Marco A.
Pamplona
A escravidão negra nas Américas não foi
uniforme. Do século XV ao XIX, uma enorme quantidade de africanos foi alocada
pelo tráfico negreiro nos territórios americanos que estavam sob controle dos
impérios europeus. Por causa dessa imigração forçada, cerca de 400 mil cativos
foram enviados para as colônias da América inglesa, 1,6 milhão para a América
espanhola e 3,6 milhões para a América portuguesa. Levando em conta a
intermitente ação do contrabando, chega-se a um total estimado de 10 milhões de
pessoas. Tanto na América do Norte quanto no Brasil, a escravatura sobreviveu
ao fim do mundo colonial e soube se ajustar às formas de governo que os dois
Estados politicamente soberanos, constituídos após a independência, adotaram
para si.
O desenvolvimento da escravidão no
contexto republicano criou graves impasses nos Estados Unidos. A própria ideia
de república pregava uma ampliação da igualdade política e condenava, por
princípio, a existência de “diferentes condições de gente” e a manutenção de
seus privilégios. Na prática, porém, o país teve que conviver com a exploração
de cativos. Expressando os arranjos políticos entre os estados livres e os
escravistas, modificações sutis foram feitas na Carta Constitucional (1787). A
mais conhecida foi a chamada “cláusula dos três quintos”, segundo a qual os
escravos – sempre numerosos nos estados sulistas –, apesar de serem
“propriedade”, poderiam ser contados como pessoas. Isto é, cada escravo valia
“três quintos de um homem branco”, para efeito de cobrança de impostos e de
representação no Congresso.
A tensão entre os defensores e os
opositores da escravidão aumentou algumas décadas depois e tomou as ruas, como
nas revoltas antiabolicionistas da década de 1830, ocorridas nas principais
cidades do Norte. Também foram frequentes as perseguições aos trabalhadores
negros livres e libertos nas cidades portuárias do Sul, como Richmond e
Charleston – especialmente nas épocas de crise, quando a massa de homens
brancos pobres os via como usurpadores dos seus empregos. No Império do Brasil,
aceitava-se com muita naturalidade a existência de “diferentes condições de
gente” na sociedade e a valorização de privilégios para poucos. A manutenção de
uma hierarquia social herdada da colônia inviabilizava, por princípio, a ideia
de uma igualdade política para todos.
Nas décadas de 1780 e 1790, uma grande
campanha desenvolvida em ambos os lados do Atlântico, associou o tráfico
negreiro ao que hoje poderíamos chamar de uma violação dos direitos humanos.
Liderada pelos quakers britânicos e por várias organizações
abolicionistas, a campanha fez da guerra contra o tráfico um embate contra a
manutenção da própria escravidão. Em consequência disso, o Parlamento britânico
o aboliu em todas as suas colônias em 1807. Mas, nos Estados Unidos, muitos dos
opositores do tráfico eram donos de escravos – como Thomas Jefferson –, e logo
se fez uma distinção entre o direito à propriedade e aos cativos e o direito à
importação por meio do tráfico negreiro transatlântico. Por isso, a
Constituição de 1787 estabeleceu uma data – 1º de janeiro de 1808 – a partir da
qual seria oficialmente proibida a entrada de novos escravos africanos no país.
Somente em 1831 foi promulgada uma
primeira lei proibindo o tráfico no Brasil, prevendo pesadas penas aos
infratores. Essa medida não teve a aplicação esperada, e levou a Grã-Bretanha a
legislar diretamente para o Brasil. Por meio de uma lei, Bill Aberdeen,
estabeleceu-se em 1845 que a Marinha britânica poderia capturar embarcações
negreiras em todos os mares, inclusive em águas territoriais brasileiras, o que
foi visto como uma violação de soberania. O impasse criado só foi solucionado
com a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que levou à extinção do tráfico e ao
estabelecimento de medidas complementares para a sua repressão.
Nos Estados Unidos, os anos 1830 foram
marcados por uma onda de resgate do protestantismo, o “Segundo Grande
Despertar”. Homens e mulheres criaram movimentos e organizações variadas para
pregar reformas políticas, religiosas e morais. Proliferaram também as
sociedades antiescravidão e os movimentos abolicionistas, que fizeram um amplo
uso da retórica fundamentalista para apresentar a escravidão como uma
“corrupção” que a virtude republicana deveria combater, um “pecado” com o qual
não se podia compactuar.
