Sem resistir ao golpe, João Goulart partiu para o exílio e evitou uma luta sangrenta entre reformistas e golpistas.
Jorge Ferreira
Manhã do dia 31 de março de 1964. No Palácio Laranjeiras, no estado da Guanabara, o presidente João Goulart (1919-1976) acordou cedo. Na noite anterior, ele discursara para cerca de 2.000 sargentos no Automóvel Clube. Assustado, Jango leu as manchetes. O Jornal do Brasil e o Correio da Manhã pediam a sua deposição. O presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, divulgou manifesto rompendo com o governo e incitando as Forças Armadas a restabelecer a ordem no país.
As crises políticas e militares se
sucediam desde setembro do ano anterior, quando sargentos tomaram Brasília
pelas armas. Mas a Revolta dos Marinheiros no dia 25 de março e a anistia que
receberam provocaram enorme insatisfação nas Forças Armadas. A presença de
Jango no Automóvel Clube agravou a crise militar. Para grande parte da
oficialidade, inclusive a que defendia a legalidade, o governo estava
subvertendo os pilares básicos da instituição: a hierarquia e a disciplina.
Depois de ler os jornais, o presidente
soube que o general Olímpio Mourão Filho, vindo de Juiz de Fora, marchava com
recrutas para a Guanabara com o objetivo de derrubá-lo da Presidência da
República. Mourão participava do grupo conspirador de Minas Gerais, cujo líder
civil era o governador Magalhães Pinto.
A primeira atitude de Goulart, com o apoio
de seus ministros, foi resistir ao golpe. Jango ordenou que o Regimento
Sampaio, na Vila Militar, o Grupamento de Obuses, no bairro de Deodoro, e o 1º
Batalhão de Caçadores, em Petrópolis, tropas profissionalizadas do Exército,
detivessem Mourão. A seguir, planejou sustar a tentativa de golpe depondo
Magalhães Pinto do governo de Minas Gerais e nomeando um interventor.
Poucas horas antes, San Tiago Dantas,
deputado federal e amigo de Goulart, soubera que o governo dos Estados Unidos
apoiava o movimento e que reconheceria o “estado de beligerância” de Minas
Gerais, fornecendo suporte financeiro, diplomático e militar a Magalhães Pinto.
As informações que Dantas recebeu do governo mineiro eram de que os Estados
Unidos poderiam interferir militarmente na crise política, se necessário.
Navios de guerra norte-americanos estavam se dirigindo para o litoral
brasileiro. A intervenção em Minas Gerais, portanto, poderia deflagrar uma
guerra civil com intervenção estrangeira. Após conversa com San Tiago Dantas,
Goulart recuou, e o decreto de intervenção em Minas Gerais foi sustado.
Na tarde do dia 31, os governadores Carlos
Lacerda (GB) e Ademar de Barros (SP) defendiam o golpe nas rádios, com o apoio
do governador Ildo Meneghetti (RS). O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT)
declarou greve geral, mas a iniciativa paralisou os transportes, impedindo que
a população fosse para as ruas.
Jango tentou convencer os comandantes das
quatro jurisdições do Exército a garantir a legalidade. Ele encontrou apoio dos
comandantes do I (GB, RJ, ES e MG) e do III Exército (PR, SC e RS), mas não do
IV (estados do Nordeste). Restava conversar com o comandante do II Exército
(SP), general Amaury Kruel, seu amigo. Kruel declarou que só o apoiaria se o
CGT fosse declarado ilegal e os comunistas perseguidos. Jango recusou.
Naquele momento, decisões pessoais dos
comandantes militares valiam pouco. O que contava eram as inclinações do
conjunto da oficialidade e dos generais que formavam o Estado-Maior de cada um
dos quatro Exércitos.
No fim da noite, tropas do II Exército
marcharam para a Guanabara. Os comandantes do Regimento Sampaio, do Batalhão de
Caçadores e do Grupamento de Obuses decidiram apoiar Mourão, que continuaria
sua marcha acompanhado por tropas profissionais.
