“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sábado, 9 de junho de 2012

Inquisição: Medieval/Moderna/Brasil

Desde o início
Cristãos-novos chegaram com portugueses no século XVI e se integraram rapidamente à sociedade da época.
           Quem nunca ouviu dizer que não se deve deixar sapato virado ao contrário, roupa pelo avesso, portas de armário abertas, varrer o lixo pela porta da frente de casa, dizer que alguém está “chorando a morte da bezerra” ou apontar a primeira estrela no céu? Estas e outras práticas do cotidiano de tantas famílias de Norte a Sul do país encontram, muitas vezes, associação no judaísmo oculto que era praticado na Colônia. No caso da limpeza das residências, por exemplo, é costume entre os judeus manter sobre o batente da porta de entrada uma mezuzá – pequeno pergaminho contendo trechos da Torá. Por isso, varre-se a casa, por respeito e honra, da porta para dentro, onde o lixo é então recolhido, para que não passe pela mezuzá.
     Embora muitos desconheçam, a participação judaica esteve presente no Brasil desde o descobrimento. Entre os navegadores e marinheiros que avistaram as terras brasílicas encontravam-se alguns cristãos-novos, antigos judeus convertidos ao catolicismo. O primeiro de que se tem notícia é Gaspar da Gama, originário de Alexandria, que fizera a viagem de Cabral, mas é provável que não fosse o único.
     A história dos judeus
sefarditas (originários da Península Ibérica) data da Antiguidade. Em Portugal, os primeiros indícios desta presença remontam ao século VI da Era Cristã. Apesar de problemas pontuais, estavam integrados a essa sociedade, onde encontravam melhores condições de vida. Muitos desses judeus ocupavam cargos públicos, tinham negócios e auxiliavam no desenvolvimento da ciência. Em terras portuguesas, celebravam suas festas e ritos livremente e contavam até com a simpatia de alguns monarcas. Tinham um tratamento muito diferente do que recebiam em outras partes da Europa, onde eram perseguidos, sendo expulsos ou banidos de importantes centros como Viena (1421), Colônia (1424), Augsburgo (1439), Baviera (1442), Morávia (1454), Perugia (1485), Vicenza (1486), Parma (1488), Milão (1489) e Florença (1494).
     Esta situação mudou na virada do século XV para o XVI, momento em que os judeus eram de 10% a 15% da população, estimada em um milhão de habitantes. Repetindo o que ocorrera em 1492 na vizinha Espanha, em 1496 D. Manuel (1495-1521) decretou a expulsão dos judeus do reino. Mas, ciente da importância dos cristãos-novos para os interesses lusos, apesar de expulsos, o monarca os proibiria de deixar o reino, ou seja, seriam obrigados a se converter ao cristianismo e transformados em cristãos. Mas seriam cristãos-novos, diferentes dos cristãos de origem, denominados cristãos-velhos. Muitos desses cristãos-novos, embora publicamente fingissem fidelidade à nova religião, não abandonavam sua fé.
     A suspeita generalizada de que judaizavam em segredo (criptojudaísmo), ameaçando a pureza católica, funcionaria como um dos pretextos para a instauração do Santo Ofício em Portugal no ano de 1536, tornando os cristãos-novos suas vítimas preferenciais. Acirravam-se, assim, as desconfianças sobre os recém-convertidos, que buscavam locais onde pudessem viver longe das pressões sociais e da Inquisição. Eles tiveram, então, que se espalhar pela Europa, pelo Norte da África, por Angola, Índia, China, Indonésia e Japão. No entanto, mantinham as ligações com a metrópole por meio das redes sociais e de comércio.
     Esses cristãos-novos foram fundamentais para os esforços de expansão portuguesa. Muitos dos navegadores e comerciantes que estiveram presentes na estrutura expansionista eram de origem
sefardita. Homens de trato comunicavam-se em latim, português, espanhol, hebraico – sendo, por vezes, letrados em algumas delas – e, não raro, nas línguas dos locais por onde passavam, num tempo em que a maioria das pessoas não dominava a escrita. Eles financiaram as viagens de conquista, colaborando com o conhecimento técnico necessário à construção de embarcações ou à utilização de instrumentos de navegação mais apurados. Atuaram como cartógrafos, negociantes, funcionários da burocracia, ajudaram com capital ou até como religiosos, nas atividades de catequese cristã nos domínios portugueses.