Os comícios, sermões em igrejas batistas
de negros, panfletos, jornais, xilogravuras, livros e peças bancados por esses
grupos exerceram uma pressão enorme sobre a opinião pública. Desprezando a luta
política institucionalizada dos partidos no Congresso, esses abolicionistas
inundaram os estados sulistas com o seu explosivo material de propaganda em
1835, aterrorizando os escravocratas e inaugurando uma grave crise nas relações
Norte-Sul. O início da década de 1840 assistiu ao arrefecimento do movimento
que combatia a escravatura nos EUA, e que não iria mais se repetir.
No Brasil, a luta parlamentar nunca foi
deixada de lado, nem o caminho do abolicionismo gradual foi abandonado. Mas foi
somente após a criação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão (1880-1886)
que se ampliou mais o fosso entre escravocratas e abolicionistas e houve uma
maior mobilização popular pela abolição imediata e sem indenizações.
Entretanto, seus defensores mais aguerridos – Joaquim Nabuco, André Rebouças e
José do Patrocínio – viram-se frustrados com os resultados. A abolição
definitiva acabou vindo com o ato da princesa Isabel em 1888.
Os congressistas dos estados escravistas
dos EUA e os representantes dos que eram livres fizeram, enquanto foi possível,
acordos políticos para manter a convivência pacífica e os laços comerciais
entre Norte e Sul. O chamado Compromisso do Missouri (1820) foi um desses
acordos, a partir do qual as facções que defendiam e as que criticavam a
escravidão regularam a sua expansão nos novos territórios do Oeste, e passaram
a proibi-la ao Norte do paralelo 36º 30’. Mais tarde, a Resolução de 1848,
também conhecida como Wilmot Proviso, redefiniu esses limites, ao
repartir entre o Norte livre e o Sul escravista os territórios que haviam sido
anexados com a incorporação do Texas (1845) e com a vitória na guerra contra o
México (1846-48). Mas em 1850, o desgaste das relações Norte-Sul tornou a crise
iminente e fez da secessão uma possibilidade real.
No terceiro ano da Guerra Civil, em 1863,
quando o território dos Confederados – os onze estados do Sul que se desligaram
da União – começou a ser invadido pelas tropas nortistas –, o presidente
Lincoln emitiu uma “Proclamação de Emancipação”. Com este ato, ele libertou os
escravos apenas nos territórios e estados ainda revoltosos, e criou um
verdadeiro pandemônio no front inimigo. Com o fim do conflito,
em 1865, aprovou-se a 13a Emenda da Constituição, decisão que
acabou com a escravidão no país como um todo.
O Estado assumiu a responsabilidade pelos
libertos, garantindo a eles registros de identidade, oferecendo terras para o
cultivo (“quatro acres e uma mula”) e reunindo parentes que haviam se
dispersado no período da escravidão. Foi criado um órgão federal especial para
realizar essas ações, o Freedmen’s Bureau (1865).
A 14a Emenda (1866) decretou que todos os cidadãos nascidos no
país ou naturalizados seriam considerados americanos, independentemente da cor,
e teriam assegurados seus direitos à liberdade e à propriedade. Já a 15a(1868)
defendeu o direito de voto para todos os cidadãos adultos, independentemente de
“cor, raça, ou condição prévia de servidão”.
A situação no Brasil pós-abolição foi bem
diferente. Nada foi oferecido pela monarquia para a massa desorganizada de
libertos “além da liberdade” – nem escolas, nem terras, nem a garantia da
cidadania, muito menos o exercício dos direitos civis e políticos. Os
republicanos que chegaram ao poder no ano seguinte (1889) lavaram as mãos em
relação ao problema, que consideravam atributo exclusivo do Império. Ou seja,
coisa do passado...
