. No interior da Fábrica de Tecidos Penteado, na capital paulista, um caso ocorrido em 1922 é exemplar e assustador. Um menino chamado Daniel, exausto após longa jornada de trabalho, adormeceu e perdeu o horário de saída. A segurança do prédio era feita, à noite, por um vigia acompanhado de cães ferozes. Daniel foi dilacerado pelas feras, morrendo no hospital depois de longa e dolorosa agonia.
               Embora em 1919 tivesse sido promulgada no Brasil uma primeira lei sobre acidentes de trabalho, ao longo da Primeira República essa lei, na prática, permaneceu letra morta. O Estado não se propunha a intervir de forma normativa sobre o mundo do trabalho, garantindo aos empresários a possibilidade de superexplorar os trabalhadores. Junte a isso o fato de que nas três primeiras décadas da República chegaram ao Brasil cerca de 4 milhões de europeus, em sua maioria italianos, espanhóis e portugueses. Isso criou uma situação boa para os patrões, péssima para os operários. Sobrava mão de obra, aumentava o desemprego.
               Esses imigrantes, ao lado dos brasileiros, teriam papel decisivo no processo de formação da classe operária. Num primeiro momento, afloraram rivalidades, disputas e conflitos interétnicos. Entretanto, ao longo do tempo, o partilhar do duro e sofrido cotidiano fabril levou os trabalhadores a minimizarem suas diferenças e a priorizarem interesses comuns. Aos poucos, forma-se uma identidade (e uma consciência) de classe.
               As ideias anarquistas vieram com os imigrantes, o que levou setores do patronato e membros do aparelho de Estado a formularem a imagem da "planta exótica": uma ideologia estrangeira que não encontraria terreno fértil para se desenvolver no Brasil. Essa imagem seria usada de forma recorrente para tentar desqualificar o anarquismo, à medida que ele conquistava adesão crescente. Também era utilizada para justificar processos de deportação de trabalhadores estrangeiros que "perturbassem a ordem pública ou a paz social", ou seja, que participassem de greves, comícios e outras manifestações públicas. A Lei Adolfo Gordo, promulgada em 1904 e regulamentada em 1907, fundamentou juridicamente o processo de expulsão de centenas de militantes estrangeiros e brasileiros, enviados para rincões remotos como os seringais do Acre e, nos anos 1920, para a colônia penal de Clevelândia, no Amapá.
               Apesar da perseguição, o anarquismo ampliava sua presença nos sindicatos operários e no debate político e intelectual, denunciando, através de uma imprensa bastante vigorosa, as condições de vida impostas aos trabalhadores. Em 1903, no Rio de Janeiro, e em 1907, em São Paulo, duas greves mobilizaram trabalhadores de vários setores, cujas principais reivindicações eram "os três oitos" - jornada de oito horas de trabalho, propiciando oito horas de repouso e oito horas livres. Ao fim das greves, algumas categorias profissionais com maior poder de barganha conseguiram a redução da jornada, se não para oito, ao menos para nove horas.
               Em abril de 1906, foi realizado no Rio de Janeiro o Primeiro Congresso Operário Brasileiro, com clara influência anarquista. Uma de suas resoluções, efetivada em 1908, era a criação da Confederação Operária Brasileira (COB) que, por sua vez, lançou o jornal A Voz do Trabalhador, um dos mais importantes periódicos da imprensa operária na Primeira República, ao lado de A Plebe, Guerra Social, A Terra Livre, Na Barricada, Spartacus, A Voz do Povo e A Lanterna - este último ainda enfatizava o caráter anticlerical do anarquismo.
               A eclosão da Primeira Guerra Mundial levou o movimento anarquista a reafirmar seu caráter internacionalista, pacifista e antimilitarista. Em São Paulo, o movimento pôs em circulação cartões-postais com a expressão "Papai, não vás à guerra", ecoando o lema "Não mandes teus filhos à guerra", que anarquistas divulgavam na Europa. Intelectuais libertários, como o paulista Edgard Leuenroth (1881-1968) e o baiano Fábio Luz (18641938), escrevem e publicam artigos e manifestos propondo transformar a guerra imperialista em guerra revolucionária. O jornal libertário paulistano La Propaganda conclama os pacifistas a "declarar guerra à guerra". Em outubro de 1915, a COB organiza no Rio de Janeiro o Congresso Internacional
da Paz, do qual participam delegados de sindicatos e federações operárias do Brasil, da Argentina, de Portugal e da Espanha. Dias depois, militantes promovem na sede do COB o Congresso Anarquista Sul-Americano, com a presença de delegados da Argentina e do Uruguai.
               Os efeitos da guerra mundial sobre a economia brasileira são terríveis: redução do comércio externo, retração da atividade fabril, desemprego, carências generalizadas. Mas uma notícia vinda do Oriente anima trabalhadores e militantes anarquistas, socialistas e comunistas: em 1917, pela primeira vez uma revolução que se diz socialista, feita em nome dos operários e dos camponeses russos, chega ao poder. Cria um clima de euforia revolucionária e alimenta expectativas de que o capitalismo estaria agonizante. Durante os anos seguintes, os anarquistas ainda acreditam numa suposta dimensão libertária da Revolução Russa que, por meio da "revolução social", completaria o processo iniciado com a Revolução Francesa (1789), a "revolução política". Os massacres dos marinheiros de Kronstadt e dos camponeses ucranianos liderados pelo anarquista Nestor Makhno, ambos em 1921, enterram essas ilusões.