     O Brasil foi um dos destinos preferidos desses homens. Já em 1503, um consórcio formado por comerciantes cristãos-novos, sob o comando de Fernando de Noronha, arrendou à Coroa portuguesa o monopólio de exploração do pau-brasil, do comércio de escravos e de outras mercadorias por cerca de dez anos, sob a condição de manterem fortificações no território e de descobrirem novas terras.
     A proximidade temporal entre a instauração da Inquisição no reino e o processo efetivo de colonização da América portuguesa a partir da década de 1530 contribuiu para que muitos cristãos-novos que se sentiam ameaçados em Portugal decidissem atravessar o Atlântico em direção ao Brasil, onde participavam da organização política e social existente. Também a falta de um tribunal inquisitorial estabelecido e o crescimento da economia açucareira permitiram que muitos se tornassem senhores de engenho, responsáveis pela plantação, produção, pelo comércio e distribuição do principal produto colonial. Em fins do século XVI, os cristãos-novos já eram donos de boa parcela dos engenhos existentes no Nordeste e ameaçavam os interesses dos cristãos-velhos, incomodados com a concorrência.
     Mas esses criptojudeus não se limitavam ao açúcar: integrados na Colônia, eram influenciados e influenciavam a vida e os costumes locais. Eles exerciam funções diversas na política, na administração e na economia, participando, ao lado dos cristãos-velhos, de uma variada gama de atividades. Prova desse bom convívio eram os casamentos com descendentes de destacadas famílias cristãs-velhas. A carência de mulheres brancas para casar tornava as meninas cristãs-novas disputadíssimas. Esses matrimônios mistos funcionavam como prova pública da sinceridade cristã da família recém-convertida e diminuíam a mácula sanguínea dos descendentes, identificados, conforme a presença de sangue judaico, como metade, um quarto, um oitavo de cristão-novo, e assim por diante.
     A presença do Santo Ofício no Brasil acabaria por mudar este quadro de relativa harmonia. Durante as visitações da Inquisição ao Nordeste, entre 1591 e 1595 (Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba) e entre 1618 e 1621 (Bahia), vários cristãos-novos seriam insistentemente denunciados. Alguns, inclusive, acabariam enviados para a sede da Inquisição em Lisboa e julgados. No limite, recebiam a pena máxima: relaxados ao braço secular, condenados à fogueira.
     As acusações apresentavam um rol extenso e variado de comportamentos vistos como denunciadores da ocorrência do criptojudaísmo vivenciado na Colônia, tais como usar roupas limpas e arrumar a casa às sextas-feiras em respeito ao
Shabat; não pronunciar o nome de Cristo; preparar a comida segundo a tradição hebraica, não ingerindo carne de porco ou peixes sem escamas, entre muitas outras práticas. Algumas denúncias davam conta, inclusive, da existência de esnogas – sinagogas clandestinas que funcionaram por mais de três décadas, servindo de ponto de encontro dos criptojudeus da Colônia – em Camaragibe, Pernambuco, e em Matoim, na Bahia.
     Com a necessidade de ocultar os costumes judaicos, os lares viraram os locais de resistência por excelência, onde as tradições eram praticadas em família. Nesse contexto, pode-se dizer que o papel feminino tinha destaque. As mulheres exerciam as funções de mãe, professora e rabi, repetindo as histórias do povo hebreu, a prática das orações e dos jejuns, o respeito aos antepassados, orientando as primeiras leituras e advertindo sobre o perigo da Inquisição. Realizavam o judaísmo oculto, adaptado e possível que permitiu sua sobrevivência em tempos de perseguição.
     Por sinal, a primeira vítima do Brasil condenada à fogueira pela Inquisição foi uma mulher: a cristã-nova Ana Rodrigues, octogenária acusada de liderar uma família de judaizantes na Bahia, das mais denunciadas durante a primeira visitação. Presa e enviada para Lisboa, morreu no cárcere, mas seu processo continuou. Acabou sendo considerada culpada mais de dez anos depois de sua morte. Seus ossos foram desenterrados e queimados: sinal de que a Inquisição estava de olhos atentos ao que acontecia sob o céu dos trópicos.
Angelo Adriano Faria de Assis é professor da Universidade Federal de Viçosa e autor da tese “Macabéias da Colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia – Séculos XVI-XVII” (UFF, 2004).