Nas primeiras horas do dia 1º de abril,
diversos comandos militares declararam apoio ao movimento de deposição do
presidente. Quando amanheceu, o editorial do jornal Correio da Manhã era
“Fora”.
Na Guanabara, os fuzileiros navais
esperavam ordens do presidente para prender Lacerda – seria uma resposta do
governo aos golpistas. Mas a ordem não veio. Naquela manhã, San Tiago Dantas
dissera a Jango que a frota norte-americana invadiria a Baía da Guanabara se
Lacerda fosse preso.
Jango percebeu que não eram grupos civis e
militares minoritários que tentavam golpear as instituições, como ocorrera em
episódios anteriores. Era um movimento conjunto das Forças Armadas com apoio de
empresários, de amplos setores das classes médias e dos meios de comunicação. O
movimento ainda contava com os governadores da Guanabara, de Minas Gerais, de
São Paulo e do Rio Grande do Sul, com suas polícias civis e militares. No
Congresso Nacional, grande parte dos parlamentares deu aval ao golpe. O Supremo
Tribunal Federal calou-se diante da crise política. Além disso, o movimento
golpista tinha o apoio do governo norte-americano. Jango compreendeu a extensão
do golpe que estava em curso. A convocação para a resistência deflagraria uma
guerra civil com consequências imprevisíveis. Na manhã do dia 1º de abril, ele
iniciou o recuo. Ao meio-dia, partiu para Brasília – atitude interpretada como
capitulação.
No final da tarde, Arthur da Costa e Silva
(1899-1969), general pouco conhecido, entrou na sede do Ministério da Guerra e
declarou-se ministro. A seguir, instituiu o “Comando Supremo da Revolução”.
Em Brasília, Jango emitiu comunicado
denunciando os golpistas. Alegou que as medidas nacionalistas e populares que
tomou em seu governo uniram forças políticas e econômicas impatrióticas cujo
objetivo era “impedir que ao povo brasileiro fossem assegurados melhores
padrões de cultura, de segurança e de bem-estar social”. Depois, partiu para
Porto Alegre. Enquanto o avião seguia para o Sul, nas primeiras horas do dia 2
de abril, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, impedindo debates,
declarou vago o cargo de presidente da República. Um pouco mais tarde, com a
presença do presidente do Supremo Tribunal Federal, Andrade empossou o
presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, na Presidência da
República. A participação ativa das lideranças do Poder Legislativo e a omissão
do Poder Judiciário foram decisivas para o sucesso do golpe.
Em Porto Alegre, o comandante do III
Exército, general Ladário Telles, e Leonel Brizola (1922-2004) tinham esperança
de reverter o golpe. O III Exército era mais poderoso do que os outros juntos,
e Brizola planejava reeditar a Campanha da Legalidade. Naquele episódio,
ocorrido em agosto e setembro de 1961, os três ministros militares, diante da
renúncia do presidente Jânio Quadros, tentaram impedir a posse do
vice-presidente João Goulart. Brizola reagiu e, utilizando cadeia de rádio,
mobilizou o país em defesa da Constituição. Com a adesão do III Exército à
causa da legalidade, o golpe contra a posse de Jango fracassou. Brizola,
portanto, acreditava que poderia repetir em 1964 o que ocorrera em 1961. Às 8 horas
da manhã do dia 2 de abril, reuniram-se Goulart, Brizola, Ladário Telles e os
generais do Estado-Maior do III Exército. Telles demonstrou otimismo, mas a
maioria dos generais do III Exército comunicou lealdade ao novo ministro da
Guerra, enquanto a Brigada Militar obedecia ao governador do estado. Jango
percebeu que não havia como resistir.