Muitas das mudanças implementadas no Sul
dos EUA após a Guerra Civil, durante os governos radicais, foram anuladas
posteriormente pelo progressivo retorno das elites sulistas à cena política em
seus estados de origem, no final da década de 1870. Mas a lembrança daqueles
anos esteve patente quase um século depois, nos anos 1960, quando negros e
brancos tiveram que sair novamente às ruas para promover manifestações e atos
públicos em prol do exercício de voto pela população negra. Na famosa caminhada
pelos direitos civis no Alabama, liderada por Martin Luther King em março de
1965, eles protestavam com a certeza de que a realidade poderia ser mudada. O
hino dos direitos civis – “We shall overcome someday” [“Um dia vamos
superar”] – continua reverberando ainda hoje. Afinal, o que lembramos ou
esquecemos coletivamente na História sempre diz muito sobre nós mesmos – sobre
quem somos e para onde queremos ir.
Marco A. Pamplona é professor da PUC-Rio e autor de Revoltas,
repúblicas e cidadania. Nova York e Rio de Janeiro na consolidação da ordem
republicana (Record, 2003).
Saiba Mais - Bibliografia
AZEVEDO, Célia Maria
M. Abolicionismo – Estados Unidos e Brasil, uma história comparada
(séc. XIX). São Paulo: Annablume, 2003.
FONER, Eric. Nada
além da liberdade. A emancipação e seu legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988.
MARQUESE, Rafael B.,
PARRON, Tâmis P., BERBEL, Márcia R. Escravidão e política. Brasil e
Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010.
Saiba Mais - Filmes
Tempo de
Glória (Glory)
A conquista do Oeste durante
expansionismo dos EUA na primeira metade do século XIX agravou ainda mais as
divergências já existentes entre o Sul rural e escravista e o Norte industrial
e abolicionista.
A eleição de Abraham
Lincoln em 1860 foi vista como uma ameaça pelos latifundiários sulistas, pois o
presidente eleito, apesar de moderado defendia o fim da escravidão. Nesse
contexto, a Carolina do Sul inicia um movimento separatista, que em 1861 forma
uma nova União: os Estados Confederados da América. Durante a Guerra de
Secessão (1861-1865), líderes civis e militares do Norte decidem criar o
primeiro regimento negro dos EUA. Comandados por um oficial branco, sem
experiência (Matthew Broderick), mas de uma influente família. Os homens do 54º
Regimento de Massachussets lutavam pela liberdade e pela cidadania, arriscando
suas vidas em batalhas sangrentas. Ao longo da guerra, os negros vão
conquistando o lugar de verdadeiros soldados, até serem reconhecidos como
heróis.
Direção: Edward Zwick
Áudio: Inglês/legendado
Duração: 110 minutos
Malcolm X
Biografia do famoso líder
afro-americano Malcolm X (Denzel Washington) que teve o pai, um pastor,
assassinado pela Klu Klux Klan e sua mãe internada por insanidade. Ele foi um
malandro de rua e enquanto esteve preso descobriu o islamismo. Malcolm faz sua
conversão religiosa como um discípulo messiânico de Elijah Mohammed (Al Freeman
Jr.). Ele se torna um fervoroso orador do movimento e se casa com Betty Shabazz
(Angela Bassett). Malcolm X no início defendia uma doutrina de ódio contra o
homem branco até que, anos mais tarde, quando fez uma peregrinação à Meca
abranda suas convicções. Foi nesta época que se converteu ao original islamismo
e se tornou um "Sunni Muslim", mudando o nome para El-Hajj Malik
Al-Shabazz, mas o esforço de quebrar o rígido dogma da Nação Islã teve trágicos
resultados.
Malcolm X foi uma das
figuras políticas mais carismáticas da história recente dos Estados Unidos. A
sua mensagem política sobre as relações raciais mudou para sempre o papel dos
Afro-americanos na sociedade americana e abalou a consciência política daquele
país.
Esta é a história de um
homem negro numa sociedade onde muitos negros não podiam votar, andar nos
lugares da frente nos transportes públicos, ir a uma escola de brancos, a
história das suas esperanças, dos seus sonhos, da sua luta e dos tumultos
raciais dos anos 50 e 60.