Saiba Mais - Bibliografia
MARQUES DE ALMEIDA, António Augusto (dir.). Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses. Mercadores e Gente de Trato. Lisboa: Campo da Comunicação, 2009.
NOVINSKY, Anita W. Cristãos Novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo: Perspectiva/Ed. da Universidade de São Paulo, 1972.
SCHWARTZ, Stuart B. Cada uma na sua lei: Tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo/ Santa Catarina: Cia. das Letras/ Edusc, 2009.
VAINFAS, Ronaldo. Santo Ofício da Inquisição de Lisboa: Confissões da Bahia (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Por que não foi criado um tribunal da Inquisição no Brasil?
      Colônias espanholas na América tiveram seus tribunais inquisitoriais, assim como a Índia portuguesa. No Brasil, apesar da insistência de Felipe IV, não foi bem assim.
     Durante as famosas visitações do Santo Ofício, em fins do século XVI e começo do XVII, foram forjados tribunais itinerantes. Houve inquéritos, julgamento de casos considerados leves e até a celebração de autos da fé, a cerimônia de leitura das sentenças. Mas um verdadeiro tribunal, como os instalados no México, no Peru, na Colômbia e na Índia portuguesa, jamais existiu por aqui. Como a colonização engatinhava e a população, além de pequena, era esparsa, foi descartada a ideia de se criar um tribunal específico.
      Com o sucesso crescente da produção açucareira e o consequente aumento da população local, suscetível de cair nas malhas do Santo Ofício, Lisboa passou a despachar visitações semelhantes às que já circulavam pelo reino. Mas faltou combinar com os órgãos superiores da Inquisição. Excessos e desmandos cometidos pelos visitadores em atividade no Brasil definitivamente não agradaram à cúpula do Santo Ofício.
     Um primeiro projeto de criação de um tribunal no Brasil só surgiu em 1621. Com base nos vários pedidos e alertas de autoridades locais, inconformadas com a liberdade desfrutada por hereges, sobretudo judaizantes, e também temendo um conluio desses cristãos-novos com os inimigos holandeses, o rei espanhol Felipe IV ordenou a criação de um tribunal em Salvador. Na época, Portugal compunha a União Ibérica, liderada pela Coroa espanhola. O bispo do Brasil devia fazer as vezes de principal inquisidor e julgar os casos localmente com a ajuda de jesuítas, franciscanos, beneditinos e carmelitas.
     O inquisidor-geral, entretanto, propôs que se criasse um tribunal independente, com juízes nomeados por ele. Não interessava ao Santo Ofício entregar sua jurisdição ao bispo, pois outros eclesiásticos talvez vissem o caso como um precedente. Isto poderia enfraquecer a autoridade dos inquisidores perante os bispos, pois, em Portugal, eram esses eclesiásticos que julgavam os casos de heresia antes da instalação da Inquisição.
     Mas o rei não se conformou. Foram duas as tentativas – em 1622 e 1629 – de criar esses tribunais no Brasil. A Inquisição fez ouvidos moucos e nada aconteceu. Os interesses políticos da Inquisição falaram mais alto do que a ideia de controlar o comportamento dos que viviam aqui.
     Felipe IV voltou ao assunto em 1639. Preocupado com as devastações dos paulistas nas missões jesuíticas, o rei decidiu conceder poderes inquisitoriais ao bispo do Rio de Janeiro. Com a sucessão em Portugal no ano seguinte, o assunto morreu e não se falou mais nele, até porque a Coroa passou por graves apuros econômicos, incompatíveis com a instalação de novos tribunais.
Bruno Feitler é professor da Universidade Federal de São Paulo e autor de Nas Malhas da Consciência. Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo, 2008.

Saiba Mais - Bibliografia
SIQUEIRA, Sônia.  A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Ática, 1978.
VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Inquisição protestante
Na Inquisição, assim como os católicos, os protestantes também perseguiram os fiéis - com direito a torturas, execuções e espionagem da 'polícia da fé’.