               Em 1917, grandes greves envolveram dezenas de milhares de trabalhadores em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na capital paulista, onde militantes anarquistas vinham há anos desenvolvendo atividades de propaganda libertária, o assassinato do jovem sapateiro espanhol José Martinez pela polícia, num conflito de rua, transformou uma greve já bem ampla em greve geral, que paralisou a cidade por alguns dias. Durante a greve formou-se o Comitê de Defesa Proletária, composto por cinco militantes anarquistas e um socialista, para negociar um acordo com os patrões. Algumas demandas, como reajustes salariais e redução de jornada de trabalho, foram parcialmente atendidas e o acordo foi ratificado por três grandes comícios públicos. Foi a primeira greve geral parcialmente vitoriosa na história brasileira, contribuindo para a autoestima da classe operária. No entanto, muitos patrões não cumpriram o acordo e as autoridades públicas não honraram sua palavra: vários líderes foram perseguidos e presos, e alguns estrangeiros deportados.
               No ano seguinte, outras duas greves tiveram grande efeito simbólico. Em agosto, pararam os trabalhadores da Companhia Cantareira e Viação Fluminense, que operava as barcas entre Rio de Janeiro e Niterói e os bondes desta última. O movimento se radicalizou. Num conflito entre operários e policiais na rua da Conceição, em Niterói, alguns soldados do Exército tomaram partido dos grevistas. Um cabo e um soldado morreram no confronto, e ganharam homenagens de delegações operárias. O episódio foi associado à experiência russa de confraternização entre conselhos de operários (sovtets) e soldados, estimulando a imaginação dos libertários brasileiros: sonhavam com a formação do "Soviet do Rio". Em novembro, a greve de dezenas de milhares de tecelões, metalúrgicos e operários da construção civil, no Rio, articula-se com uma tentativa de insurreição planejada por militantes anarquistas - rapidamente delatada e reprimida. Seus principais líderes, José Oiticica, Astrojildo Pereira e Agripino Nazaré, são presos. Oiticica é "deportado" para Alagoas e Agripino para a Bahia. A greve operária, pacífica e até certo ponto independente da atividade dos anarquistas, também foi duramente reprimida pela polícia. Respaldados pelo governo, os patrões endureceram sua posição: não mais reconheceriam a União dos Operários em Fábricas de Tecidos (Uoft), uma das organizadoras do movimento, como entidade representativa dos têxteis, por estar "dominada por elementos anarquistas estranhos à classe".
               Mesmo derrotadas em sua maioria, essas greves colocaram a causa operária, pela primeira vez, em destaque na grande imprensa. Não seria mais possível continuar com o discurso de que não havia razão para greves no Brasil. Contudo, reconhecer a legitimidade de reivindicações operárias não significa aceitar o anarquismo. Em 19 de novembro de 1918, o jornal A Razão, que se dizia um órgão defensor da "causa das classes que trabalham", publica o artigo "O joio e o trigo". O "trigo" seriam os trabalhadores brasileiros, honrados, dóceis, laboriosos. E o "joio", os anarquistas estrangeiros, "apátridas, homens sem Deus, sem honra, sem família, ingratos com a terra que os acolheu, mazorqueiros (desordeiros), arruaceiros que vivem a pregar a subversão social e política, a revolução que lhes entregue o poder". Uma das poucas vozes a sair em defesa do anarquismo é a do escritor Lima Barreto, em especial nas crónicas "Da minha cela" e "Sobre o Maximalismo".
               No início da década de 1920, as divergências entre anarquistas e comunistas se aprofundam. Astrojildo Pereira, ex-anarquista, adere ao bolchevismo e participa da fundação do Partido Comunista do Brasil (1922). Torna-se um dos mais ácidos críticos do anarquismo, segundo ele, uma proposta "utópica", sem condições políticas para elaborar um projeto consistente de revolução socialista. A verdade viria unicamente de Moscou. Essa visão comunista sobre o anarquismo iria se consolidar nas décadas seguintes. José Oiticica e Fábio Luz, entre outros anarquistas, contestam duramente Astrojildo. Para eles, qualquer ditadura, mesmo aquelas que se dizem "de esquerda" ou "do proletariado", deve ser combatida e ter suas arbitrariedades denunciadas. "Como anarquistas revolucionários (...) não podemos concordar que à ditadura do capitalismo, origem de toda a tirania, se oponha a ditadura de outra classe, embora essa classe seja o proletariado", afirma o jornal A Plebe em 1922.
               O estado de sítio promulgado em 1922 para auxiliar o governo no combate aos primeiros levantes militares que marcarão toda a década incide fortemente sobre o movimento operário: sindicatos são fechados, lideranças presas e deportadas, jornais empastelados. Além de uma repressão mais dura, o governo republicano começa a cooptar ou assimilar setores da classe trabalhadora através da elaboração de leis, como a das férias, um código para o trabalho infantil e um projeto de aposentadoria e pensões. É um período de transição entre o liberalismo ortodoxo vigente nas primeiras décadas do século e a construção, ao longo das décadas de 1930 e 1940, do Estado autoritário e centralista, do qual o sindicalismo corporativista será peça estratégica. Fechavam-se os espaços ao anarquismo na vida operária do Brasil.

CARLOS AUGUSTO ADDOR E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE E AUTOR DE UM HOMEM VALE UM HOMEM: MEMÓRIA. HISTÓRIA E ANARQUISMO NA OBRA DE EDGAR RODRIGUES (ACHIAMÉ, 2012).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 08 - nº 95 – agosto 2013

Saiba Mais: Bibliografia
RAGO, Margareth. Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2000,
REIS, Daniel Aarão & DEMICINIS, Rafael (orgs.). História do Anarquismo no Brasil Vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad X / Eduff, 2006.


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