Direção: Spike Lee
Áudio: Inglês/legendado
Duração: 192 minutos
Fantasmas do
Passado (Ghosts of Mississippi)
Myrlie Evers (Whoopi Goldberg)
trabalhou para que o racista branco que matou seu marido Medgar, heróico
ativista na luta pelos direitos civis da comunidade negra nos Estados Unidos,
pagasse pelo crime que cometeu. Isso ocorreu ao longo de 30 anos e dois
julgamentos inconclusivos. O modo como o assassino de Evers finalmente foi
condenado pelo crime, chega às telas com uma carga emocional perturbadora em
"um dos filmes mais importantes dos anos 90" (Paul Wundler,
WBAI-FM/Nova York) Dirigido por Rob Reiner e estrelado por Alec Baldwin, Whoopi
Goldberg e James Wood, "Fantasmas do Passado" cuidadosamente recriou
detalhes de uma incansável busca por justiça. Também conta com a participação
especial dos três filhos de Medgar Evers e Yolanda, filha do Reverendo Martin
Luther King.
Direção: Rob Reiner
Ano: 1996
Ano: 1996
Duração: 130 minutos
Mississippi Em Chamas (Mississippi Burning)
Mississippi 1964, Rupert Anderson
(Gene Hackman) e Alan Ward (Willem Dafoe), dois agentes do FBI, investigam a
morte de três militantes dos direitos civis em uma pequena cidade onde a
segregação divide a população em brancos e pretos e a violência contra os
negros é uma tônica constante.
Um dos jovens
desaparecidos é negro e os outros dois jovens são brancos ativistas contra a
discriminação legitimada na região pela sociedade e pelo descaso das
autoridades. Na cidade em questão, encontra-se um grupo que faz parte da Ku
Klux Kan, organizações racistas que apoiam a supremacia branca e o
protestantismo em detrimento a outras religiões. Ainda que nem todos os
moradores compartilhem desse sentimento a favor da segregação racial, há um
silêncio em relação ao assunto, e a Ku Klux Kan goza de uma impunidade
providenciada pelas vistas grossas dos policiais locais. Alguns policiais,
inclusive, participam dos atos violentos que o grupo promove contra a população
negra local. Os negros vivem em condição de miséria e não podem frequentar os
mesmos lugares que os brancos, a não ser em um espaço definido para eles. Os
ataques constam de incêndios, espancamentos e mortes, sem que ninguém seja
responsabilizado. O desenrolar da história mostra uma certa mudança de situação
para os negros, principalmente quando alguns criminosos racistas são presos e
condenados a longos anos atrás das grades. Porém, muito sangue foi derramado
antes que algum benefício fosse atingido pela população discriminada.
Duração: 127min.
Mauá - O
Imperador e o Rei
Com direção de Sérgio Rezende, o filme
retrata a biografia de Irineu Evangelista de Souza, personalidade da história
brasileira que se destacou como empresário no Segundo Império do país. Irineu
construiu a primeira indústria brasileira, uma fundição e estaleiro em Ponta de
Areia, Niterói (RJ).
Gaúcho, Mauá nasceu na
cidade de Arroio Grande e o início de sua vida não indicava um destino tão
brilhante. Ainda garoto, Irineu se tornou órfão, quando seu pai foi morto por
ladrões de gado. Dois anos depois, sua mãe decidiu se casar novamente com João
Jesus, que mandou o enteado para o Rio de Janeiro com Batista, seu tio.
No Rio, Irineu vai
trabalhar no armazém do português Pereira de Almeida, onde descobre sua aptidão
para os negócios. Torna-se funcionário de confiança e um cobrador impiedoso.
Seu talento é reconhecido pelo escocês Richard Carruthers, que o emprega em sua
firma de exportação e lhe dá as primeiras noções das teorias econômicas. No
entanto, Carruthers decide voltar a sua terra natal e deixa Irineu no comando.
Em uma viagem a Liverpool, Mauá se encanta com a potência das fábricas e decide
arriscar tudo para construir uma indústria no Brasil.
Direção: Sérgio Resende
Ano: 1999
Duração: 134 minutos
Saiba
Mais: Links
”Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra?
Tal ideia nos é estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do resplendor
da água, como então podes comprá-los?”
Chefe Seattle
Neste artigo, Sandra
Graham conta como e por que os
senhores de escravos temiam que cativos se alfabetizassem. Mas não foi só aqui
que isto aconteceu.
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