     A Inquisição não foi o único caso de intolerância movida em nome de Deus na Época Moderna. Embora não houvesse a institucionalização de tribunais similares aos do Santo Ofício, também foram usadas estratégias de controle da fé nos locais em que o protestantismo era dominante, levando à perseguição por crimes como adultério, discordância dos dogmas protestantes e bruxaria.
     Na Alemanha, o líder protestante Martinho Lutero (1483-1546) exigiu perseguições aos anabatistas, grupo cristão mais radical da Reforma, porque, entre outras questões, eles não aceitavam as regras da Igreja Evangélica e divergiam sobre o batismo. A decisão causou a expulsão, o encarceramento, a tortura e a execução de milhares de pessoas. Lutero também divulgou textos com críticas aos judeus – embora sem maiores repercussões na época, estes escritos acabariam utilizados pela Alemanha nazista, em pleno século XX.
 Polícia da fé
     Em Genebra, um dos berços da Reforma Protestante e onde ela se mostrou bastante radical, funcionou uma verdadeira “polícia da fé”. João Calvino (1509-1564), devido à sua autoridade sobre os protestantes suíços, era conhecido como o “papa de Genebra”. Ao organizar a Igreja Presbiteriana, instaurou comissões compostas de religiosos e leigos: a Venerável Companhia, responsável pelo magistério, e o Consistério, que zelava pela disciplina religiosa. Para isso, promovia confissões, denúncias, espionagens e visitas às residências, levando muitos à prisão, à tortura, ao julgamento e, em alguns casos, à morte.
     A população era proibida de cultivar certos hábitos, como jogar, dançar e representar. Alguns pensadores foram perseguidos, como o médico e humanista espanhol Miguel Servet Griza. Ele foi preso, condenado e queimado em efígie – representado por um boneco. Fugiu em direção à Itália, mas acabou preso em Genebra, onde foi processado pelo Conselho presidido por Calvino e queimado por causa de proposições vistas como antibíblicas e heréticas, entre outras culpas.
     Na Inglaterra, uma verdadeira caça às bruxas levou à morte centenas de mulheres acusadas de feitiçaria. A experiência persecutória inglesa foi ainda “exportada” para as colônias na América do Norte, como no famoso episódio das “bruxas de Salem”, ocorrido em Massachusetts, em fins do século XVII, em que várias adolescentes foram mortas, acusadas de promover reuniões em torno de uma fogueira nas quais, supostamente, invocavam espíritos.
     Sem dúvida, não são poucos os exemplos de intolerância religiosa nos variados espaços que vivenciaram a Reforma Protestante, mas nada que representasse o equivalente dos estruturados tribunais inquisitoriais católicos.
Angelo Adriano Faria de Assis é professor da Universidade Federal de Viçosa e co-organizador de Religiões e religiosidades: entre a tradição e a modernidade. (Edições Paulinas, 2010).

Saiba Mais - Bibliografia 
DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989.
LEVACK, Brian P. A caça às bruxas na Europa Moderna, 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
SANTOS, João Henrique dos. “Da conciliação possível à ruptura. Uma análise dos documentos de 1520 de Martinho Lutero”. Tese de doutorado, UFJF, 2009.

Fogo que arde sem se ver
As heranças da Inquisição, presentes até hoje no Brasil, podem ser reavivadas com a reforma do Código de Processo Penal.
Cristina Romanelli (21/10/2011)

      A Inquisição em Portugal e nas colônias pode ter acabado oficialmente em 1821, mas, pelo menos no Brasil, suas chamas continuam acesas, ainda que discretamente. Em breve, a Câmara dos Deputados terá a chance de reavivá-las. Nada de perseguições, torturas ou bruxaria: o único instrumento necessário é um projeto de reforma do Código de Processo Penal, já aprovado pelo Senado. Como em uma viagem no tempo, o projeto propõe a criação de um modelo de juiz que surgiu nos primórdios da Inquisição espanhola e nunca mais foi utilizado. Diferentemente do sistema atual, esse juiz passa a poder apresentar provas a favor do réu.
     O chamado “juiz-defensor” era importante para neutralizar um depoimento de acusação que tivesse o objetivo de prejudicar o réu. Ele surgiu nas Instruções do primeiro inquisidor-geral espanhol, Tomás de Torquemada, em 1484. Mas, e hoje? Qual seria o benefício desse tipo de juiz para a Justiça brasileira? “Não sei qual o lado bom, pois esse juiz é tendencioso, já nasce tendo que proteger o réu. Mas se você for acusado, vai preferir um juiz que fique do seu lado ou um juiz isento? Daí dá para se ter uma ideia de quem propôs isso”, ironiza Mauro Fonseca Andrade, promotor de Justiça do Rio Grande do Sul e autor de Inquisição espanhola e seu processo criminal – As Instruções de Torquemada e Valdés (2006).