Hoje sabemos que o golpe resultou em 21
anos de ditadura. Mas os personagens que participaram daqueles conflitos não
conheciam o futuro. Ditadura militar não estava nos planos dos líderes civis
golpistas, como Carlos Lacerda (1914-1977) e Magalhães Pinto, ambos
presidenciáveis nas eleições de 1965. Jornais que defenderam a deposição de
Goulart, como o Correio da Manhã, também não apoiavam a instituição de
governos militares. Entre os próprios militares golpistas não havia planos de
poder. Seus depoimentos confirmam que não existia um projeto a favor de algo,
apenas contra. Os planos imediatos eram depor Goulart e fazer uma “limpeza”,
retirando do cenário político os comunistas, os trabalhistas e os sindicalistas
identificados com ele.
Jango, por sua vez, acreditou que o golpe
repetia o que acontecera com Vargas em outubro de 1945: o presidente é deposto,
fica exilado no próprio país e depois o processo político retorna à
normalidade.
Nos anos que se seguiram, Goulart foi
bastante criticado por não resistir ao golpe. Atualmente, admite-se a extensão
destrutiva que o chamado de resistência provocaria na sociedade brasileira. O
jornalista Paulo Markun afirma que “Jango deve ser valorizado por aquilo que
não fez: jogar o sangue de outros na luta política”. Zuenir Ventura concorda:
“Jango teve um dos seus momentos mais bonitos ao evitar aquilo que imaginava
que viria a ser uma guerra civil com um milhão de mortos”. Goulart compreendia
que guerra civil é algo que se sabe como começa, mas não como termina. Como
ocorre nesses conflitos, toda a sociedade padece, mas são os trabalhadores e a
população mais pobre os maiores prejudicados. Esta foi a principal razão para o
gesto de Goulart de não resistir aos golpistas.
Jorge
Ferreira é professor da Universidade Federal Fluminense e autor de Jango,
uma biografia. Civilização Brasileira, 2011.
Saiba
Mais - Bibliografia
BANDEIRA, Luiz Alberto
Moniz. O governo João Goulart. As lutas sociais no Brasil – 1961-1964.
Edição revista e ampliada. São Paulo: Editora da Unesp, 2010.
D'ARAÚJO, Maria Celina,
SOARES, Gláucio A. D. e CASTRO, Celso (orgs.). Visões do Golpe.
A memória militar de 1964. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
MORAES, Dênis. A
esquerda e o golpe de 64. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
OTERO, Jorge. João
Goulart. Lembranças do exílio. Rio de
Janeiro: Casa Jorge Editorial, 2001.
Saiba
Mais – Documentário
Jango – Como, quando
e porque se depõe um Presidente.
O documentário de Sílvio Tendler
acompanha a vida política de João Belchior Marques Goulart (1918-1976), o
Jango, de 1950 a 1976, de seu primeiro cargo importante, como Ministro do
Trabalho no governo de Getúlio Vargas, até o exílio no Uruguai e Argentina,
depois do golpe de 1964. Tendler explora a vida de Jango, gaúcho de São Borja e
único presidente brasileiro a morrer no exílio, apresentando imagens de filmes
caseiros, documentários antigos, fotos e entrevistas, e, depoimentos
importantes, como os do general Antônio Carlos Muricy, de Leonel Brizola, de
Aldo Arantes, de Afonso Arinos, de Magalhães Pinto, de Frei Betto, de Celso
Furtado, entre outros.
Há uma grande quantidade
de imagens inéditas, como as viagens de Goulart à Russia e à China, Jango
discursando na ONU, e do comício da
Central do Brasil, em 13 de março de 1964, que, antecede ao golpe militar de 31
de março.
Documentário
vencedor dos prêmios: Música Original
(Milton Nascimento e Wagner Tiso), Melhor Filme (Júri Popular) e Prêmio
Especial do Júri, XII Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, RS, 1984. Prêmio
Especial do Júri para Documentário, Festival Novo Cinema Latino-Americano,
Havana, Cuba, 1984. Melhor Filme do Público, Festival de Nova Delhi, Índia,
1985.
Direção: Sílvio Tendler
Áudio: Português
Duração: 117 minutos
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