'Juiz-defensor' criticado
     O projeto ainda não tem data para ser analisado na Câmara, mas já vem sendo criticado por vários juristas e organizações. “O sistema judiciário brasileiro não tem juízes suficientes; essa ideia está fora da realidade. Além disso, o juiz tem que ser imparcial; essa mudança vai contra os princípios da democracia brasileira”, protesta Gabriel Wedy, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros.
     Talvez a criação da figura do juiz-defensor nunca seja aprovada. De qualquer modo, ela seria só mais lenha na fogueira, pois no Brasil não faltam heranças da Inquisição – e a Justiça concentra boa parte delas. Dois exemplos positivos são a concessão de defensor público a quem não tem dinheiro para pagar um advogado e a figura do Ministério Público, criada na esfera inquisitorial, mas ainda no fim da Idade Média. Naquela época, a Igreja e a Coroa tinham uma espécie de funcionário chamado “fiscal”, encarregado de apresentar acusações à Inquisição. “Isso acontecia justamente porque os particulares não tinham intenção ou então tinham medo de acusar quem cometia algum crime ou praticava heresia”, explica o promotor Andrade. Ainda hoje, na Espanha, o nome do órgão equivalente ao nosso Ministério Público é Ministerio Fiscal.
     O segredo de processo é outra herança desse período. Na Idade Média, ele era uma forma de os inquisidores manterem maior controle sobre as ações. Antes disso, os julgamentos eram públicos e chegavam a ter a presença de até seis mil pessoas. Essa participação permitia uma espécie de fiscalização popular. Mesmo com o fim dessa plateia, os acusados não ficaram totalmente desamparados: surgiu na mesma época o recurso em benefício do réu. Em alguns países, passou a ser possível recorrer das decisões impostas pelo tribunal. A francesa Joana D’Arc (1412-1431), por exemplo, só pôde apelar ao papa por causa deste recurso. Ele não foi tão eficaz quanto o esperado, mas retardou sua morte.

Inquisição X Constituição
     Esses e outros resquícios da Inquisição se fixaram no processo penal de forma que nem o discurso liberal no Império nem a influência americana na Constituição republicana de 1891 conseguiram eliminá-los. “Isso se intensificou com o Código de Processo Penal de 1941, elaborado no clima do Estado Novo e vigente até hoje. O código se baseia na hipertrofia do poder e na presunção de culpa do acusado. Ele se choca com a Constituição de 1988, cujos pressupostos se encaminham para um modelo acusatório que privilegia três entes separados: a promotoria, a defesa e o juiz, em lugar da concentração, típica do modelo inquisitorial”, afirma Arno Wehling, presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e autor de Direito e Justiça no Brasil Colonial – o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808) (2004), com Maria José Wehling.
     Por mais óbvias que sejam para especialistas em história jurídica, essas heranças inquisitoriais dificilmente são percebidas pela população. Uma das maneiras mais simples de notarmos os resquícios do Santo Ofício nos dias de hoje talvez seja por meio de expressões populares, como “a carapuça serviu”. Há quem garanta que a origem está no ritual que obrigava os réus da Inquisição a colocar um gorro cônico na cabeça, assumindo a culpa. E quem nunca “ficou a ver navios”? Esta expressão teria surgido em Portugal, quando os judeus se preparavam para deixar o reino na data marcada por D. Manuel, ainda no século XV. Tudo não passava de uma farsa montada pelo rei, que não queria que eles partissem. Resultado: todos foram convertidos à força ao catolicismo, e os navios que os levariam embora nunca apareceram.

Ditados com origem inquisitória
     Um exemplo que mostra bem o clima de perseguição da época é o ditado “mesa de mineiro tem gaveta para esconder a comida quando chega visita”. Facilmente relacionado à sovinice, pode ter uma origem bem diferente, já que os cristãos-novos eram obrigados a esconder comidas tipicamente judaicas para não serem identificados por possíveis delatores. “Quando chegava uma visita, que muitas vezes era um cristão-velho, dizem que eles escondiam a comida kasher nas gavetas e tiravam, por exemplo, carne de porco, que é proibida aos judeus. Isto é o que se conta, mas não se tem como comprovar”, diz Tânia Kaufman, presidente do Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco.
     Outro exemplo, mais conhecido, já deixou amedrontadas crianças de todas as religiões. Muita gente costuma dizer que quando se aponta para as estrelas, nascem verrugas nos dedos. Claramente, isso não passa de uma lenda, provavelmente criada por causa da tradicional cerimônia do shabat, que começa na sexta-feira à tarde, quando a primeira estrela aparece no céu. A história era uma maneira de evitar que as crianças de origem judaica – habituadas a venerar o astro que dava início ao ritual – apontassem para a estrela e se denunciassem à Inquisição.
     A lista de mitos e expressões conhecidos até hoje é longa, e inclui itens também pejorativos, como a palavra “judiar”. Usada na maioria das vezes por pessoas que nem fazem ideia de sua origem, ela aparece no Dicionário Houaiss como “ato de judiar, de fazer alguém alvo de escárnio ou de maus-tratos; judiaria”. Exatamente o que acontecia com os cristãos-novos de origem judaica, os mais perseguidos pela Inquisição portuguesa.
     Outras palavras, embora já existissem antes, também adquiriram, durante a Inquisição, um significado relacionado à perseguição aos cristãos-novos. Em dicionários da época, a palavra “infecto”, por exemplo, era sinônimo de quem tinha sangue judeu ou mouro, entre outros grupos nada bem-vindos. “É difícil estudar o racismo de hoje sem entender que é uma questão de mentalidade a longo prazo. Por mais que sejam manifestações distintas, a origem de tudo está ali, nesse pensamento racista de fundamentação teológica”, explica Maria Luiza Tucci Carneiro, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer) da USP. 
     Apesar de ainda restarem hoje expressões negativas, piadas sobre judeus e algumas manifestações de racismo isoladas, não se pode dizer que o povo brasileiro é antissemita. “Há algumas pessoas que têm antipatia pelos judeus, mas não sabem o porquê. Até a Igreja, que manteve a antipatia por um tempo, já pediu perdão pela Inquisição”, lembra Anita Novinsky, presidente e fundadora do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da USP. Segundo ela, apesar de ter sido uma “instituição de horror”, a ação inquisitorial teve outros desdobramentos: “Ela fez com que vários cérebros ilustres fugissem para o Brasil. Sem contar os primeiros plantadores de açúcar, os primeiros mineradores. Esse foi seu maior legado”.
Entre tantas heranças, a lista parece infinita. E atinge praticamente todos os campos da cultura popular, incluindo a rejeição de muitos nordestinos à carne de porco – denunciando aí um judaísmo clandestino – e até a tradicional festa de São João. Pois é, quem pula as fogueiras juninas nem imagina que elas estão associadas às chamas da Inquisição. Mas ambas foram tentativas da Igreja de desfazer a imagem negativa das fogueiras acesas nas festas pagãs [Ver RHBN nº45]. Consideradas desde então “fogos eclesiásticos”, as fogueiras da Inquisição nunca chegaram a arder aqui no Brasil. No entanto, sua versão mais inocente continua a fazer muito sucesso no país e está, junto com as demais heranças na cultura e na Justiça, mantendo as chamas da Inquisição acesas, discretamente, por mais de 200 anos.

Saiba Mais
ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição Espanhola e seu Processo Criminal – As Instruções de Torquemada e Valdés. Curitiba: Juruá Editora, 2006.
 Internet
Associação Brasileira dos Descendentes de Judeus da Inquisição
Filmes
As Bruxas de Salem (The Crucible)
"As bruxas de Salem - The Crucible", A história se baseia em fatos reais, ocorridos na vila de Salem, em Massachussets, em 1692. Tudo começa quando uma empregada negra faz rituais de vudu nos quais várias meninas da aldeia se envolvem, e são descobertas e acusadas de bruxaria. Várias pessoas foram condenadas à morte por envolvimento com feitiçaria após o grupo começar a fazer acusações de envolvimento com o demônio contra outras pessoas. É um filme tenso, aclamado pela crítica, repleto de suspense, intriga, ciúmes, paranoia, traição e maldade. A sensação final é de tristeza e de questionamento a respeito do porque há perda da razão compartilhada por tantas pessoas e que geram consequências tão terríveis.
Direção: Nicholas Hytner
Ano: 1996
Áudio: Inglês/legendado
Duração: 124 minutos

Lutero (Luther)
Após quase ser atingido por um raio, Martim Lutero (Joseph Fiennes) acredita ter recebido um chamado. Ele se junta ao monastério, mas logo fica atormentado com as práticas adotadas pela Igreja Católica na época. Após pregar em uma igreja suas 95 teses, Lutero passa a ser perseguido. Pressionado para que se redima publicamente, Lutero se recusa a negar suas teses e desafia a Igreja Católica a provar que elas estejam erradas e contradigam o que prega a Bíblia. Excomungado, Lutero foge e inicia sua batalha para mostrar que seus ideais estão corretos e que eles permitem o acesso de todas as pessoas a Deus.
Direção: Eric Till
Ano: 2003
Áudio: Português
Duração: 121 minutos


O Mercador de Veneza (The Merchant of Venice)
O Mercador de Veneza (The Merchant of Venice), adaptação da peça homônima escrita por William Shakespeare, se passa na cidade de Veneza, no século XVI. Bassanio (Joseph Fiennes) pede a Antonio (Jeremy Irons) o empréstimo de três mil ducados para que possa cortejar Portia (Lynn Collins), herdeira do rico Belmont. Antonio é rico, mas todo seu dinheiro está comprometido em empreendimentos no exterior. Assim ele recorre ao judeu Shylock (Al Pacino), que vinha esperando uma oportunidade para se vingar de Antonio. O agiota impõe uma condição absurda: se o empréstimo não for pago em três meses, Antonio dará um pedaço de sua própria carne a Shylock. A notícia de que seus navios naufragaram deixa Antonio em uma situação complicada, com o caso sendo levado à corte para que se defina se a condição será mesmo executada. O filme deixa explícita, a intolerância religiosa e de leis ainda baseadas nos costumes, impostas principalmente pelos preconceitos da sociedade cristã em relação aos judeus, que viviam isolados em guetos e eram bastante discriminados, permanecendo trancados ao anoitecer.
Direção: Michael Radford
Ano: 2004
Áudio: Português
Duração: 138 minutos


Documentários:
A Estrela Oculta do Sertão
A Estrela Oculta do Sertão é um documentário de 2005, dirigido pela fotógrafa Elaine Eiger e pela jornalista Luize Valente. O tema central é a prática judaica mantida por algumas famílias do sertão nordestino, juntamente com a busca de sua identidade religiosa por vários marranos, a partir do momento que tomam consciência de sua condição. São descendentes dos chamados cristãos-novos (marranos), judeus forçados a se converterem ao cristianismo durante o período da inquisição em Portugal, graças a um decreto do rei D. Manuel, estabelecido em 1497.
Durante a invasão holandesa ao Brasil, no século XVII, a Coroa holandesa que atuava na vanguarda do movimento de reforma do catolicismo, adota a política de acolher perseguidos religiosos de várias partes da Europa. A maioria dos judeus emigrantes que se estabelece no país vive na penúria. Com a tomada do Recife pela Holanda, esses grupos são atraídos pela oportunidade de progredir na mais rica capitania portuguesa da época, e navios fretados por judeus passam a chegar quase todo mês no Recife, evadindo-se posteriormente para o interior, após a retomada dos portugueses.
O documentário conta com consultoria e depoimentos da historiadora da USP Anita Novinsky, uma das maiores autoridades em inquisição no Brasil, o genealogista Paulo Valadares, e o antropólogo do Collège de France, Nathan Wachtel.
“É daqueles documentários que poderiam ser declarados de utilidade pública, pela forma como traz informações novas ao público”. (O Estado de São Paulo, abril de 2005)
Direção: Elaine Eiger e Luize Valente

Ano: 2005
Áudio: Português
Duração: 84minutos

Arquivos Secretos da Inquisição (Secret Files of The Inquisition)
Durante séculos, os registros históricos da Inquisição foram trancados para se tornar o tema do mito e da lenda. Em 1998, após anos de pressão de historiadores, estudiosos e críticos em busca da verdade, o Vaticano abriu alguns desses arquivos pela primeira vez. Baseado em documentos inéditos e pesquisas que revelam inúmeros segredos do Vaticano, a minissérie Arquivos Secretos da Inquisição foi destaque do The History Channel. Divida em quatro episódios tenta revelar a história incrível mas verdadeira da religião mais potente do mundo ocidental e sua determinação em manter o poder a qualquer custo. Usando documentos previamente secretos, esta série revela como a igreja mais poderosa do planeta criou a Inquisição para preservar a autoridade inquestionável do Papa. Tratava-se de uma instituição que ultrapassou fronteiras geográficas e históricas, indo da França medieval ao renascimento italiano. O especial aborda essa sangrenta história, dos os arquitetos da Inquisição às vítimas de sua ira. Os episódios trazem opiniões de estudiosos como David Gitlitz (especialista em História Medieval), Stephen Haliczer (historiador), Charmaine Craig (escritor) e Joseph A. Di Noia (teólogo e reverendo).
Direção: Lauren Drewery
Ano: 2006
Áudio: Português
Duração: 50 min (cada episódio)

Episódio 01-Eliminando os Hereges
França 1308 - A Igreja de Roma proclama-se a única religião verdadeira, mas a heresia toma conta e o papa declara uma guerra santa contra outros seguidores cristãos. Inquisidores são enviados para exterminar as heresias, caçar os crentes condenando a queimar na fogueira. 1308 toda a vila de Montaillou é feita prisioneira da Inquisição. Ninguém está a salvo - nem mesmo o padre da aldeia e a castelã de seu castelo.
Episódio 02-As Lágrimas da Espanha
Espanha, 1478 uma terra onde cristãos, muçulmanos e judeus vivam pacificamente havia séculos mas esse período estava no fim. Um rei e uma rainha determinados a alcançar a imortalidade proclamaram-se os reis católicos e deram início a uma inquisição. Judeus que haviam se convertido ao cristianismo foram acusados de sabotar secretamente a fé cristã milhares morreram em ritual um determinado auto-de-fé. O assassinato do inquisidor deflagrou uma onda de retaliações. Mães morreriam para proteger seus filhos e os homens mais importantes do reino pagariam com a própria viva. Era o início do império espanhol e de uma longa noite sombria que duraria séculos.
Episódio 03-A Guerra contra Ideias
Veneza 1522. Capital da tolerância e do Renascimento. Centro para contrabandistas que trabalham com literatura da reforma protestante. A arma mais poderosa da Igreja será um novo tipo de inquisição controlada pelo papa pessoalmente. Ele a usará para combater aqueles que competem e distorcem a religião e para eliminar aqueles que traem a fé. Irá conter o fluxo de novas ideias dizimando a edição e impressão de livros. Atrasando o nascimento do pensamento científico moderno. Uma nova batalha pelas almas dos cristãos europeus está para começar
Episódio 04-O Fim da Inquisição
Bolonha 1858. Um garoto Judeu é sequestrado pela Inquisição. Seu Pai recomeça um conflito que começou com Napoleão 60 anos atrás. O imperador quase consegue desmantelar e destruir a inquisição, e adquirir seus Arquivos Secretos. Mas os Papas retomaram seus poderes seculares. Décadas mais tarde um pai desesperado lutará para ter seu filho de volta. O garoto se torna um símbolo para um Papa atormentado. O Pai Judeu e o Imperador libertam forças que trarão o fim, da Inquisição.

2 comentários:

  1. ASSIM TÁ FICANDO MUITO MAIS FÁCIL DAR AS MINHAS AULAS.... MUITO OBRIGADO PELA DISPONIBILIDADE DOS FILMES, ARQUIVOS MUITO EXPRESSIVOS E DE FORMA MUITO CLARA.
    MARAVILHA DAS MARAVILHAS.

    PAULÃO

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    1. Dileto Paulão, o melhor de tudo é ter amigo como você. Obrigado pelo carinho. Sejamos honestos há coisa melhor do que ser útil?

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